Saúde digital, futuro do SUS?

A implementação de tecnologias digitais na saúde implica mudanças amplas, explica o pesquisador Marcelo Fornazin. Pode reduzir desigualdades e transformar a epidemiologia. Mas, para isso, Brasil precisa apostar na soberania e ampliar participação popular

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Marcelo Fornazin em entrevista a Gabriela Leite, para a série SUS 35 anos

O debate da digitalização da saúde é incontornável quando paramos para pensar no futuro do Sistema Único de Saúde (SUS). Em que ponto estamos e qual lugar almejamos alcançar, nos próximos anos? A sua influência pode chegar até onde, em termos de saúde pública? Quais serão os impactos da inteligência artificial? Essas foram algumas perguntas que o pesquisador da Fiocruz Marcelo Fornazin respondeu, em entrevista à série SUS 35 Anos, do Outra Saúde, publicada hoje. Você pode assistir acima.

Marcelo, além de pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz), é conselheiro do Comitê Gestor da Internet (CGI) e coordenador do Grupo Temático Informação, Saúde e População (GTISP) da Abrasco. Como ele frisou, na entrevista, a Lei Orgânica do SUS – aquela que comemora 35 anos em 2025 – já previa a criação de um Sistema Nacional de Informações em Saúde. 

Esse projeto se estende até hoje, e a questão da digitalização se acelerou sobretudo desde a pandemia e após um incentivo da Organização Mundial da Saúde (OMS) para a criação de estratégias para os países, conta Marcelo. “O que vimos nesses últimos anos é uma aposta muito grande numa incorporação mais massiva da tecnologia, aquilo que se chama de potencial da saúde digital.

O Brasil criou sua Estratégia de Saúde Digital em 2020, em pleno governo de Jair Bolsonaro – quando, inclusive, tentou-se criar um sistema que permitiria entregar os dados do SUS às operadoras de seguros de saúde, iniciativa felizmente frustrada que ficou conhecida como Open Health. Mas foi no governo Lula, a partir de 2023, que o tema começou a ter ênfase de fato, e a Saúde Digital ganhou secretaria dentro do Ministério da Saúde, capitaneada por Ana Estela Haddad. 

Mas por que caminhos avançam essas tecnologias? Na entrevista, Marcelo levanta alguns pontos cruciais para pensar o futuro da saúde digital no SUS. O primeiro diz respeito à desigualdade. Apesar dos avanços, a transformação digital no SUS ainda é desigual. Enquanto grandes centros urbanos contam com infraestrutura robusta, regiões rurais, periferias e a região amazônica carecem de internet estável e equipamentos adequados. Para resolver esse problema, pontua Marcelo, o esforço precisa ir além do Ministério da Saúde. 

Soberania digital

Além disso, outro problema que não deve ser ignorado: o Brasil segue dependente de empresas estrangeiras para armazenar dados sensíveis, como os da Rede Nacional de Dados em Saúde, que está hospedada em servidores da Amazon. Para Marcelo, essa fragilidade expõe o país a riscos geopolíticos e limita a capacidade de criar soluções adaptadas à realidade do SUS. “Havia uma série de ações para construir infraestrutura local que, há 10 ou 15 anos, o Brasil não conseguiu perceber a importância – e hoje sentimos a falta”, lamenta. 

Marcelo explica que o país enfrenta, hoje, uma profunda dependência de tecnologias e serviços digitais externos, situação que nos coloca em posição vulnerável diante de interesses geopolíticos e econômicos de outras nações. O controle efetivo e o conhecimento tecnológico foram entregues majoritariamente nas mãos dessas corporações estrangeiras. 

Essa fragilidade se torna ainda mais evidente quando consideramos que decisões tomadas por governos de outros países podem impactar diretamente serviços essenciais brasileiros. Apesar das dimensões continentais do Brasil e de seu potencial econômico, desenvolver uma infraestrutura tecnológica completamente autônoma – incluindo a produção local de componentes como processadores e memórias – ainda representa um desafio complexo, embora estratégico para garantir a soberania nacional no campo da Saúde Digital e em outros setores críticos.

Abertura ao setor privado?

Outro desafio é evitar que a digitalização sirva de cavalo de Troia para a privatização do SUS. Sistemas desenvolvidos pelo setor privado, muitas vezes focados em modelos hospitalares ou individuais, podem ignorar a integralidade do SUS. Marcelo relembra que, quando o SUS foi criado, a proposta de um sistema 100% público não vingou na Constituinte, abrindo espaço para a coexistência com o setor privado. Essa dualidade se reflete hoje no mercado de tecnologia: empresas que desenvolveram sistemas para planos de saúde e hospitais privados agora veem o SUS como um nicho comercial, mas suas soluções frequentemente ignoram particularidades cruciais do sistema público, como o trabalho em equipe na atenção primária e a integração com a vigilância epidemiológica.

A transferência acrítica de tecnologias do setor privado para o SUS gera distorções perigosas. Sistemas hospitalares adaptados para unidades básicas de saúde criam sobrecarga de trabalho e falhas no registro de informações essenciais, enquanto modelos inspirados no setor financeiro – eficientes para transações bancárias – mostram-se inadequados para a complexidade da saúde coletiva. Além disso, a comercialização de dados de saúde por empresas de tecnologia ameaça os princípios de universalidade, já que a lógica de mercado naturalmente exclui quem não pode pagar. Para Marcelo, a saída está em desenvolver tecnologias a partir da realidade concreta do SUS, com participação de trabalhadores e gestores, evitando que soluções prontas importadas do setor privado perpetuem desigualdades ou transformem direitos em mercadorias.

Tecnologias digitais e epidemiologia

Para o pesquisador, a Saúde Digital e a inteligência artificial podem representar uma revolução para a epidemiologia no SUS, permitindo transformar dados de atendimentos em ferramentas poderosas de vigilância em saúde. Ele destaca como plataformas como o Cidacs da Fiocruz Bahia e a Plataforma de Ciência de Dados aplicada à Saúde (PCDaS) do Icict/Fiocruz já utilizam essas tecnologias para monitorar em tempo real a dinâmica de doenças como dengue e síndromes respiratórias.

Eles integram informações que vão além dos prontuários eletrônicos – incluindo dados ambientais e sociais. Essa abordagem inovadora permite não apenas detectar surtos com maior agilidade, mas também compreender os determinantes sociais da saúde, criando possibilidades reais de intervenção preventiva e fortalecendo a capacidade do SUS em promover saúde de forma integral, indo muito além do modelo tradicional de assistência curativa.

Participação popular como caminho

O que Marcelo frisa ao longo de toda a entrevista é: para que a saúde digital cumpra seu potencial, é essencial envolver trabalhadores e usuários do SUS na construção das ferramentas. Exemplos como o e-SUS APS, desenhado a partir da rotina das equipes de atenção básica, mostram que tecnologias colaborativas podem reduzir a sobrecarga e melhorar a qualidade do registro. Já a criação da Câmara Técnica de Saúde Digital no Conselho Nacional de Saúde (CNS) é um passo para garantir que a população decida – e não apenas sofra – os impactos dessa transformação. O futuro do SUS depende de escolhermos: queremos tecnologia a serviço do lucro ou da universalidade? É o que provoca Fornazin.

Créditos da imagem: IEPS

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