Será possível evitar desastre na próxima pandemia?

Diante da possível aparição de novos vírus, como proteger as sociedades? Crescem as vozes que defendem o fim das patentes, para evitar o apartheid vacinal e a captura da pesquisa pública por um punhado de corporações transnacionais

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No momento em que o mundo quebra a cabeça sobre a melhor maneira de lidar com inesperadas novas ondas da covid, o jornal The Guardian produziu uma reportagem sobre o que virá a seguir, em termos de pandemia. Ou melhor, em termos dos problemas das instituições globais de saúde diante de eventos extremos, como as pandemias. Guardian focou em dois grandes desafios expostos pela covid: melhorar a vigilância sobre a emergência de novos patógenos e garantir a equidade das vacinas criadas contra eles. 

Esses pontos resumem a desigualdade sanitária gritante que assola a comunidade global. O primeiro desafio refere-se quase sempre aos países menos abastados, onde surgem mais frequentemente as doenças e onde há menos, ou nenhuma, condição de desenvolver e fabricar medicamentos contra elas. Em vez disso, cientistas dos países desenvolvidos coletam dados sobre as enfermidades, permitindo que suas indústrias produzam os meios – como vacinas e equipamentos médicos – de combatê-las. 

Mas a proteção contra a doença não chega às populações de média e baixa renda, criando o desafio da equidade: a preferência dos grandes fabricantes pelas populações de renda mais alta. Apenas 14% das pessoas em países de baixa renda, lembra o Guardian, receberam pelo menos uma dose de vacina, em comparação com cerca de 80% em países de renda alta e média. A covid escancarou esse despropósito, assinala o jornal. Desde o seu surgimento, os países compartilharam dados relacionados ao Sars-CoV-2 livremente, afirma a reportagem. “Esses dados impulsionaram revoluções na vacinologia, sequenciamento de patógenos e coleta de dados. Mas os frutos dessas revoluções não foram compartilhados de forma equitativa”. 

É uma situação cada vez mais escandalosa, e a reportagem destaca que esforços sérios estão sendo feitos no momento para corrigi-la. Menciona, especialmente, a Organização Mundial da Saúde (OMS): no início de dezembro passado, em particular, a assembleia dos 194 membros da Organização tomou uma decisão, que considerou histórica, “para fortalecer a arquitetura global de saúde para proteger e promover o bem-estar de todas as pessoas”. Mas não está claro de que forma se faria isso – talvez por meio de um tratado – nem como tornar obrigatórias eventuais regras globais nesse campo.

Para o especialista Mark Eccleston-Turner, do King’s College London, ouvido pelo Guardian,  um tratado sobre pandemias poderia redistribuir os direitos de propriedade das grandes farmacêuticas de acordo com alguma regra equitativa, que evitasse o controle total da produção de uma vacina por poucas empresas de alguns países. A covid expôs cruamente o desatino, já que as vacinas contra o coronavírus foram desenvolvidas com recursos públicos. Mas as farmacêuticas fabricantes ficaram com a maior parte do direito de patente, disse ao Guardian o especialista em direito de propriedade intelectual Luke McDonagh, da London School of Economics.

É preciso que uma fração maior da patente permaneça no domínio público, diz ele, refletindo o investimento feito pelos cidadãos. McDonagh rechaça as alegações do setor privado de que isso reduziria o nível de inovação da sociedade. Ele cita a conquista obtida, há alguns anos, no caso do HIV, da liberação para produzir antirretrovirais genéricos em países em desenvolvimento. Nem por isso diminuiu a pesquisa de novos remédios contra o HIV nos países ricos, diz o especialista. O excelente texto do Guardian reflete o fato de a atenção global estar agora se voltando para o futuro. Mas também a falta de uma ação mais decisiva por parte dos governos, citando, especialmente, a aparente falta de interesse da União Europeia em sair do impasse atual.

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