A clínica rebelde e os novos olhares sobre Fanon
Biografia mostra o pensador martinicano através de suas diferentes máscaras: filho nativo, argelino, exilado, africano e, por fim, “profeta”. E articula novos ângulos em torno do personagem que completaria 100 anos, sem esconder suas crises a fraquezas
Publicado 07/11/2025 às 19:20

Por Leonardo Silvério, em A Terra é Redonda
No ano em que seria seu centésimo aniversário, Frantz Fanon alcança 2025 sob múltiplas máscaras e com um teor de verdade mais vivo do que nunca. Vemos, através de sua figura e pensamento, a organização de problemas latentes que nos fazem recorrer às suas formulações enquanto guias para a transformação da ordem vigente. Sua retórica, vigorosa, complexa e propositiva, continua a mobilizar todos aqueles comprometidos com a superação da raça e da desalienação, com a autodeterminação dos povos e com os processos revolucionários que visam a liberdade dos explorados e oprimidos. A difícil tarefa a qual Adam Shatz se propôs em “A clínica rebelde” (2024)[ii], então, é a de nos apresentar a vida, a obra, a atualidade e o incrível itinerário deste personagem do século XX, excedendo seu tempo e persistindo com suas questões até hoje.
Dividido em 5 partes, o autor pretende apresentar o início, meio e fim da vida de Fanon estabelecendo para cada parte uma figura (ou “espectros”): respectivamente, filho nativo, argelino, exilado, africano e, por fim, profeta. Ao longo da apresentação do percurso pessoal do martinicano e seu contexto histórico, Shatz também conecta o texto com considerações a respeito da obra e dos interlocutores (diretos ou indiretos) do biografado. Mesmo que não agrade sempre, a escrita se destaca pela capacidade de aliar documentação, contexto e teoria com um estilo leve de leitura. É nítida a preocupação existente para com o público leigo[iii] – o que, por um lado, o faz pecar por certos excessos de detalhamento para situar o leitor mas, por outro, garante uma leitura geral para todos que estejam interessados em Fanon – proposta que se faz bastante bem-vinda no contexto brasileiro em que o interesse pela obra de Fanon tem crescido fortemente desde 2020, tornando-o um autor referencial para os debates raciais, seja pela militância de movimentos sociais, seja pelo aumento de estudos acadêmicos e projetos institucionais em torno de sua obra.
De nossa parte, gostaríamos apenas de reconstruir alguns momentos iniciais da trajetória de Fanon apresentadas no livro, ressaltando e comentando alguns pontos do trabalho de Shatz que mereceriam ser aprofundados, ou colocados à parte enquanto interpretações específicas do autor a respeito da obra – a saber, pensamos nos escritos teatrais de Fanon e na interpretação de Shatz sobre o surrealismo e a loucura.
Dito isso, somos apresentados ao percurso Fanon desde seu seio familiar de classe média na Martinica, passando pela sua crença e desejo de ser reconhecido enquanto um verdadeiro francês – a tal ponto de se lançar enquanto soldado no exército francês na resistência contra o fascismo, como um verdadeiro filho nativo[iv] que, no entanto, se desilude com o “universalismo humanista” e percebe que, aos olhos dos europeus, ele não era tão diferente dos “africanos”; dos nègres[v].
Ele volta, então, como um “filho decepcionado” (Shatz, 2024, p.41) à terra natal e inicia sua formação em filosofia no Lycée Schoelcher, em Fort-de-France, onde tem contato com a figura e obra de Aimé Césaire – ainda que nunca tenha sido seu aluno. A partir daí tem contato com o movimento Négritude – movimento estético-político bastante influente para Fanon, constituído por nomes como Césaire, Léopold Senghor e Léon Damas[vi] – elogiados e criticados por Fanon ao longo de sua vida, ainda assim, apropriados por Fanon em seu espírito romântico e surrealista. Apesar dessas referências, Fanon ainda visava o mundo da metrópole e se dirigiu a Paris, onde conheceu Édouard Glissant – mas rapidamente se mudou para Lyon, onde se distanciou da comunidade antilhana e se aproximou da comunidade dos trabalhadores argelinos, além de iniciar seus estudos na faculdade de medicina.
Durante esse período de grandes crises para Fanon a partir da emergência da consciência sobre o racismo que sofreu, ele encontrou no teatro uma maneira de expurgar o sofrimento. Ele escreve, então, 3 peças (“O olho se afoga”, “Mãos paralelas” e “A conspiração”[vii], que desapareceu) que, segundo Shatz, são “tão estéreis quanto grandiosas” que “poderiam ter sido escritas por muitos dos jovens melancólicos das letras francesas” (p.69). Sem se aprofundar em mais detalhes sobre as obras e seu espírito romântico, o biógrafo segue em frente, reduzindo as peças a expressões das dificuldades que Fanon teve com mulheres brancas, desviando o rumo da história. De todas as obras que são comentadas e citadas ao longo da biografia, essa, provavelmente o primeiro escrito de Fanon, ocupa exatamente apenas uma página das mais de quinhentas sobre sua obra.
Ainda que haja uma riqueza de relações com obras artísticas na escrita de Shatz, sua biografia peca ao se aprofundar nas relações do próprio Fanon com as artes. Tal contato com o teatro certamente não é desprezível, uma vez que passamos a saber, posteriormente na leitura (cf. Shatz, 2024, pp. 277-310), que Fanon não escrevia seus textos[viii], mas os ditava para sua secretária, amiga e musa, Marie-Jeanne Manuellan, e eles eram, depois, revisados por sua esposa, Josie Fanon. Não é por acaso, então, que temos a impressão de que quando lemos seus textos sentimos que poderiam ser declamados a plenos pulmões, tal como um poema. A oratória e retórica necessária para este que conquistou a posição de porta-voz da Frente de Libertação Nacional, ou “bardo da Revolução Argelina” (ibid., p.277), certamente não surgiu por acaso – muito provavelmente foi uma capacidade desenvolvida a partir de seu contato com a poesia romântica das Antilhas, com os romances estadunidenses e com o teatro contemporâneo francês.
Durante o mesmo período, nosso jovem estudante martinicano conhece o psiquiatra Paul Balvet – tesoureiro do Hospital Psiquiátrico de Saint-Alban, famoso por seus métodos inovadores de terapia em grupo – e, com ele, Fanon conversava frequentemente a respeito de psiquiatria e surrealismo. Do encontro desses dois campos, surgem as conversas em torno da loucura que, para Balvet, se tratava de uma “mina extraordinária”, um “novo modo de conhecimento”, um “êxtase religioso” ou uma “paixão romântica”, enquanto um elemento indissociável da condição humana (cf. Shatz, 2024, p.72). Porém, para Shatz, Fanon seria mais resistente ao que ele chama de “descrição um tanto romântica que Balvet fazia da loucura” (ibid., p.72-3). Adiante no livro, ele ainda adicionaria sobre o hospital de Saint-Alban: “A revolução que se desenrolou em Saint-Alban tinha a liberdade imaginativa e o gosto pela espontaneidade do surrealismo, mas estava sempre enraizada no trabalho nada glamoroso, e em grande parte extenuante, de tratar pessoas que sofriam de condições extremas”. E conclui: “uma combinação de sonhos utópicos e pragmatismo reformista” (ibid., p.141). É de estranhar como o autor diminui os trabalhos da época sobre a loucura e as reformas nos hospitais psiquiátricos que, mais do que “sonhos utópicos”[ix], já iniciavam grandes projetos de transformação nos espaços psiquiátricos e nas relações entre médicos e pacientes – como foi o caso da experiência do Coletivo Socialista de Pacientes na Universidade de Heidelberg em 1970[x]. A própria experiência em Saint-Alban seria muito mais ampla e rica do que faz parecer o biógrafo nesse trecho – páginas depois ele recuperaria o período de Fanon no hospital (1952-3), sob a supervisão de François Tosquelles, colega de Balvet. Porém, poucas páginas são dedicadas à relação de Fanon com o psiquiatra da “política da loucura”[xi].
Novamente, Shatz desvia do assunto para falar do trabalho de Fanon com os trabalhadores argelinos em Lyon – experiência essa que teria feito Fanon questionar o sentido de “normalidade” em uma situação colonial que, na verdade, não passaria de um “sistema de relações patológicas que se passavam por normalidade” (ibid., p.77). Obrigado a retornar à questão, ele menciona alguns autores da época que teriam pensado este problema, como Marcel Mauss, Georges Canguilhem e, posteriormente, Michel Foucault – sem falar no “imensamente influente psicanalista Jacques Lacan” que “ficou intrigado com o surrealismo e sua insinuação de que a insanidade falava um tipo de verdade” (ibid., p.79).
Apesar desse sobrevoo sobre o tema, Shatz é bastante superficial ao pensar a contextualização de Fanon nesse debate. Há um certo desdém irônico em sua descrição ao falar da neuropsiquiatria “orgânica” e dos “psiquiatras marxistas” que “imaginavam uma microssociedade nova e mais democrática surgindo dentro do hospital psiquiátrico” (Shatz, 2024, p.78). Essa seria uma geração radical, que faria celebração da loucura enquanto um “modo de percepção visionário, como a inspiração artística” (ibid., p.79). E, ao lembrar da admiração de Fanon em relação ao doutorado de Lacan de 1932 a respeito da paranóia, seu único comentário se reduz a uma citação do doutorado de Fanon de 1951 – no qual chama Lacan “lógico da loucura”[xii], o que Shatz enxerga enquanto uma caracterização “sutilmente zombeteira, e insinuava que Lacan fornecera uma racionalidade para o irracional” (ibid.). Para completar e encerrar o capítulo, logo em seguida, Shatz também faz um infeliz comentário sobre o surrealismo e a loucura:
“Fanon nunca conseguiu chegar a endossar a fantasia surrealista da loucura como – na famosa expressão de Rimbaud – o ‘desregramento de todos os sentidos’. A doença mental, argumentava ele, não era o limite extremo da liberdade, mas sim uma ‘patologia da liberdade’. Essa alienação pulverizante do eu, Fanon acreditava, apresentava um obstáculo quase intransponível às relações normais com outros. A solidão forçada dos loucos, prisioneiros de seus delírios, não era romanceada por Fanon. O fato de ele repudiar a defesa lacaniana da loucura – o fato de enfatizar a vulnerabilidade, o sofrimento e a perda de liberdade experimentada pelos pacientes psiquiátricos, em vez da natureza ‘visionária’ de sua percepção, ou o êxtase da alucinação – é um lembrete do valor que sempre atribuiu à autodeterminação. Ter um transtorno mental era abdicar de todo o controle sobre a própria mente e, portanto, do próprio corpo e destino. Para um descendente de escravizados de uma antiga colônia açucareira, era impossível confundir a condição de desintegração mental e física com emancipação de uma ordem social opressiva” (Shatz, 2024,p.79-80, grifos nossos).
Vemos, a partir dos trechos grifados, como a posição de “zombaria” parte totalmente de Shatz – e não, como quer parecer, de Fanon. Há momentos, como esse, no qual Shatz assume a máscara de Fanon para se posicionar pessoalmente sobre determinados assuntos – e o faz sem mediações cuidadosas. O resultado é o equívoco de misturar suas posições com as posições de seu objeto que, em trechos como esse, mostra-se um objeto mudo, uma vez que não parece haver citações que sustentem a posição do biógrafo, que ao longo da obra se mostra munido de diversos textos e relatos de Fanon.
Impressiona a falta de cuidado do autor em dizer que a complexidade do movimento surrealista – simplificado vulgarmente a partir de uma frase de Artaud – “fantasia” e “romantiza” a loucura (novamente, termos utilizados enquanto qualificadores pejorativos, quando não o são). Escapa ao autor a compreensão crítica a respeito do surrealismo[xiii] enquanto movimento dinâmico e múltiplo que tem em seu cerne o horizonte do amor, da poesia e da liberdade. Não são palavras ao léu, mas direcionamentos resultantes de reflexões históricas e concretas a respeito de seu próprio tempo, tendo como um de seus grandes objetos de crítica o conceito e a prática da razão ocidental tida como universalista, mas excludente[xiv]. Basta mencionarmos aqui Nadja (1928), de André Breton, para compreendermos um pouco do que entendem os surrealistas sobre a loucura: sabe-se que Nadja é internada em um hospital psiquiátrico em 21 de março de 1927 após um surto psicótico e permanece internada até 1941, onde morre enclausurada. Os surrealistas protestam: “Mas, na minha opinião, todos os internatos são arbitrários” (Breton, 2022, p.116) e, adiante, “mas Nadja era pobre, o que, no tempo em que vivemos, é suficiente para condená-la, a menos que ela se desse conta de que não estava inteiramente em harmonia com o código imbecil do bom senso e dos costumes” (ibid., p.117)[xv]. Não nos parece haver, nesses trechos citados, qualquer “fantasia” ou “romantização” da loucura[xvi], mas um entendimento crítico de sua produção, organização e tratamento no começo do século XX[xvii].
Ademais, discordamos da posição moralista do autor em relação à loucura, que a enxerga enquanto exclusão da capacidade de autodeterminação dos povos e de seu caráter de “êxtase”. Recuperamos aqui a leitura de C.L.R. James sobre a revolução haitiana (a colônia de São Domingos)[xviii] para lembrar que as primeiras insurreições assumiram “formas estranhas” (2010, p.52) antes de se tornarem uma revolução. O vodu, enquanto religião, foi o primeiro meio de conspiração das massas para se insurgir contra seus senhores – tanto pelos meios ritualísticos e simbólicos quanto pela práxis da revolta, por exemplo, queimando fazendas: “Boukman deu as últimas instruções e, após fazer uns encantamentos de vodu e beber o sangue de um porco imolado, estimulou seus seguidores com uma oração proferida em créole […]” que dizia “[…] Deitai fora o símbolo do deus dos brancos que tantas vezes nos fez chorar, e escutai a voz da liberdade, que fala para os corações de todos nós’” (James, 2010, p.92-3). Adiante, James continua: “No frenesi do primeiro encontro, mataram todos, não obstante poupassem os padres a quem temiam e os médicos que tinham sido bondosos com eles” (ibid., p.94). Vemos, claramente, que as forças teológico-políticas se exibem também enquanto forças de resistência voltadas para a autodeterminação do povo haitiano – justamente através das possessões e frenesis, características que poderiam fazê-los parecer “selvagens” ou “loucos”.
Por fim, para não nos alongarmos, gostaríamos de ressaltar a qualidade do trabalho de Shatz. Apesar de nossas críticas, o valor da obra não decai, mas torna explícito seu esforço e a sua capacidade em mobilizar os escritos, documentos e relatos em torno de Fanon. Seu trabalho certamente será muito bem aproveitado tanto por aqueles que se iniciam na leitura da obra fanoniana quanto por aqueles que já a conhecem – esses, encontraram na Clínica rebelde um mapeamento organizado de cada fase de Fanon, com notas explicativas, referências e sugestões de debates a serem desenvolvidos. Com este trabalho, o legado de Fanon é revitalizado, ampliado e atualizado para nossos tempos de luta.
Leonardo Silvério é mestrando em Filosofia pela USP. Membro do Coletivo Negro Dialética Calibã e da Revista Zero à Esquerda.
Bibliografia
BALDWIN, James. Notas de um filho nativo. Tradução de Paulo Henriques Britto. – 1ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
BENJAMIN, Walter. “O narrador. Con[xix]siderações sobre a obra de Nikolai Leskov”. IN: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet; prefácio de Jeanne Marie Gagnebin – 7. ed. – São Paulo: Brasiliense, 1994.
BRETON, André & ÉLUARD, Paul. Dicionário abreviado do surrealismo. Tradução de Diogo Cardoso. São Paulo: 100/cabeças, 2024.
______________. Nadja. Tradução de Ivo Barroso; fortuna crítica de Georges Sebbag, Marcus Rogério Salgado e Alex Januário. São Paulo: 100/cabeças, 2022.
CÉSAIRE, Aimé. Diário de um retorno ao país natal. Tradução de Lilian Pestre de Almeida. São Paulo: Edusp, 2012.
Coletivo Socialista de Pacientes na Universidade de Heidelberg. SPK: Fazer da doença uma arma. Prefácios de J.P. Sartre, Huber, SPK/PF (H); tradução de Felipe Shimabukuro. São Paulo: Ubu Editora, 2024.
DAMAS, León-Gontran. Pigmentos: Nevralgias. Tradução de Lilian Pestre de Almeida. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Papéis Selvagens Edições, 2023
FALCADE, Paulo Rodrigo Unzer; SOFIATO, Janaina Pelullo. O surrealismo nos primórdios do processo antimanicomial. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental/Brazilian Journal of Mental Health, [S. l.], v. 5, n. 11, p. 14–25, 2013. DOI: 10.5007/cbsm.v5i11.68806. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/68806. Acesso em: 1 out. 2025.
FANON, Frantz. “Escuta, homem branco!, de Richard Wright”. IN: Escritos políticos. Tradução de Monica Stahel. – 1. ed. – São Paulo: Boitempo, 2021
_____________. O olho se afoga/ Mãos paralelas – Teatro Filosófico. Tradução de César Sobrinho – 1ª edição em português. Salvador: Editora Segundo Selo, 2020.
_____________. “Um caso de doença de Friedreich com delírio de possessão”. IN: Alienação e liberdade: escritos psiquiátricos. Traduzido por Sebastião Nascimento; prefácio de Renato Noguera; introdução e notas de Jean Khalifa. São Paulo: Ubu Editora, 2020.
JAMES, C.L.R. Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos. Tradução de Afonso Teixeira Filho. – 1. ed. rev. – São Paulo: Boitempo, 2010.
LÖWY, Michael. “Ernst Bloch – Utopia, Romantismo e Surrealismo”. IN: O cometa incandescente – romantismo, surrealismo, subversão. Tradução, preparação e revisão de Diogo Cardoso e Elvio Fernandes – 1. ed. – São Paulo: 100/cabeças, 2020.
SHATZ, Adam. A clínica rebelde: Uma biografia de Frantz Fanon. Tradução de Érika Nogueira Vieira. – 1. ed. – São Paulo: Todavia, 2024.
TOSQUELLES, François. “Frantz Fanon em Saint-Alban”. IN: Uma política da loucura: e outros textos. Organizado por Anderson Santos. – São Paulo: sobinfluencia edições, 2023.
WRIGHT, Richard. Filho nativo. Tradução de Fernanda Silva e Souza; posfácio de Mário Augusto Medeiros da Silva. – 1ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2024.
Notas
[i] BRETON, André & ÉLUARD, Paul. Dicionário abreviado do surrealismo. Tradução de Diogo Cardoso. São Paulo: 100/cabeças, 2024.
[ii] SHATZ, Adam. A clínica rebelde: Uma biografia de Frantz Fanon. Tradução de Érika Nogueira Vieira. – 1. ed. – São Paulo: Todavia, 2024.
[iii] Nesse sentido, é admirável o esforço em tentar apresentar e conciliar o mínimo de contexto necessário a respeito da Martinica, França e Argélia do século XX para que se possa falar de Fanon. Tal preocupação também é visível com relação aos debates gerais dos franceses da segunda metade do século XX. Tarefa ingrata fadada ao fracasso, mas admirável e que garante as condições mínimas para uma leitura sem tantos pressupostos. Na medida do possível, Shatz está fartamente seguro de um conhecimento bibliográfico bastante sedimentado e que é indicado nas notas de cada capítulo. A obra se mostra como uma grande bússola para diversas questões em torno de Fanon que podem ser melhor exploradas e aprofundadas a partir das direções indicadas por Shatz – o que torna a obra indispensável para aqueles que visam se aprofundar em Fanon. São nada menos que 39 páginas de notas e comentários, bem como um índice remissivo de 31 páginas. Há muito o que se aproveitar.
[iv] O termo remete ao romance homônimo de Richard Wright, muito lido e criticado por Fanon. Sobre isso, diz Shatz: “Fanon era estudante de medicina de uma família de classe média, e ainda assim estava começando a se identificar com a fúria de um personagem da Zona Sul de Chicago e o desejo libertador de reconhecer a própria violência” (Shatz, 2024, p.64). Ver também WRIGHT, Richard. Filho nativo. Tradução de Fernanda Silva e Souza; posfácio de Mário Augusto Medeiros da Silva. – 1ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2024. Uma das críticas encontra-se em FANON, Frantz. Escuta, homem branco!, de Richard Wright. IN: Escritos políticos. Tradução de Monica Stahel. – 1. ed. – São Paulo: Boitempo, 2021. Outra figura utilizada por Shatz nesses momentos é a de James Baldwin – vale conferir seu livro BALDWIN, J. Notas de um filho nativo. Tradução de Paulo Henriques Britto. – 1ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2020. Em janeiro de 1953, Fanon chegaria até mesmo a escrever uma carta para Wright, declarando seu desejo em estudar as “dimensões humanas” na obra do romancista, porém, nunca o respondeu e o livro também nunca foi escrito (cf. Shatz, 2024, p.150). O mapeamento e destaques feitos por Shatz sobre as referências artísticas de Fanon é um ponto forte de seu trabalho.
[v] A imagem que ele tinha dos “fuzileiros senegaleses” era a mesma que ele criticaria em “Pele negra, máscaras brancas”: negros africanos violentos e selvagens que decepavam cabeças e colecionavam orelhas (cf. Shatz, 2024, p.40). Adiante, ele passaria a se reconhecer como próximo a eles a partir de um mesmo sofrimento pela separação dentro do exército francês:“Ele lutava ao lado de soldados africanos que tinham em comum a mesma cor de pele, contra o defensor da civilização ‘ariana’, no entanto o calor de suas batalhas compartilhadas não era suficiente para derreter as hierarquias raciais do exército, uma vez que os antilhanos como ele mesmo eram considerados toubabs honorários: europeus, não africanos” (ibid., p.47). Todos vistos enquanto corpos descartáveis na guerra para salvar a Metrópole.
[vi] Vale conferir a publicação de DAMAS, León-Gontran. Pigmentos: Nevralgias. Tradução de Lilian Pestre de Almeida. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Papéis Selvagens Edições, 2023; bem como o clássico CÉSAIRE, Aimé. Diário de um retorno ao país natal. Tradução de Lilian Pestre de Almeida. São Paulo: Edusp, 2012.
[vii] Ver FANON, Frantz. O olho se afoga/ Mãos paralelas – Teatro Filosófico. Tradução de César Sobrinho – 1ª edição em português. Salvador: Editora Segundo Selo, 2020.
[viii] “Embora não fosse um poeta e não tivesse escrito nenhuma peça desde a época de estudante em Lyon, mantinha a tradição antilhana de contar histórias em sua prosa: um aspecto da Négritude ao qual ele nunca renunciaria” (Shatz, 2024, p.277). Tal tradição oral poderia ser aproximada do par conceitual Erlebnis e Erfahrung – que podem ser traduzidos como “vivência” e “experiência”, respectivamente. Sendo a primeira uma experiência vivida de maneira interior pelo sujeito, enquanto a segunda trataria da comunicação das experiências entre sujeitos de uma mesma comunidade, com a intenção de compartilhar uma sabedoria tradicional. Essa conceitualização das transmissões de saberes entre gerações é recuperada por Fanon em “Os condenados da terra”, quando diz: “Num país colonizado, é preciso seguir passo a passo a emergência da imaginação, da criação nas canções e nos relatos épicos populares. O contador corresponde, por aproximações sucessivas, à expectativa do povo, e caminha, aparentemente solitário, mas na verdade apoiado pelo seu público, em busca de modelos novos, de modelos nacionais” (apud ibid., p.327). Como Shatz, notamos uma proximidade com o ensaio de Walter Benjamin, “O narrador”: “Aqui há ecos do ensaio clássico de Walter Benjamin sobre o contador de histórias, no qual ele descreve a tradição desaparecida da contação de histórias como uma ‘forma artesanal de comunicação’ que promove ‘instrução’ e ‘lembrança épica’, e conecta os ouvintes a gerações passadas” (ibid., p.537, nota 19). Ver BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. IN: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet; prefácio de Jeanne Marie Gagnebin – 7. ed. – São Paulo: Brasiliense, 1994. Em outro momento, Shatz reforça a presença da oralidade nos textos de Fanon no momento em que ditava para Manuellan: “Ele nunca se sentava, e nunca perguntava o que ela achava, mas ‘dizia coisas que me acertavam nas entranhas’. Ele muitas vezes a lembrava de um ator, lendo suas falas com um efeito dramático. […] Os escritos de Fanon, que costumam ser citados por rappers de língua francesa, são um registro do que eram essencialmente performances de textos falados” (p.288). Esses trechos, obtidos da própria obra, parecem demonstrar suficientemente a falta de maior meditação e reflexão de Shatz em relação ao período de Fanon em Lyon e aos seus escritos e experiências teatrais.
[ix] Infelizmente, utilizado de maneira pejorativa. Parece-nos necessário resgatar a noção de utopia enquanto programa que visa o lugar do “não-ainda” construído a partir de transformações no presente, tal como elaborou o filósofo Ernst Bloch. Vale o comentário de Michael Löwy sobre o autor de “Espírito da utopia” e “Princípio esperança”: “O que está em jogo nessa modalidade específica, e tipicamente romântica, da dialética entre o passado e o futuro é a descoberta do futuro nas aspirações do passado na forma de uma promessa não cumprida […]. Assim, não se trata de se abismar em uma contemplação sonhadora e melancólica do passado, mas sim de torná-lo uma fonte viva de ação revolucionária, de uma práxis orientada para a conquista da utopia” (2020, p.93, grifos do autor). Ver Ernst Bloch – Utopia, Romantismo e Surrealismo. IN: LÖWY, Michael. O cometa incandescente – romantismo, surrealismo, subversão. Tradução, preparação e revisão de Diogo Cardoso e Elvio Fernandes – 1. ed. – São Paulo: 100/cabeças, 2020.
[x] Ver Coletivo Socialista de Pacientes na Universidade de Heidelberg. SPK: Fazer da doença uma arma. Prefácios de J.P. Sartre, Huber, SPK/PF (H); tradução de Felipe Shimabukuro. São Paulo: Ubu Editora, 2024.
[xi] Ver TOSQUELLES, François. Frantz Fanon em Saint-Alban. IN:Uma política da loucura: e outros textos. Organizado por Anderson Santos. – São Paulo: sobinfluencia edições, 2023.
[xii] O trecho completo diz o seguinte: “Existem poucos homens tão contestados quanto Jacques Lacan. Poderíamos dizer, parodiando a expressão, que entre os psiquiatras existem os partidários e os adversários de Lacan. Seria ainda necessário acrescentar que os adversários são, de longe, os mais numerosos… O que não parece incomodar em nada o ‘lógico da loucura’. Apesar de semanticamente inaceitável, essa combinação expressa certa realidade. Pessoalmente, se tivéssemos que definir a posição de Lacan, diríamos que consiste numa defesa obstinada dos direitos nobiliárquicos da loucura” (Fanon, 2020, p.370-1, grifo nosso). Como se vê, a ironia do trecho se refere à indiferença de Lacan em relação aos seus adversários, seguido por um acordo com o paradoxo da expressão proferida. A nota 124 indica a provável origem da expressão: “Relembrando seus anos de estudo com Lacan, E assinala em sua resposta: ‘Eu vivia aquele momento em que, incertos, buscamos a nós mesmos e estava prestes a me lançar de corpo inteiro a uma aventura metafísica, ao longo da qual viria a encontrar, por trás de Heidegger e Husserl, Hegel, e, para além de Hegel, a lógica da loucura. Esse caminho, que foi talvez o que ele [Lacan] escolheu, eu deliberadamente optei por não trilhar” (ibid., grifo nosso). Ver FANON, Frantz. Um caso de doença de Friedreich com delírio de possessão. IN: Alienação e liberdade: escritos psiquiátricos. Traduzido por Sebastião Nascimento; prefácio de Renato Noguera; introdução e notas de Jean Khalifa. São Paulo: Ubu Editora, 2020.
[xiii] Para além do famoso grupo francês do começo do século XX, liderado por André Breton, temos, por exemplo, os integrantes da revista Tropiques, como Aimé e Suzanne Césaire, para mencionarmos figuras conhecidas por Fanon.
[xiv] Trata-se do mesmo debate feito por Fanon, porém, simplificado por Shatz na nota de rodapé que encerra a citação supracitada: “Fanon também jamais endossaria a crítica abrangente da ‘razão’ como um instrumento de dominação ocidental: a razão também era a arma que os fracos podiam voltar contra seus opressores” (2024, p.80). O autor também não parece concordar com uma dialética da razão, formulada por Theodor Adorno e Max Horkheimer em Dialética do Esclarecimento (1947), na qual convivem simultaneamente e disputam “razão instrumental” e “razão” (emancipatória, por assim dizer): “Em contraste com os pensadores lúgubres da Escola de Frankfurt, Fanon destacou as resistências ao raciocínio instrumental ou colonial, e as localizou, sobretudo, nos corpos dos colonizados” (ibid., p.412). Não nos parece o caso de contraste, mas de complementaridade – esse debate, porém, não terá espaço aqui.
[xv] Ver BRETON, André. Nadja. Tradução de Ivo Barroso. São Paulo: 100/cabeças, 2022. Além disso, ver também FALCADE, Paulo Rodrigo Unzer; SOFIATO, Janaina Pelullo. O surrealismo nos primórdios do processo antimanicomial. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental/Brazilian Journal of Mental Health, [S. l.], v. 5, n. 11, p. 14–25, 2013. DOI: 10.5007/cbsm.v5i11.68806. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/cbsm/article/view/68806. Acesso em: 1 out. 2025.
[xvi] Adiante, no livro, Shatz voltará à sua qualificação de “romantização” da loucura, mas, dessa vez, voltada para Lacan: “Ainda que Fanon sempre tivesse evitado a romantização da loucura por psicanalistas como Lacan, estava começando a encará-la como algo além de uma patologia da liberdade” (2024, p.268).
[xvii] Além disso, no Brasil, não nos faltam exemplos de como a loucura é apreendida para além de romantizações. Vale conferir, por exemplo, o trabalho feito no Museu de Arte Osório César (MAOC), em Franco da Rocha-SP, localizado no antigo Complexo Hospitalar do Juquery – já considerado o maior hospital psiquiátrico do Brasil. Sem falar nos trabalhos, por exemplo, de Lélia Gonzalez e Neusa Santos Souza – psicanalistas que se apropriaram dos escritos de Fanon.
[xviii] Ver JAMES, C.L.R. Os jacobinos negros: Toussaint L’Ouverture e a revolução de São Domingos. Tradução de Afonso Teixeira Filho. – 1. ed. rev. – São Paulo: Boitempo, 2010.
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