Transtornos mentais: a culpa é mesmo do cérebro?
Em livro recém-lançado pela Editora Fósforo, psiquiatra questiona discurso hegemônico em sua classe, que aponta raiz exclusivamente biológica para o sofrimento psíquico. E indica: é preciso que sejam muito mais que “prescritores de remédios”. Leia um trecho
Publicado 28/04/2025 às 08:40 - Atualizado 28/04/2025 às 09:08

Por Juliana Belo Diniz
A seguir, Outra Saúde tem a satisfação de publicar um trecho de O que os psiquiatras não te contam, livro de Juliana Belo Diniz, psiquiatra e pesquisadora do Serviço de Psicoterapia do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (IPq-HC-USP). Recém-lançada pela Editora Fósforo, a obra busca desmistificar a ideia de que depressão, ansiedade, pânico e outros sofrimentos psíquicos sejam apenas “doenças do cérebro” e, por isso, passíveis de serem extirpadas exclusivamente com remédios. Para isso, Diniz resgata a história da psiquiatria desde o século XVIII e analisa de forma crítica o discurso hegemônico de ultraprodutividade, hipermedicalização e resiliência. A alternativa: construir mudanças políticas, sociais e econômicas com efeitos nas questões mentais. Boa leitura! (G. A.)
Neste livro, pretendo desmistificar o senso comum de que psiquiatras servem exclusivamente para receitar medicamentos e de que transtornos psiquiátricos são, por óbvio, doenças do cérebro. Do mesmo modo que a psiquiatria é muito mais do que uma especialidade médica que sabe indicar antidepressivos, calmantes, estimulantes e antipsicóticos, os transtornos psiquiátricos vão muito além do resultado de um mau funcionamento do nosso cérebro.
Transtornos psiquiátricos não são mitos, mas tampouco são doenças como outras quaisquer.
Refutar uma psiquiatria que olha para nós, humanos, como se fôssemos cérebros desprovidos de história tem se tornado cada vez mais necessário em um mundo que culpa a dopamina pelos efeitos das redes sociais, que acredita que conexões cerebrais desorganizadas nos fazem agir como estranhos e que diz ser possível treinar nosso cérebro para o sucesso. O discurso centrado no cérebro, inclusive, está por todo lado, desde vídeos recordistas de visualizações sobre “dez coisas que alteram a química cerebral” até promessas de modificar receptores de dopamina com mudanças de hábito lotando as prateleiras de livrarias nas seções de autoajuda.
Pôr a culpa no cérebro não é um detalhe desimportante. Esse é um discurso que afeta a percepção geral acerca das doenças mentais e alimenta crenças relativas ao alívio de qualquer conjunto de sintomas, ou mesmo nos aproxima da fantasia de uma produtividade constante e extraordinária. E na escolha dessa retórica, a psiquiatria não é inocente. Muitos psiquiatras incentivam a disseminação desse discurso cerebral alegando boas intenções. Não duvido das boas intenções, mas questiono se o tiro não terá saído pela culatra.
A afirmação de que “transtornos psiquiátricos são doenças do cérebro” tem sido usada como forma de reivindicar legitimidade à psiquiatria enquanto especialidade médica. Como se, caso ultrapassássemos fronteiras estritamente biológicas, fôssemos diminuir o problema de quem sofre e tirar os psiquiatras do escopo da medicina, lançando-os em rota de colisão com o pensamento científico. Ou seja, ao recusar o discurso do cérebro, é como se estivéssemos defendendo uma realidade condenada a discussões filosóficas intermináveis e improdutivas, e não científicas. Além disso, muitos psiquiatras afirmam que associar transtornos psiquiátricos a supostas disfunções cerebrais é uma forma de reduzir o estigma em torno da doença mental. Para eles, aproximar os sintomas emocionais das manifestações de um infarto ou do diabetes é uma forma de driblar o imaginário popular em torno do estigma da “loucura”. Um termo que, embora não seja mais empregado na psiquiatria, nunca deixou de circular entre o público não especializado.
Ao longo dos capítulos, me oponho a essas afirmações. Pretendo mostrar que ir além do cérebro não só é seguro como é essencial para que não sejamos reduzidos somente aos nossos atributos biológicos. Em outras palavras, sustento que não devemos nos iludir com a crença de que poderíamos ser mais bem definidos pela nossa sequência de dna, pela composição da nossa microbiota intestinal, pela organização das nossas conexões cerebrais, pelo nosso perfil de marcadores inflamatórios ou qualquer outro elemento do imaginário científico. E ainda tento nos poupar de sofrer em decorrência da fantasia de que somos falhos por sermos incapazes de treinar o cérebro para o sucesso.
Concordo que precisamos combater o estigma em torno das doenças mentais, mas não acredito que criar uma mitologia cerebral é a melhor forma de fazer isso.
Não deixa de ser verdade que os estudos do cérebro, conhecidos também como neurociências, se sofisticaram muito nos últimos anos e que hoje o conhecemos melhor do que nunca. Apesar de toda a inovação e produtividade das últimas décadas, esses estudos ainda contribuem muito pouco para a nossa compreensão do sofrimento humano. Exceto por alguns tratamentos aplicados ocasionalmente, as neurociências não trouxeram nenhuma revolução terapêutica. A maior parte dos tratamentos que usamos hoje são versões do que já existia na década de 1960. Portanto, focalizar o cérebro como causa de nosso sofrimento corresponde muito mais a um desejo de encontrar todas as causas do sofrimento nele do que a uma conclusão baseada em resultados científicos que confirmem que é lá que encontraremos as soluções para os nossos problemas.
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