Vecina: os porquês da volta da dengue, e as saídas

Um dos grandes sanitaristas brasileiros analisa a volta da epidemia. A urgência de uma vacina brasileira e os limites da japonesa. O papel crucial das prefeituras na prevenção. A relação com as mudanças climáticas e a urbanização desigual

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O Brasil se depara com uma epidemia de dengue que parece incontrolável. Mesmo com a retomada de políticas de vigilância sanitária, a doença avançou para um novo patamar. Além disso, globalizou-se. De doença de verão de países do hemisfério sul, agora chega aos EUA e Europa. No Brasil, também passou a atingir regiões e períodos do ano antes imunes à presença do mosquito transmissor.

Gonzalo Vecina, sanitarista e ex-presidente da Anvisa, sustenta: “a explosão de casos de dengue certamente se deve às condições climáticas”. A situação chegou a tal ponto que o Distrito Federal, outrora uma das regiões alheias à doença, declara emergência sanitária e cogita usar o exército para executar tarefas de prevenção à reprodução do mosquito.

Vecina saúda a chegada das vacinas do laboratório japonês Takeda, mas alerta que o Brasil deve empenhar o máximo esforço em usar todas as táticas de prevenção possíveis. Afinal, a empresa só pode entregar 750 mil doses neste primeiro momento e mesmo até o final do o número não passará de 6,4 milhões.

“Além disso, é uma vacina que não foi testada nem nas crianças mais novas, nem nos idosos. Mas é o que temos. E vamos usar para quê? Vamos usar para conter o vírus em algumas regiões em que haja uma explosão de casos. Essa é a ideia e vamos ter de usar muita inteligência epidemiológica para colocá-la onde possa ter mais efeitos positivos”, observou Vecina.

O médico e professor da Faculdade de Saúde Pública da USP reafirma a importância do imunizante que o Instituto Butantan desenvolve há anos. Não só se trata de uma questão de soberania sanitária como objetivamente se apresenta como alternativa mais eficiente e econômica.

“A vacina da Takeda foi testada, está aprovada, não tem efeitos colaterais de monta, embora o número de casos do sorotipo 3 e 4 sejam insuficientes para tomar decisões de dar um banho de vacina na população brasileira. Esse é um problema, mas ela foi muito bem com os sorotipos 1 e 2 e não apresentou efeitos colaterais. Portanto, deverá ajudar a combater um aumento da pandemia de dengue. E temos de esperar mesmo a vacina do Butantan, que parece ser melhor”, diz Vecina, referindo-se ao fato de o imunizante brasileiro sinalizar eficácia contra os 4 tipos de dengue em sua agora avançada fase de testes.

Quanto às razões de avanço do mosquito transmissor pelo território nacional, Vecina não tem dúvidas em atribuí-la a um processo de desenvolvimento até hoje desordenado e excludente, cujas raízes são visíveis. “Nós tivemos um processo violento de urbanização pela migração, pela política de reindustrialização da ditadura de 1964. Assim, o mosquito se redomiciliou. Hoje ele está domiciliado em boa parte do país e é isso que leva à explosão de casos de dengue e também à existência dos mosquitos que levam o vírus. Por fim, a explosão de casos se dá pelas condições de temperatura. Quanto mais quente, mais chuva, mais casos, mais mosquitos. Não tem nenhuma dúvida sobre isso”.

Outro capítulo é a prevenção. Ela exige uma forte atuação do poder público nos territórios propícios à reprodução do mosquito. Resta saber se governos condicionados pela mentalidade administrativa que reduz o tamanho do Estado adotarão uma visão adequada do assunto. O apelo ao exército por parte do governo do DF parece revelar limitada compreensão do problema.

“As outras políticas (além da vacina) são o controle do mosquito, muita informação para a população, para que a população busque evitar o acúmulo de águas em qualquer local. E também as autoridades, principalmente municipais, devem atuar em cemitérios, ferro velhos, locais em que se pode ter acúmulo de água, enfim. E isso é uma tarefa eminentemente municipal: controlar o número de formas aladas do mosquito, através de armadilhas e fazendo inspeção sanitária. Basicamente, é essa a política que nós temos de fazer”, resume Vecina.

No plano mais amplo, o tema se relaciona diretamente com os últimos debates internacionais sobre saúde pública, no contexto de um mundo que saiu de uma traumática pandemia e discute novas pactuações globais para lidar com futuras crises, dadas como certas pelas autoridades sanitárias. Na presidência do G-20 em 2024, o Brasil terá a oportunidade de avançar no sentido proposto pela OMS, reforçado também nos discursos da ministra Nísia Trindade. Mas, diante dos atuais dilemas mundiais, Vecina não é otimista.

“Eu sou um pouco cético em relação à possibilidade de a gente desenvolver essas alternativas. Não pela capacidade, pela liderança do Brasil, principalmente hoje, com o ministério da Saúde melhor conduzido. Teríamos grande condição de chegar a isso. Mas eu acho que o ambiente mundial não está muito positivo para conseguirmos realizar tamanha coordenação e enfrentar as questões relativas aos desastres sanitários que sobrevirão”.

Em primeiro lugar, por que temos uma explosão de casos de dengue?

A explosão de casos de dengue certamente se deve às condições climáticas. A dengue é dependente da existência do mosquito. Sem mosquito não tem casos de dengue. E o mosquito necessita de água, limpa e parada, para se reproduzir. Sem água limpa, parada, ele não se reproduz e nós não temos casos de dengue. Portanto, chuva, acúmulo de água parada em determinadas condições, no fundo de nossas casas, em outras áreas urbanas, fazem com que o mosquito se espalhe.

Nós reintroduzimos o mosquito em áreas urbanas no Brasil nos anos 80. Até o início de 1980, nós não tínhamos Aedes aegypti urbanizado. E aí nós reurbanizamos o Aedes aegypti. E por que isso aconteceu? Aconteceu porque nós começamos a descuidar das cidades, que cresceram muito durante a década de 70. Nós tivemos um processo violento de urbanização pela migração, pela política de reindustrialização da ditadura de 1964. Assim, o mosquito se redomiciliou. Hoje ele está domiciliado em boa parte do país e é isso que leva à explosão de casos de dengue e também à existência dos mosquitos que levam o vírus.

Por fim, a explosão de casos se dá pelas condições de temperatura. Quanto mais quente, mais chuva, mais casos, mais mosquitos. Não tem nenhuma dúvida sobre isso.

Como observou a chegada das vacinas de dengue do laboratório japonês Takeda?

Nós já tivemos uma primeira vacina, que era a vacina da Sanofi, que se revelou inadequada. Ela acabou até sendo comprada, o estado do Paraná comprou e andou aplicando, mas tinha problemas por causa da questão de só servir para quem já tinha tido dengue. Agora, apareceu a da Takeda. E o Instituto Butantan está testando a sua, já há 4 ou 5 anos.

O problema é que nós não conseguimos um número suficiente de casos para fazer todos os testes, particularmente de dengue do tipo 4. São 4 vírus, 4 sorotipos diferentes, nós temos de testar contra os 4 sorotipos. E faltou o sorotipo 4 na fase de testes. Agora eles estão conseguindo chegar no número adequado de pessoas testadas. A vacina da Takeda foi testada, está aprovada, não tem efeitos colaterais de monta, embora o número de casos do sorotipo 3 e 4 sejam insuficientes para tomar decisões de dar um banho de vacina na população brasileira.

Esse é um problema com a vacina da Takeda, mas ela foi muito bem com os sorotipos 1 e 2 e não apresentou efeitos colaterais, portanto, deverá ajudar a combater um aumento da pandemia de dengue. E temos de esperar mesmo a vacina do Butantan, que parece ser melhor, que também só exigiria uma dose ao invés de duas, como no caso da japonesa.

O montante adquirido pelo Estado brasileiro é suficiente para um combate à dengue agora?

As 6 milhões de doses são poucas, é óbvio. No entanto, o laboratório não tinha para vender mais, vendeu o que podia vender. A quantidade produzida não é suficiente para atender um país de 200 milhões de habitantes. Além do mais, requer duas doses. Assim, nós compramos quantidade suficiente para vacinar 3 milhões de pessoas.

Além disso, é uma vacina que não foi testada nem nas crianças mais novas, nem nos idosos. Mas é o que temos. E vamos usar para quê? Vamos usar para conter o vírus em algumas regiões em que haja uma explosão de casos. Essa é a ideia e vamos ter de usar muita inteligência epidemiológica para colocá-la onde possa ter mais efeitos positivos.

Quais outras políticas sanitárias devem se realizar para conter a dengue no país?

As outras políticas são o controle do mosquito, muita informação para a população, para que a população busque evitar o acúmulo de águas em qualquer local. E também as autoridades, principalmente municipais, devem atuar em cemitérios, ferro velhos, locais em que se pode ter acúmulo de água, enfim. E isso é uma tarefa eminentemente municipal: controlar o número de formas aladas do mosquito, através de armadilhas e fazendo inspeção sanitária. Basicamente, é essa a política que nós temos de fazer.

Além disso, existem duas hipóteses interessantes: uma é o uso de mosquitos estéreis, que são esterilizados quimicamente ou com radiação e a possibilidade do uso da wolbachia, uma bactéria que, contaminando os ovos, produz sua morte, inviabiliza esses ovos. É uma aposta desenvolvida na Fiocruz muito interessante. Nós não conseguimos ainda realizar testes em campo suficientemente amplos para poder orientar uma política pública de uso da wolbachia e de mosquitos estéreis.

Existem experiências pontuais que foram positivas, mas são pontuais. Vamos ver o que vai acontecer. Outra possibilidade é o uso de determinado tipo de armadilhas. Vamos ver o que é possível fazer em relação a essas novas armadilhas que estão sendo disponibilizadas.

Como observa o imunizante desenvolvido pelo Instituto Butantan? Qual sua importância para conter a dengue no país?

De fato, reside aí uma expectativa muito grande, porque em suas duas primeiras fases de testes verificou-se segurança e eficácia, com um número reduzido de pessoas sendo testadas. Foi muito positivo. A fase 3, ampliação da fase 1 e 2, está em curso. Assim que tivermos um número suficiente dos quatro sorotipos o produto vai para análise da Anvisa e depois será colocado à disposição. Pelo que o Dr. Esper Kallás, atual presidente do Butantan, colocou esses dias numa entrevista muito boa dada ao Globo, parece que estamos próximos desse momento.

O avanço desta doença por territórios e épocas do ano antes imunes ao Aedes aegypti reforça os pactos sobre novas pandemias estabelecidos na OMS? Você enxerga a chamada comunidade internacional pronta para de fato cumprir este pacto?

O problema da OMS é conseguir articular os países em políticas comuns para atacar problemas comuns. E a OMS se revelou, infelizmente, frágil para conseguir fazer esse tipo de articulações. Existem muitos países que resistem a essas articulações. O Brasil, historicamente, é um país que sempre se aliou, esteve muito próximo das orientações da OMS e disposto a trabalhar coordenadamente com outros países. Mas é uma fragilidade, não só para enfrentar epidemias, como também para enfrentar, no âmbito da ONU, coisas como guerras, como a gente está vendo em Israel e Ucrânia, e em muitos lugares mais, na África etc.

Portanto, infelizmente, temos de ter mais civilização para conseguir articular a vontade da humanidade de continuar vivendo na Terra. É para isso que servem esses pactos neste momento em que as pandemias serão cada vez mais frequentes, pela forma como nós estamos tratando o meio ambiente.

Por fim, acredita que a passagem do Brasil pela presidência do G-20, com diversas reuniões com chefes de estado em nosso país, deve ser aproveitada para avançar sobre questões relativas à soberania sanitária?

No G20, o Brasil tem possibilidade de exercer algum tipo de protagonismo. É óbvio que isso pode levar à criação de algum caminho novo, mas eu sou um pouco cético em relação à possibilidade de a gente desenvolver essas alternativas. Não pela capacidade, pela liderança do Brasil, principalmente hoje, com o ministério da Saúde melhor conduzido. Teríamos grande condição de chegar a isso. Mas eu acho que o ambiente mundial não está muito positivo para conseguirmos realizar tamanha coordenação e enfrentar as questões relativas aos desastres sanitários que sobrevirão.

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