76 anos de Elis, e um sonho de democracia nos trópicos

Nos anos de chumbo, um espetáculo singular reivindicou o resgate não daquilo que não existe mais, mas do que havia sido roubado. Uma releitura além dos símbolos nacionais é, ainda hoje, lutar pelo que está aí, vivo, e solto nas ruas

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Por Renato Contente, no Suplemento Pernambuco | Arte: Eduardo Azerêdo

Sombrios são os tempos em que símbolos-chave de um país são raptados pela gramática do autoritarismo. Uma gramática pestilenta, a serviço de um projeto de poder genocida e obscurantista, que distorce sentidos e deteriora sensibilidades — como as que muitos de nós, não há tanto tempo, partilhávamos em relação a camisetas, bandeiras e outros artigos sob a coloração verde-amarelo-branco-e-azul. Os dias eram assim em 1980, quando a ditadura militar, já mal das pernas, caminhava para um fim formalizado, que ocorreria cinco anos depois. Após anos de violenta mutação semiótica, não apenas a bandeira e o hino nacionais ativavam gatilhos de terror na população a par das atrocidades do regime, mas a própria ideia de nação/país tal qual havíamos sido obrigados a naturalizar.

Elis Regina estava a par dessa saturação. Ela via vir vindo no vento o cheiro de uma estação chamada democracia, mas sabia que esta só chegaria através de esforços contínuos e coletivos, da ordem do simbólico e da práxis política. A retomada dos símbolos sequestrados pela ditadura era um passo que precisava ser dado, como também o eram as movimentações dos metalúrgicos no ABC Paulista, a volta das eleições diretas e uma maior participação política das minorias. Para além de uma resistência estética, Elis atuou em cada uma dessas frentes, que ajudariam a fundar a nova e quebrantável democracia brasileira.

Em março de 1980, a menos de dois anos de sua morte precoce, Elis ousou encenar no palco a delirante fantasia de se viver uma democracia sob os trópicos. Com o espetáculo Saudade do Brasil, ela reivindicava a posse coletiva não apenas de símbolos nacionais carcomidos pela ditadura, como a Aquarela do Brasil de Ary Barroso e a bandeira que instituía um irônico “ordem e progresso”, mas também a possibilidade de um projeto de futuro para os brasileiros. Era importante que outros Brasis estivessem ao seu lado na empreitada. Pessoas que representassem aqueles a quem ainda hoje são destinadas elaboradas técnicas necropolíticas. Para isso, foram convocados jovens aspirantes a artistas para compor um corpo de balé que refletisse os aspirantes a cidadãos que compunham, e compõem, a fatia mais corpulenta da população brasileira.

Saudade do Brasil era o arremate de uma trilogia de espetáculos e discos que constituíam uma potente reação estética à ditadura militar. Os “volumes” anteriores, o lúdico Falso brilhante (1976) e o soturno Transversal do tempo (1978), já eram tentativas elaboradas de uma oposição artística ao regime, que Elis vinha ensaiando com disciplina desde 1973. Depois do infeliz episódio em que fora obrigada a cantar em um evento da III Olimpíada do Exército, em 1972, a intérprete fora “enterrada” por Henfil no Pasquim, e alçada à terrível categoria de namoradinha da ditadura (o tempo, sempre implacável, evidenciou os reais talentos para exercer essa titularidade). Elis dedicaria quase todos os seus projetos seguintes para estancar essa hemorragia moral, e a trilogia de espetáculos, bem como seus posicionamentos incisivos na imprensa, responderam a acusação fraudulenta à altura.

Entre alertas de SOS a marcianos e uma mensagem na garrafa aos filhos daquela geração, Elis desdobrava no palco as fissuras de um país em estado permanente de entrada em parafuso. Mais do que evocar um país anterior à ditadura (entre JKs e Jangos), a saudade de que falava era a de um Brasil do futuro. Em entrevista, ela elabora acerca dessa saudade: “Não é aquela saudade que tá no dicionário, saudade de uma coisa que acabou, de um negócio que não existe mais. Não é uma coisa nostálgica, melodramática… É saudade de uma coisa que tá viva, que existe, que tá solta na rua, é palpável e é possível de ser reconquistada na medida em que a gente se empenha no trabalho de reconstruí-la”. Em outra entrevista, ela complementa: “A gente não sabe como o país será, mas está claro que desse jeito não está agradando. Procuramos um certo aconchego perdido e é preciso explorar ao máximo as sensações, aquele cheiro, aquele gosto que não volta mais. Para isso é preciso recorrer à memória, e no espetáculo também recorremos a ela. É a rua que a gente morava, o carnaval que a gente viveu, o gosto da cozinha da mãe, o cheiro de mato, o gosto de bala”.

Quando descreve essa saudade enquanto “coisa que tá viva”, “solta na rua”, Elis identifica com perspicácia a ebulição de desejos que compunham o tecido social do Brasil de então. Desejos cheios de potência, mas bastante difusos, em desalinho pelo ar, como diagnosticara o filósofo francês Félix Guattari em sua visita ao país, em 1982, ano em que Elis morreu. Uma pena não terem se conhecido, como ambos conheceram a Lula, por exemplo, porque Elis era o que Guattari e seu parceiro Gilles Deleuze diziam estar à procura: uma aliada dos inconscientes que protestam. Em outra entrevista sobre o show, Elis deixa essa identificação mais clara: “Existe uma coisa na cabeça da gente chamada inconsciente coletivo. Um tal de Jung espalhou por aí, coisa da modernidade. A gente não pode violentar muito isso, porque a gente perde a identidade, a gente se perde”.

Ela estava ciente de que a maneira mais potente de comunicar isso seria produzindo fricções sobre esse inconsciente lesionado. Saudade do Brasil retrabalhou energicamente essa instância coletiva. Não apenas pelos figurinos e cenários em verde-amarelo-azul-e-branco, ou pela recriação crítica de canções nacionalistas (abrir as cortinas do passado, afinal, era dever cívico diante de uma ditadura que a tudo ludibriava), ou mesmo pela camiseta do espetáculo censurada (preta, bandeira do Brasil ao centro, onde ao invés de “ordem e progresso”, lia-se uma poderosa vingança semiótica: “Elis Regina”; como desaforo derradeiro, a artista foi enterrada com esta camisa). A energia despendida no espetáculo foi tão significativa que ainda podemos vê-lo como uma espécie de “trincheira do simbólico” em tempos de protofascismo, referencial de estratégias para retomarmos algo muito valioso que viemos perdendo de maneira nefasta nos últimos anos, mas que ainda está por aí, vivo, solto nas ruas, embora estas hoje estejam vazias.

Quatro décadas depois, ainda estamos repletos de saudades do Brasil. Nossa arma permanece sendo o que a memória guarda e reinventa, mas também a nossa capacidade de mobilizar esses desejos em ebulição. A despeito de tanta dor, vamos saber no ato quando for a hora de redescobrir o gosto e o sabor da festa.

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