RS e a Saúde em tempos de caos climático

Catástrofe obriga a tomar medidas imediatas, que dizem respeito desde aos impactos diretos das enchentes à saúde da população até a sua saúde mental a longo prazo. Mas é preciso ir além. Uma Política Nacional de Saúde Ambiental precisa ser implementada

Hospital de Pronto Socorro de Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre, no sábado, 3. Prédio precisou ser evacuado Foto: Divulgação/HPSC
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Sérgio Rossi em entrevista a Gabriel Brito

O Rio Grande do Sul levará semanas para ver as águas baixarem e não se sabe quando – e se – a vida voltará à antiga normalidade. As chuvas que destruíram o estado colocam em xeque todo um modelo de desenvolvimento cuja reorganização dependerá de um imenso esforço social e institucional. Enquanto isso, resta lutar pela sobrevivência. E organizar as ações mais imediatas na garantia da saúde e da vida da população.

Nesta entrevista ao Outra Saúde, o coordenador do Núcleo Saúde, Ambiente e Mudanças Climáticas do Centro de Estudos Brasileiros em Saúde, Sérgio Rossi, explica os impactos mais imediatos na saúde pública, as doenças às quais as pessoas ficam expostas neste momento e prováveis consequências de longo prazo na saúde coletiva.

“Com relação ao impacto e capacidade da força de trabalho e equipes de saúde nas regiões afetadas, é importante destacar que os profissionais de saúde nas regiões atingidas são duplamente afetados. Ao mesmo tempo que fazem parte da população afetada, são esses profissionais que atuam na resposta e assistência à população. É necessário, portanto, que sejam organizadas e desenvolvidas ações de apoio e suporte aos profissionais de saúde das equipes locais”, destacou.

Na saúde, Rossi explica os cuidados e ações mais imediatos. Doenças transmitidas por bactérias nas aguas sujas são o maior perigo, como hepatite, leptospirose e diarreias. É necessário também cuidado com acidentes em contato com objetos e materiais cortantes, provavelmente infectados pelas aguas da enchente, além de haver perigo de ferimentos por animais peçonhentos. Por fim, a saúde mental certamente será uma questão relevante nos próximos meses de lenta recuperação.

“A maior parte das pessoas que apresentarem algum tipo de demanda relacionada à saúde mental irão apresentar sintomas psíquicos que não configuram um transtorno mental. Ou seja, são reações normais a uma situação anormal. Para esse público, a implementação e/ou o reestabelecimento dos serviços básicos das diferentes políticas públicas, irão fornecer o apoio na estabilização emocional. Uma parcela reduzida da população é que pode vir apresentar algum tipo de adoecimento ou manifestação que demandará cuidados e intervenções mais específicas de saúde mental e atenção psicossocial. São pessoas, por exemplo, que já têm algum histórico de adoecimento mental, pessoas vulnerabilizadas ou aquelas que não receberam nenhum tipo de cuidado e/ou acolhimento em momento anterior”, explicou.

No entanto, em algum momento teremos de falar sobre a reconstrução social e econômica. Até porque os próprios estabelecimentos de saúde e seus equipamentos encontram-se sob as águas e sua estrutura demandará tempo para ser reorganizada. O governo federal já enviou quase R$ 2 bilhões em ajuda imediata para resgate, ajuda médica, apoio pessoal de diversos tipos. Nesta quinta, anunciou um pacote, ainda preliminar, de R$ 50 bilhões de reais para diversos setores se reconstruírem. O estado gaúcho já contabiliza ao menos R$ 20 bilhões de prejuízo material.

Mas nada poderá ser como antes. E, como explana Sergio Rossi, psicólogo sanitarista e doutorando em saúde coletiva, novas políticas de saúde e meio ambiente terão de ser desenvolvidas. O desmonte geral que o Brasil viveu pelas mãos do neoliberalismo radical, que destruiu a legislação ambiental e desfinanciou o sistema de saúde, está no cerne da tragédia. Desde 2009, por exemplo, o Brasil tem na mesa um projeto de Política Nacional de Saúde Ambiental, nunca levado adiante em razão das correlações políticas e ideológicas que tomaram conta do país nos últimos anos.

“Políticas desenvolvidas na área social, de saúde e ambiental foram desestruturadas e tiveram seu orçamento reduzido. O Estado teve o seu papel cada vez mais esvaziado ao longo desse período. A pauta de costumes foi utilizada como instrumento para invisibilizar o desmonte do Estado operado nesses anos. Acredito que o conjunto desses diversos fatores e aspectos possam explicar por que não conseguimos avançar”, enfatizou.

Em suma, as políticas públicas em saúde não podem mais ignorar as questões ambientais. Seus gestores e planejadores terão de considerar a reação a desastres climáticos e suas inúmeras consequências na saúde pública como parte do trabalho cotidiano.

“O debate sobre as mudanças climáticas e suas repercussões na saúde não é novo. Eventos como o que acontece agora no Rio Grande do Sul só evidenciam que o negacionismo, o esvaziamento do papel do Estado e as políticas de austeridade fiscal têm um custo humano e social altíssimo. Custam vidas”.

Para Sergio Rossi, não há mais espaço para as ideias de Estado mínimo e suas metas financistas. Outro pacto social e econômico terá de nascer desta terra arrasada. Serão o Brasil e sua sociedade civil capazes de amadurecer na velocidade exigida pelas circunstâncias?

Confira a entrevista completa a seguir.

Em primeiro lugar, quais são os principais alertas para a saúde coletiva da população rio-grandense afetada pelas chuvas neste momento mais imediato?

De forma imediata, a preocupação e os esforços são concentrados nas ações de busca e salvamento e assistência: abrigamento, distribuição de insumos de higiene pessoal etc. Na sequência, algumas questões precisam de atenção, principalmente em relação aos cuidados em decorrência do contato com a água e lama provocada pelas enchentes. Algumas doenças aumentam em situações de enchentes como as doenças de veiculação hídrica, doenças diarreicas, hepatite A, leptospirose, a ocorrência de acidentes com animais peçonhentos, entre outras.

É necessário também atenção com alimentos que podem ter sido contaminados pelas águas e lama das enchentes. Alimentos que tiveram contato com as águas das enchentes podem estar contaminados e transmitir doenças. É preciso atenção redobrada e cuidado na higienização, preparo e armazenamento dos alimentos. Diversas ações para a garantia de abastecimento com alimentos seguros têm sido realizadas pelos governos federal e estadual, movimentos sociais e voluntários.

Sobre riscos de tétano e cuidados com animais peçonhentos: locais afetados por enchentes têm a presença de entulhos e material carreado pela força das águas. Acidentes com esses materiais (objetos de metal, madeira ou vidro, por exemplo), podem acarretar ferimentos e o adoecimento por tétano. Há também um aumento do risco de acidentes com animais peçonhentos, uma vez que esses animais irão buscar abrigo em locais secos. A vacina contra tétano é de rotina no SUS e é necessário que a população informe às equipes locais de saúde em caso de acidentes dessa natureza para que se verifique a necessidade de dose de reforço.

É possível vislumbrar o impacto que isso tudo terá no sistema de saúde, em termos de uso suas capacidades físicas, leitos, mão de obra? Que cenário se pode imaginar para a saúde pública do estado depois que as águas baixarem?

A avaliação dos danos e impactos é dinâmica e feita dia após dia. A resposta a esta pergunta vai depender, num primeiro momento, da avaliação dos danos aos próprios estabelecimentos de saúde. Como foi noticiado, equipamentos e serviços de saúde diversos foram atingidos pelas enchentes. Somado a isso, a avaliação dos danos e levantamento das demandas de saúde e condições sanitárias nas regiões afetadas é que irão possibilitar uma estimativa quanto ao tipo e extensão dos efeitos na saúde das populações afetadas e as demandas de curto, médio e longo prazo para o sistema de saúde.

É preciso levar em consideração que pessoas com condições crônicas de saúde, por exemplo, podem ter sua situação de saúde agravada por múltiplos fatores: os danos e impactos causados pelo desastre, sejam eles à saúde física e mental, assim como em função dos danos aos serviços e equipamentos de saúde e o comprometimento do acesso a medicamentos e assistência prestadas pelas equipes de saúde locais.

Com relação ao impacto e capacidade da força de trabalho e equipes de saúde nas regiões afetadas, é importante destacar que os profissionais de saúde nas regiões atingidas são duplamente afetados. Ao mesmo tempo que fazem parte da população afetada, são esses profissionais que atuam na resposta e assistência à população. É necessário, portanto, que sejam organizadas e desenvolvidas ações de apoio e suporte aos profissionais de saúde das equipes locais.

Além das evidentes questões sanitárias, teremos uma “epidemia”, se podemos chamar assim, de problemas de saúde mental?

Essa é uma pergunta importante e necessária. Sem dúvidas os desastres impactam e acarretam danos à saúde mental das populações afetadas, mas não devemos encarar esse processo como uma “epidemia” ou como se todas as pessoas afetadas fossem adoecer ou desenvolver algum transtorno mental.

Desastres e Emergências de Saúde Pública afetam a saúde mental das populações atingidas por esses eventos. Com as enchentes no Rio Grande do Sul não é diferente. É necessário o desenvolvimento de ações de Saúde Mental e Atenção Psicossocial para as pessoas afetadas por esse desastre.

A maior parte das pessoas que apresentarem algum tipo de demanda relacionada à saúde mental irão apresentar sintomas psíquicos que não configuram um transtorno mental. Ou seja, são reações normais a uma situação anormal. Para esse público, a implementação e/ou o reestabelecimento dos serviços básicos das diferentes políticas públicas, irão fornecer o apoio na estabilização emocional.

Uma parcela reduzida da população é que pode vir apresentar algum tipo de adoecimento ou manifestação que demandará cuidados e intervenções mais específicas de saúde mental e atenção psicossocial. São pessoas, por exemplo, que já têm algum histórico de adoecimento mental, pessoas vulnerabilizadas ou aquelas que não receberam nenhum tipo de cuidado e/ou acolhimento em momento anterior.

Portanto, é preciso ter em mente que as repercussões na saúde mental das populações afetadas estão diretamente interligadas com as ações de resposta dadas ao desastre. Logo, as ações e estratégias de saúde mental e atenção psicossocial devem estar integradas e articuladas em toda a ação de resposta organizada e estruturada para assistência da população.

A resposta ao desastre deve, portanto, abarcar a organização e estruturação de ações e estratégias de cuidado em saúde mental e atenção psicossocial em todas as suas fases. Essas ações e estratégias devem estar focadas na promoção da saúde, no acolhimento e na proteção da dignidade das pessoas, assim como promover ações que viabilizem o reestabelecimento e respeito à autonomia dos grupos e pessoas e a defesa de direitos. Principalmente, da população desabrigada.

Você escreveu artigo que defende uma agenda de saúde ambiental, inclusive mencionando o projeto de Política Nacional de Saúde Ambiental, elaborado ainda nos primeiros governos Lula. O que seria essa PNSA?

A Política Nacional de Saúde Ambiental pode ser compreendida como a proposta de uma política que busca promover a saúde através de um conjunto de ações integradas e articuladas para o conhecimento, intervenção e enfrentamento dos processos de determinação socioambiental da saúde.

Por que tal projeto não avançou nesses anos todos?

Existem várias razões e explicações possíveis para que essa política não tenha deixado de ser apenas uma proposta. Os últimos 8 anos, por exemplo, foram palco dos mais diversos retrocessos e recrudescimento do papel do Estado no desenvolvimento social e enfrentamento das desigualdades. As agendas social e ambiental, por exemplo, sofreram diversos e profundos retrocessos com a ascensão ao poder da direita e da extrema direita.

Políticas desenvolvidas na área social, de saúde e ambiental, por exemplo, foram desestruturadas e tiveram seu orçamento reduzido. O Estado teve o seu papel cada vez mais esvaziado ao longo desse período. A pauta de costumes foi utilizada como instrumento para invisibilizar o desmonte do Estado operado nesses anos. Acredito que o conjunto desses diversos fatores e aspectos possam explicar o porquê não conseguimos avançar.

Será necessário criar alguma secretaria ou órgão do tipo dentro da estrutura de Estado para dar conta de tal política? A Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente já não tem essa atribuição ou estamos falando de uma estrutura de atribuições mais amplas?

No âmbito do Ministério da Saúde acredito que não seja necessário a criação de algum órgão ou secretaria. A Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente (SVSA) já congrega essa atribuição através do Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador (DSAST). Inclusive, uma das iniciativas adotadas pelo governo Lula e pela gestão da ministra Nísia foi o acréscimo do termo “Ambiente” ao nome da Secretaria. O que aponta a relevância e importância que os fatores ambientais com repercussão na saúde têm assumido na política de saúde.

Todavia, é necessário que esse compromisso e relevância da pauta se traduzam em ações e políticas de fortalecimento dessa agenda junto aos estados e municípios. O que demanda uma agenda integrada entre as áreas de vigilância e atenção à saúde.

A saúde e suas autoridades terão o dever de entrar em debates que vão além da alçada tradicional desta pasta? Em outras palavras, um planejamento político de saúde terá de cada vez mais incidir em temas econômicos, ambientais, sociais?

Sem dúvidas. A pandemia de COVID-19 já havia nos apontado essa questão. O debate sobre as mudanças climáticas e suas repercussões na saúde não é novo. Eventos como o que acontece agora no Rio Grande do Sul só evidenciam que o negacionismo, o esvaziamento do papel do Estado e as políticas de austeridade fiscal têm um custo humano e social altíssimo. Custam vidas.

O que acontece no RS seria uma prova definitiva da inviabilidade das políticas de austeridade fiscal, pisos, e afins aplicadas a áreas essenciais, entre elas a saúde?

Não há dúvidas quanto a isso. As políticas de austeridade fiscal têm como alvo e objetivos, entre outros, exatamente, o corte do orçamento das áreas sociais e das políticas públicas. Uma das consequências é que todo o sistema de políticas públicas de saúde, meio ambiente, proteção social, defesa civil, entre outros, fica comprometido ou esvaziado. Sem esse aparato do Estado, desastres como o de agora, têm seus efeitos e repercussões agravados e prolongados ao longo do tempo.

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