Por uma IA nas mãos dos cidadãos

A Saúde Digital pode dar grande contribuição ao princípio de integralidade do SUS. Uma ideia é colocá-la a serviço da população, para que se torne agente ativa da promoção de saúde. A epidemia de dengue já mostra alguns caminhos

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Título original: Inteligência Artificial nas mãos dos cidadãos (Parte I) – oportunidades para a integralidade na atenção à saúde

Do ponto de vista do cidadão, para que haja prevenção contra riscos e doenças, assistência aos que adoecem e que precisam se recuperar, é necessário articular um conjunto muito heterogêneo de ações. Um dos princípios centrais encabeçados pelos sanitaristas brasileiros e norteador do SUS é a integralidade. Um conceito tão importante quanto complexo. Na literatura especializada, por exemplo, é inexistente uma definição exata e consensual. Focando nos serviços de saúde, uma maneira razoável de conceituá-la é considerarmos, em primeiro lugar, como uma “imagem-objetivo”, isto é, uma situação futura que consideramos desejável e necessária, e que possamos torná-la real em um tempo razoável. Em segundo, é preciso conceber tal imagem como uma forma de organização dos serviços que seja capaz de integrar – ao máximo – as ações de promoção, prevenção de agravos, tratamento de doenças e sofrimentos, e recuperação da saúde, tudo isso de modo articulado com os três níveis hierárquicos de atenção (primário, secundário e terciário).

Papo reto (1): a integralidade é o objetivo que o SUS assume para si de que em todos momentos de nossas vidas, desde a hora em que nascemos até morrermos, acordados ou dormindo, com uma dor no pé ou com uma doença rara, com sofrimento mental ou com câncer, sejamos integralmente assistidos.

A integralidade se viabiliza mediante uma diversidade de processos de integração, ou seja, dos diversos “a fazer” que combinam e articulam as distintas ações de saúde. Dentre eles há um eixo que é fundamental: a integração entre as ações de promoção da saúde e controle da doença em escala populacional e aquelas dedicadas à assistência individual.

Todos nós aprendemos um pouco sobre os desafios dessa integração com a pandemia de covid-19: jogar os esforços e recursos da sociedade brasileira em hospitais e ambulatórios, na multiplicação de leitos, para atender os cidadãos individualmente com cuidados clínicos; ou jogá-los nas ações sanitárias, para conter a transmissão do vírus e diminuir a quantidade de adoecidos e agravos? Quais ações são prioritárias, como articulá-las etc.? Sem nos aprofundarmos, o certo é que quanto mais integrados estiverem esse dois polos das ações, individual e populacional, mais integrais são as práticas de cuidado e atenção à saúde, logo, mais próximos da integralidade estaremos.

Há, contudo, muitas questões que jogam contra a integralidade. Sobretudo o fato de que Saúde nunca foi, e nunca será, apenas uma questão de acesso integral aos serviços. Por isso mesmo, os horizontes “antigos” de parte importante daqueles que lutaram pela Reforma Sanitária e conquistaram o SUS, eram de que os serviços de saúde deveriam ser uma das pontes (entre as mais importantes) para um outro modo de vida. Um modo de vida cuja interação entre o Homo Sapiens e “Gaia” fosse equilibrado, e não uma máquina ingovernável de destruição da biodiversidade funcionando como um verdadeiro sistema de produção de patógenos – tal como o Sars-Cov-2. O horizonte era de que Saúde implicava atenção e cuidado com as causas dos adoecimentos e com a qualidade do viver. Mas, olhar era menos para cura reativa (e medicalizada) das causas localizadas na imediatez biológica dos indivíduos, e mais para o sanemaento das causas profundas que levam esses mesmos indivíduos a adoecerem e, então, buscarem acesso aos serviços. O horizonte era um modo de vida em que menos serviços de saúde fossem demandados.

Se considerarmos outro problema de saúde como exemplo, papo reto (2): endemias como a dengue não se resolvem apenas com “Faça sua parte: limpe a água parada!” e, caso adoeça, busque uma “tenda”. Nem propriamente com vacinas. É verdade que a profilaxia vacinal é importante e merece todos os aplusos, afinal com ela podemos limitar ao máximo os agravos e as mortes. Mas sejamos sinceros com nós mesmos: se a campanha vacinal não vier organicamente articulada a uma Reforma Urbana, é como se nós estivessemos “pedindo” para as classes subalternizadas que ainda vivem em guetos e favelas, que aceitassem em pleno século XXI viver sem saneamento e em moradias totalmente precárias.

Penso que a atual transformação tecnológica por qual passa as práticas de cuidado e atenção à saúde – e o SUS – podem e precisam ser encaradas no bojo dessas questões. A pergunta norteadora precisa ser: como aproveitamos as oportunidades de uma das maiores conquistas humanas das últimas décadas, a industrialização da IA, para irmos ao encontro da integralidade nos serviços e, ao mesmo tempo, construírmos pontes para um outro modo de vida?

Pedro Philippi Araujo, de 22 anos, estudante da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), desenvolveu uma IA com um habilidade especializada: reconhecer larvas do mosquito da dengue, o Aedes aegypti. A tecnologia chamada de “XôDengue” foi treinada como mais de 1900 fotos de larvas, sob supervisão especializada. Agora qualquer cidadão que tiver essa IA no seu smartphone pode se tornar um cidadão-agente de saúde e contribuir diretamente na identificação da larva, com acurácia análoga de um profissional, e contribuindo enormemente com as ações de vigilância em saúde.

Outras iniciativas nesse escopo já podem ser identificadas no país. E outras tantas podem ser desenvolvidas. Na esteira do “XôDengue”, por exemplo, sabemos que um dos maiores potenciais da IA é sua habilidade em lidar com padrões de imagens. Na saúde isso também significa olhar clínico e capacidade diagnóstica por exame de imagem. Hoje é totalmente factível, portanto, termos IAs nas mãos de todos cidadãos para que realizem autoexames das chamadas exantemas, as manchas vermelhas na pele provocadas também pela dengue. Haverá perigos possíveis com o autodiagnóstico? É razoável suspeitar que sim – e os cuidados deveriam ser tomados –, mas é sobretudo irrazoável fecharmos as portas para as oportunidades, para as novas condições (cibernéticas) de possibilidades colocadas na mesa com as IAs. Sobretudo, porque com iniciativas como essas poderíamos constituir, justamente, uma experiência de integração inédita entre “assistência” e “vigilância”, e quem sabe pavimentar as pontes para um novo modo de vida.

Já são inúmeros os casos de serviços de saúde digital que incorporam arranjos de IA chamados Sistemas de Recomendação (SR). Quem já utilizou qualquer serviço de streaming já interagiu com um SR. Hoje eles são técnicas triviais no mundo da IA. Trata-se de um sistema algorítmico que produz recomendações adaptadas para cada dispositivo de uso pessoal. A partir dos dados produzidos pelos próprios usuários, o SR constitui um perfil e entrega ao usuário recomendações personalizadas. Em larga medida, a habilidade do SR reside no fato de executar de maneira automatizada o circuito de feedback entre o input, oriundo da coleta e extração de dados da experiência longitudinal do usuário, e o output, formado pela recomendações customizadas após tais dados terem sido analisados, correlacionados com um conjunto de outras informações. Dito de outro modo: sua habilidade é integrar de modo automatizado a vigilância com a assistência.

Papo reto (3): munidos com SR em suas mãos, cidadãos brasileiros poderiam ser capacitados, no contexto do Programa Nacional de Controle da Dengue (PNCD), para participarem da vigilância em saúde em seus territórios, tirando fotos georreferenciadas de larvas e “pneus abandonados”, bem como estimulando e orientando que os demais cidadãos tirassem fotos das próprias manchas vermelhas suspeitas. Na outra ponta do serviço, fortaleceríamos os bancos de dados públicos e soberanos, supervisionados por equipes de experts do SUS e dos territórios, com vistas a alimentar, desenvolver e aperfeiçoar a inteligência sanitária brasileira, com seus algoritmos e SR próprios. Retornando, ao fim, em tempo real e 24h por dia, como recomendações assistenciais para cada cidadão, individualmente.

Dificuldades e desafios gerenciais, técnicos e tanto outros certamente existiriam, assim como iatrogenias imprevisíveis emergiriam. Contudo, nenhum deles constituiriam boas razões para não aprendermos e calibrarmos nossas escolhas e decisões ao logo do processo. Homeostase é sempre difícil em qualquer sistema. O que não podemos é nos furtar em aproveitarmos as novas condições de possibilidade.

De todo modo, o maior dos desafios permaneceria o mesmo de antes: a construção de um novo modo de vida. Ou seja, o uso tático e estratégico dos serviços de saúde para que a Saúde não se reduza a um caso de experts, técnicos e/ou gestores, mas se traduza efetivamente – a curto, médio e longo prazo – na conquista da igualdade substantiva e da soberania popular. Afinal, como se diz, “Saúde é democracia!”. Talvez a chamada “saúde digital” também tenha algo a contribuir neste ponto.

Mas isso é conversa para daqui um mês, na próxima coluna.

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