A infância golpeada pelas políticas anti-migratórias

Por trás da brutalidade nas jaulas infantis dos EUA há um fato chocante: crianças já são mais da metade dos refugiados. Seus direitos essenciais são sistematicamente ignorados

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Por trás da brutalidade nas jaulas infantis dos EUA há um fato chocante: crianças já são mais da metade dos refugiados, em todo o mundo. Seus direitos essenciais são sistematicamente ignorados

Por Monique Roecker Lazarin, no Justificando

As imagens das últimas semanas, crianças migrantes detidas em um armazém no Texas, nos EUA, demonstram uma face perversa da atual política de controle das fronteiras no governo de Donald Trump, e suscitam um debate que sociólogos da infância há tempos se propõem a pensar: a infância é um fenômeno social. Isso significa, dentre muitas outras perspectivas, que ela tem variações internas, a depender da conjuntura de que se fala. Infâncias, então podemos dizer. Ser preso e separado da família em um contexto migratório certamente é um desses cenários que traz especificidades – trágicas, obviamente – à vivência da criança. Mas, há tempos sabemos das atrocidades cometidas contra imigrantes na tentativa de fechar as fronteiras (seja nos Estados Unidos ou na Europa). Se fossem adultos talvez Melanie Trump não teria se pronunciado. O que faz com que a imagem da criança traga tamanha comoção?

A criança por vezes é vista como um indivíduo de essência vazia [1], pela qual se disputa o que inserir. Nesse caminho, é vista como ser inocente, ou incapaz. De fato, as crianças possuem particularidades que as tornam ainda mais vulneráveis. Mas aqui a questão é que a vulnerabilidade, bem como seu acirramento, é sobretudo contextual: depende mais da situação social em que ela está colocada, do que das características em si da criança. Isso vale ao mundo adulto, não nos esqueçamos de que havia muitos – e eram a maioria – maiores de idade no galpão do Texas. A criança que só sabia o K’iche enquanto língua não tinha recursos suficientes para se comunicar com os agentes e falar de sua tia. Mas e a menina que sabia e inclusive tinha o telefone de sua tia memorizado? Estavam todas na mesma situação; quando o ideal era que, atendendo às suas particularidades, estivessem sendo escutadas e seus interesses atendidos.

Mas o Governo Trump, alegando política protetiva às crianças, torna ainda mais difícil o percurso migratório dessas famílias. Importante lembrar o que estudiosos da infância levantam sobre os direitos das crianças: são três Ps que os compõem (proteção, provisão e participação). A provisão ali era uma chacota cruel, visto que os relatos falam de sacos de batata frita e folhas de papel sendo utilizadas como cobertor! A participação, que é já geralmente a face mais renegada de tais direitos – pelos motivos de se considerar a criança enquanto sem entendimento do mundo, e portanto, inepta a opinar – já era barrada no próprio ato de detê-las, sem levar em consideração suas falas e sua mais contundente expressão no áudio: o choro. A proteção, ou dita proteção, era na realidade ação de tortura, tentativa de coibir os fluxos migratórios: uma separação forçada que penalizava tanto a família quanto as crianças.

Outro fator de choque é a incoerência do discurso moderno sobre infância: as crianças são cada vez mais alvos de cuidado de políticas protecionistas, seja na vertente do cuidado, seja na concepção de sujeitos de direitos; contudo, ao mesmo tempo, os indicadores sociais apontam o grande impacto da desigualdade em suas vidas. Assim, a contradição na constituição da infância parece se aguçar na multiterritorialidade dos fluxos de pessoas intensificados na globalização e no capitalismo contemporâneo. Os números retratam tal realidade: os mais recentes dados divulgados pelo ACNUR – Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (19/06/2018) – apontam que no ano de 2017 os deslocamentos forçados atingiram 68 milhões de pessoas, sendo que destas 53% são crianças. Esse número torna-se mais intrigante quando tomado proporcionalmente em relação ao grupo geracional adulto em termos demográficos da população mundial: apesar de corresponderem a 1/3 da população mundial, quando o recorte é feito em termos de migração de crise elas são numericamente os maiores afetados.

Assim, se diversos acordos internacionais há décadas vêm pautando os direitos das crianças, é preciso que se leve em consideração que a intensificação dos fluxos migratórios contemporâneos tem sido um dos contextos de risco que as atinge com intensidade e violação. É não é qualquer fluxo e qualquer criança migrante que está nesse impasse – voltamos a questão das diferenças dentro de tal grupo geracional. A seletividade social atinge também o universo das crianças. Se as fronteiras são porosas [2], há quem passe por elas, enquanto outras ficam literalmente engaioladas. Quem passa e quem fica? Por quê? São questões que nos levam à desigualdade social global que atinge também aqueles com pouca idade; desigualdade esta baseada em marcadores como etnia, raça e classe. Se até o brincar, umas das ações mais importantes e universais do mundo infantil, está sendo recriminado, o ato de resistência dessas crianças no ambiente hostil está sendo tolhido; e as crianças, não podem ser crianças. Ou seja, aquela máxima de que “criança é criança em qualquer lugar” cai por terra.

Se as crianças simbolizam o futuro e portanto geram comoção, é preciso que elas também passem a simbolizar a igualdade. Nesse caminho, deixa-se de pensar somente no futuro, para vê-las como presente. Afinal, o choro causado pela política de controle de fronteiras está acontecendo agora!

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Monique Roecker Lazarin é socióloga e pesquisadora na área da Infância e Migração.

[1] ABRAMOWICZ, A.; MORUZZI, A. B.. Infância na contemporaneidade: questões para os estudos sociológicos da infância. Crítica Educativa, v. 2, n. 2, p. 25-37, 2017.

[2] BASSO, P. Sviluppo diseguale, migrazioni, politiche migratorie. In: BASSO, P.; PEROCCO, F. (Org.). Gli immigrati in Europa: diseguaglianze, razzismo, lotte. Milano: FrancoAngeli, 2003.

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