Saúde precisa construir resposta às chacinas
Massacre no Rio busca catapultar projeto político da ultradireita – e movimento sanitário deve se somar à sua denúncia. Para já, é urgente enfrentar o terror do Estado. Mas saída do labirinto fascista passa por políticas públicas e protagonismo comunitário
Publicado 03/11/2025 às 17:29 - Atualizado 04/11/2025 às 11:38

Por Túlio Batista Franco, em sua coluna
A carne mais barata do mercado é a carne negra (A Carne, canção célebre na voz de Elza Soares)
Enquanto assistíamos atônitos à contagem de corpos resultante da chacina perpetrada pelo governo do Rio de Janeiro em 28 de outubro de 2025, e as mães choravam seus filhos mortos, o governador já disparava as ações para engrossar o apoio à sua pretensão de concorrer a uma vaga no Senado federal em 2026. Ao mesmo tempo, o secretário de Justiça do estado, tinha sua candidatura ao governo do Rio testada em pesquisa.
É cada vez mais evidente que a “megaChacina” teve o propósito de catapultar projetos políticos, de uma extrema direita que não tem limites para conseguir seus objetivos de poder. O resto é narrativa de um cinismo barato que só engana aos incautos e se soma aos já convencidos da doutrina fascista de governar. E não há decibéis humanitários capazes de fazer ouvir qualquer apelo aos Direitos Humanos, ou algo próximo disto.
“O Brasil é o único país em que os ratos conseguem botar a culpa no queijo”. A frase é do Millôr Fernandes, e ilustra bem o momento. Os ratos vieram à cena, nem bem tinham esfriado os canos dos fuzis, para com um falso ufanismo, esconder o retumbante fracasso de uma operação que primeiro atira, depois não pergunta o motivo, e culpa os mortos. A prática no Rio de Janeiro, guardadas as devidas proporções, repete o “holocausto palestino” praticado por Netanyahu com o genocídio em Gaza; os assassinatos sem denúncia, processo ou julgamento de pessoas no mar do Caribe ordenados por Trump; as deportações em massa, que separam filhos de seus pais nos EUA; o genocídio no Sudão e outras guerras locais na África.
Pelo mundo, se vê um crescimento exponencial da violência, violações de direitos, e o esgarçamento de um contrato social de convívio, até então resguardado por uma suposta governança global liderada pela ONU, ora em colapso. Esqueceram, ou simplesmente abandonaram, a ideia de que pertencemos a uma certa humanidade.
Nós que lutamos por uma saúde universal, que acolhe, protege e cuida das pessoas e todas as vidas no planeta, estamos imersos e comprometidos com um projeto civilizatório, antibélico, agarrado ao firme propósito pela Paz, e o respeito aos Direitos Humanos e ao Direito Internacional Humanitário. Por esse, e muitos outros motivos, a saúde está nessa briga para impedir que fatos como os citados acima se repitam. A Frente pela Vida se manifestou claramente denunciando a Chacina no Rio de Janeiro, e propondo que o governo do Rio de Janeiro seja processado na Corte Interamericana de Direitos Humanos, além de responder à justiça no Brasil, pelos assassinatos dos quais é responsável.
“Para onde vamos?” é a terceira pergunta feita por Paul Gauguin na sua conhecida obra filosófica De onde viemos? O que somos? Para onde vamos?, pintada no Taiti entre 1897 e 1898. A reflexão do artista é inspiradora para o tipo de enfrentamento a ser adotado à questão da segurança pública.
Mesmo que seja necessária uma resposta instrumental, que conta com ingredientes como a Lei, Normas, Armas, Inteligência, Economia do Tráfico asfixiada, ela é insuficiente. Esta insuficiência é demonstrada pela insistente permanência de uma ainda expressiva opinião pública que apoia barbáries como a que se viu no Rio. É urgente ocupar os territórios com políticas públicas robustas, desenvolver a democracia social, ou seja, o resgate da cidadania e do futuro a milhões de jovens que habitam estes lugares, e convivem com o total abandono por estes governos.
Por isso, ao mesmo tempo em que se combate o crime, é necessário formar um imaginário social que adote concepções progressistas para este combate, o que significa apostar no resgate de um pensamento que tem na solidariedade, no espírito comunitário, no desenvolvimento de relações de proximidade do poder público com os territórios de favelas, sua base conceitual.
Esse investimento em um imaginário social de resgate da solidariedade perdida é particularmente importante para o enfrentamento do projeto neoliberal, que na sua versão atual, nutre o fascismo e a violência. O faz porque aposta na construção do “sujeito da concorrência”, que tem por base uma relação individualista, pautada na meritocracia canhestra, negacionista da histórica desigualdade social entre raças, grupos populacionais, gêneros, classes sociais.
Este projeto supõe o abandono daqueles de “capital humano” restrito, isto é, as pessoas à margem do sistema de consumo e acumulação que organiza a economia capitalista. Transformar esta subjetividade significa constituir um pensamento em torno da segunda pergunta do pintor — “O que Somos?” –, que retome a natureza e essência do humano como um ser gregário, fortaleça a ideia de vínculo social, de prosperidade como algo ligado aos laços sociais, que se instaura a partir da força do coletivo, em movimentos nos quais o protagonismo comunitário é absolutamente fundamental.
Mudar o pensamento é pressuposto para também mudar a opinião das pessoas sobre as formas como as políticas de segurança pública devem ser desenvolvidas.
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