A arte que semeia a consciência socioambiental
Espetáculos de teatro, grafites, músicas, quadrinhos… Artistas e coletivos usam formas criativas de educar sobre a crise climática e denunciar seus impactos. Contam histórias de iniciativas como as de hortas urbanas. A partir das cosmovisões, tecem o pertencimento à natureza
Publicado 13/08/2025 às 16:58

Por Lucas Veloso, no Nonada
Um grupo de mulheres transforma terrenos abandonados em hortas comunitárias. A história não é roteiro de série, nem ficção: é o trabalho diário do coletivo Mulheres do GAU (Grupo de Agricultura Urbana). Entre trilhos de trem, entulhos e pedras, um pedaço de terra insiste em brotar vida pelas mãos de mulheres negras e migrantes nordestinas que há décadas vivem na periferia da zona leste de São Paulo, em um bairro que também leva o nome de santo: São Miguel Paulista.
Foi a partir dessa realidade que nasceu o espetáculo de dança Teimar Até que Brote, montagem do Coletivo Corpo Aberto que reconstrói, em cena, as histórias das agricultoras urbanas que cultivam alimentos onde a cidade só via abandono.
O público é convidado a acompanhar esse processo coletivo de ocupação, cuidado e resistência urbana, e recebe, ao fim, frutas colhidas nas próprias hortas e orientações práticas para montar uma composteira caseira. “O teatro pode ser fértil, pode ser chão. A arte não termina na coxia, mas segue, enraizando nos gestos cotidianos, na forma como comemos, cultivamos e cuidamos”, afirma a diretora Verônica Avellar.

Para a intérprete e produtora Danielle Rocha, a arte não substitui o papel da educação formal, mas tem potência para provocar e dar visibilidade a práticas transformadoras. “Podemos ser pontes para que trabalhos como o das Mulheres do GAU cheguem aos ouvidos de mais e mais pessoas.”
Já o escritor indígena, músico e cineasta Cristino Wapichana aposta na literatura como ferramenta de sensibilização socioambiental em escolas e aldeias. No projeto Encontros Literários para a Infância com Cristino Wapichana, ele apresenta histórias, poemas, cantigas e narrativas que valorizam a diversidade cultural e a escuta das infâncias, com foco nas cosmologias indígenas.

Por meio de mediações de leitura e conversas com educadores, o projeto promove reflexões sobre representatividade, meio ambiente e respeito aos saberes indígenas, propondo uma experiência afetiva e coletiva de aprendizado. “Falar com as crianças e com quem educa é uma forma de defender a infância e o direito de aprender sobre outras formas de viver e sonhar”, afirma. Em suas obras, a natureza é sempre personagem central, viva e encantada. Diante da crise climática, sua proposta é formar uma consciência crítica desde cedo, integrando ancestralidade, imaginação e cuidado.
À exemplo das iniciativas anteriores, por todo o país, coletivos e grupos culturais ouvidos pelo Nonada Jornalismo se mobilizam para transformar arte em ferramenta de educação socioambiental e reflexão sobre a emergência climática.
Espetáculos de teatro que simulam eventos extremos, grafites que retratam os impactos das enchentes, músicas que denunciam a poluição dos rios são algumas das estratégias criativas usadas para traduzir as questões de clima em linguagem acessível e mobilizadora. Com atuação em escolas públicas, praças e comunidades periféricas, o objetivo é chamar a atenção para locais onde os efeitos das mudanças climáticas são sentidos de forma mais urgente.
Pertencimento
“Demorei para entender o que significavam as palavras ‘pertencimento’ e ‘amazônida’”, afirma a artista visual, quadrinista e professora de origem indígena Tai Silva. Crescida entre tradições da região Norte, mas impactada por visões coloniais e distorcidas vindas do chamado sul do país, que inclui o Sudeste, Sul e Centro-Oeste, ela passou por um processo de reencontro com suas raízes. Esse caminho marcou sua produção artística, especialmente nos quadrinhos e ilustrações que dão visibilidade a formas de vida amazônicas. “Criar não é somente um ato de expressar o que eu sinto, é também um ato espiritual de carregar comigo muitas vozes, humanas ou não”, avalia a artista paraense.
Em obras como Onde Habita o Medo, Tai denuncia os impactos do discurso desenvolvimentista imposto por grandes corporações à Amazônia, e destaca como espiritualidade, ancestralidade e coletividade são fundamentos da resistência territorial. “Quando mantemos nossa espiritualidade viva, nos relacionamos com mais respeito e afeto com todos que nos cercam. Porque entendemos que cada um é importante para o funcionamento do bem-viver”, explica. Em suas histórias, a crise climática não é retratada como um fenômeno abstrato, mas como parte da violência colonial que se repete por meio da destruição ambiental, da marginalização de saberes indígenas e do apagamento de territórios.

Na sala de aula, em Belém (PA), Tai também aposta na arte como ferramenta pedagógica. Lecionando para jovens e universitários, ela trabalha com temas socioambientais a partir de um olhar amazônida. “O design amazônico precisa ser ensinado pelo nosso olhar, não pelo olhar do estrangeiro”, defende. Ao utilizar os quadrinhos em contextos educativos, ela proporciona que crianças e adolescentes se vejam nas narrativas e possam refletir sobre seus próprios territórios. “Nem sempre eles conseguem transmitir as coisas pela palavra, mas com ferramentas criativas, podem achar outros modos de se expressar”.
Para Tai, o artivismo – junção de arte com ativismo – é também uma forma de enfrentamento: “Temos obrigação de questionar estruturas opressoras e lutar contra raízes profundas semeadas pelo eurocentrismo”.
Diante da exclusão de artistas indígenas em espaços de decisão e do racismo institucional ainda presente na política cultural brasileira, sua atuação é também política. Participando de coletivos como o MARPARÁ e o Quadrinistas Indígenas, que ela fundou, Tai constrói redes de apoio e formação crítica que fortalecem a luta por território, visibilidade e memória. “Conhecer o território dos meus ancestrais, escutar suas histórias, são peças fundamentais para ver o passado e aprender com ele. Sou Amazônia onde eu estiver”, indica.
Imagem, memória e território

Entre os muitos caminhos possíveis para se fazer educação ambiental a partir da arte, dois se entrelaçam com força na Amazônia: o da imagem e o da memória. Para Tai Silva, criar é também carregar vozes, humanas e não humanas, como forma de expressar o pertencimento a um território ancestral muitas vezes marginalizado pelas lógicas do sul do país. “Criar não é somente um ato de expressar o que eu sinto, é também um ato espiritual de carregar comigo muitas vozes”, afirma.
Em seus quadrinhos e ilustrações, a Amazônia não é pano de fundo, mas protagonista de lutas, afetos e espiritualidade, como na obra Onde Habita o Medo, que denuncia os impactos da exploração empresarial sobre o modo de vida amazônida e reafirma a centralidade da coletividade e dos saberes tradicionais no enfrentamento da crise climática.
A mesma percepção atravessa o trabalho da fotógrafa e cantora Marcela Bonfim. Formada em economia, ela só se reconheceu como mulher negra ao migrar para Rondônia, onde iniciou o projeto Re(conhecendo) a Amazônia Negra. Suas imagens recuperam rostos e histórias invisibilizadas em quilombos, terreiros e penitenciárias da região.
“De que fotografia a gente fala? Para quem mostramos essas imagens? O que estamos querendo com isso?”, questiona. “Comecei a me ver a partir do momento em que comecei a ver o outro.” Para ela, a fotografia é um lugar de convívio e construção conjunta, um exercício político e pedagógico que desafia estereótipos.
Tanto Tai quanto Marcela transitam entre linguagens para ampliar o alcance de suas mensagens. No campo da música, Marcela homenageia figuras como Tereza de Benguela, resgatando histórias de liderança negra apagadas pela narrativa oficial. “Cantar a Amazônia Negra significa tocar em muitas histórias de invisibilidades como a de Tereza”, diz.

Já Tai aposta no poder dos quadrinhos em contextos educativos, sobretudo entre crianças e jovens. “Nem sempre eles conseguem transmitir as coisas pela palavra, mas com ferramentas criativas, podem achar outros modos de se expressar”.
As duas artistas entendem a arte como um campo de disputa, estética, política e territorial. Para Tai, o artivismo é uma ferramenta de enfrentamento direto ao eurocentrismo presente nas políticas culturais e educacionais brasileiras. “Temos obrigação de questionar estruturas opressoras e lutar contra raízes profundas semeadas pelo eurocentrismo”, afirma. “Sou Amazônia onde eu estiver”, resume.
Marcela, por sua vez, afirma que a educação só se torna transformadora quando há vínculo. “‘A Amazônia Negra’ contribui para que esse projeto seja muito profundo, porque ela está num lugar onde existem espaços de afetividade, mas também de invisibilização. Um projeto que vem para reconhecer e tratar essas imagens no sentido de trazer um aspecto pedagógico, de visibilização, de atenção, de afetividade, de respeito, de dignificação, não tem maior contribuição do que isso”.
‘O Estado não pode invisibilizar’
Coordenador pedagógico da Bienal das Amazônias, educador e curador paraense, Emerson Silva Caldas acredita que a emergência climática não pode ser dissociada das violências coloniais, das desigualdades sociais e da exploração histórica de corpos e territórios. “Falar de clima, da Amazônia, é também falar de como temos sido explorados inclusive pelas imagens”, afirma.
Para o pesquisador, é preciso defender uma ecologia de pensamento que reconheça o rio, a floresta e os saberes ancestrais como agentes de vida e resistência. “O rio Gurupi foi agente da liberdade. A floresta, as águas, as plantas também são agentes”.
Crítico à condução das políticas culturais e ambientais às vésperas da COP 30, Emerson aponta para a exclusão de artistas amazônidas dos espaços de decisão. “O Estado não pode invisibilizar quem faz arte na Amazônia e em favor do planeta”. De acordo com ele, as políticas públicas efetivas exigem editais com recorte racial, ocupação de cargos institucionais por pessoas negras e indígenas e mecanismos de escuta comprometidos com o território.
Aprendendo com o corpo, o som e os resíduos

Criadora dos versos “Baby, é só mais uma armadilha / Cuidado na trilha!” ou “Selvagem como o vento/ De La Cordillera Flow, vive livre!”, a rapper e compositora Brisa Flow transformou sua trajetória pessoal em linguagem educativa. Mulher indígena de retomada, nascida em Sabará (MG) e de origem mapuche, ela vê na arte uma extensão da oralidade ancestral e da pedagogia dos seus. “A gente também educa. A gente também transforma”, afirma.
“Quando comecei a fazer rap, entendi que podia falar sobre a minha identidade. Porque eu não via isso na escola. Não via pessoas indígenas, mulheres indígenas, na escola, nem no currículo, nem na história, nem nas aulas de arte. Então fui trazendo isso para a minha música, para a minha pesquisa”. Filha de artesãos chilenos, Brisa cresceu cercada por música e reconhece nos saberes da sua família, como o avô que tocava em banda e fabricava instrumentos, um legado de educação informal invisibilizado pelas estruturas tradicionais.
Ao usar o rap como plataforma para falar de identidade, ancestralidade e memória, ela ocupa um espaço raramente aberto a mulheres indígenas, especialmente em festivais de grande porte como o Lollapalooza, onde foi a primeira artista indígena a se apresentar. “Aprendi ouvindo a mata, ouvindo os mais velhos. Isso também é aprender”, observa.
Para ela, é urgente descolonizar a ideia de educação e reconhecer as múltiplas formas de ensinar e aprender que vêm dos povos indígenas. “Hoje colocam floresta e indígena nas campanhas, mas é só estética. É greenwashing — uma maquiagem verde que finge compromisso com o meio ambiente, mas serve mais para propaganda do que para mudanças reais. Enquanto isso, quem tem o conhecimento de verdade continua sendo silenciado”.
A mesma urgência de transformação se apresenta no espetáculo Reciclown Circus, da companhia Raros Circo e Teatro, de Ribeirão Preto (SP). Na peça, um gari e um catador de recicláveis se encontram em um dia comum de trabalho e, entre cenas de humor e técnicas circenses, convidam o público a refletir sobre o lixo, o consumo e o cuidado com o planeta. “Queríamos tocar o público, especialmente crianças e adolescentes, sem pesar, mas com profundidade”, afirma Fábio Brasileiro, artista e administrador da companhia.

Malabares com objetos reutilizáveis, palhaçaria clássica e acrobacias se misturam a cenas poéticas para mostrar que tudo pode ser recriado, inclusive as formas de se relacionar com o meio ambiente. “Acreditamos que a arte tem esse poder: tocar, conscientizar e transformar”. Desde 2021, o espetáculo já foi apresentado mais de 200 vezes em escolas, praças, unidades da Fundação CASA e comunidades, sempre seguido de conversas e oficinas com o público. “A resposta tem sido extremamente positiva. Muitos professores nos contam que as crianças passaram a separar o lixo e se interessar mais pela reciclagem”, conta Fábio.
Ao dar protagonismo a personagens como garis e catadores, o grupo também busca romper com a invisibilização cotidiana. “Era essencial trazer essas figuras com afeto e dignidade. O mais bonito é ver como as crianças reagem: muitas querem até ‘ser garis’ quando crescerem. Isso mostra que, quando a arte toca de verdade, ela transforma”. Além das apresentações, o grupo promove rodas de conversa e oficinas com educadores, ampliando o alcance pedagógico da peça. “É ali que o espetáculo continua de outra forma, no olho no olho, na escuta”, explica Fábio.
Para ele, a arte popular, especialmente o circo, tem um papel fundamental na democratização do acesso à cultura e na formação ambiental em territórios periféricos. “O riso, o encantamento, a surpresa… tudo isso abre caminhos pro diálogo. Mas ainda faltam políticas públicas que sustentem essas ações. A cultura precisa ser vista como um direito, e a arte popular tem que estar no centro dessa conversa.”
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Sobre os questionamentos acerca das políticas públicas para o setor em prol de ações de arte e cultura em prol do meio ambiente, a reportagem entrou em contato com o Ministério do Meio Ambiente, que não respondeu aos questionamentos enviados. Já o Ministério da Cultura reconheceu a arte como ferramenta central na formação crítica sobre a crise climática e prepara, para 2025, o Programa Cultura, Meio Ambiente e Mudança do Clima. Em nota, o órgão destacou iniciativas como os Pontões de Cultura na Amazônia e prevê novas ações em parceria com outros ministérios, além disso, avaliou que a emergência ambiental é também uma crise cultural, que exige escuta e políticas comprometidas com a diversidade.
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