Redistribuição de renda: política para saúde mental

Ampliação do Bolsa Família no Brasil e aumento do salário mínimo na Inglaterra reduziram taxas de suicídio e depressão, mostram estudos. Para que a luta contra a explosão do sofrimento psíquico dê resultado, é indispensável enfrentar a desigualdade

Foto: Sergio Amaral/MDS
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Por Cláudia Braga, para sua coluna no Outra Saúde

Em 2017, um estudo publicado no periódico Health Economics investigou: os aumentos salariais melhoram a saúde mental? O contexto é o seguinte. Em 1999, um salário mínimo havia sido estabelecido na Inglaterra, o que acabou criando três cenários: (a) pessoas que efetivamente tiveram o salário aumentado para atingir o novo salário-mínimo; (b) pessoas que não tiveram um aumento efetivo porque já ganhavam entre 101% e 110% do novo salário-mínimo; (c) pessoas que não se beneficiaram desta política de aumento salarial, por viverem condições informais de trabalho. 

Considerando esses três segmentos, o estudo analisou se o aumento efetivo de salário do primeiro grupo impactou sua saúde mental, em comparação com os demais. Mais especificamente, verificou-se, por meio de entrevistas e questionários padronizados aplicados uma vez por ano entre 1999 e 2009, se as pessoas desses três grupos apresentaram sintomas de depressão.

A diferença nos resultados se mostrou estatisticamente significativa, e as pessoas do primeiro grupo – as que efetivamente passaram a receber um salário-mínimo e, assim, tiveram seu salário aumentado – apresentaram melhores resultados de saúde mental em comparação com os outros dois. E mais: os pesquisadores afirmam que, em um cálculo estatístico, essa melhora representou aproximadamente 0,37 desvio padrão, valor comparável em magnitude ao efeito estimado para uso de antidepressivos, que é de 0,39 de desvio padrão. 

Os autores reconhecem que mais estudos são necessários, mas a pesquisa concluiu que a introdução do salário-mínimo, ao representar uma melhora nas condições econômicas de um dos grupos, teve impacto estatisticamente e clinicamente significativo na saúde mental de trabalhadores beneficiados. O mesmo pode ser dito dos programas de transferência de renda do Brasil, sugere um estudo nacional – o que nos convida a refletir sobre a importância de lutar contra a desigualdade de renda para garantir o êxito das políticas de saúde mental.

Leia todos os textos da coluna Cuidar das pessoas, cuidar das cidades, de Cláudia Braga.

Políticas para prevenir mortes por suicídio

Publicado em 2019, o estudo teve o Brasil como cenário de investigação e, como foco, um tema sensível em políticas públicas em saúde mental: prevenção de mortes por suicídio.

Quanto desenho do estudo, a pesquisa envolveu 5.507 municípios brasileiros e analisou estatisticamente a tendência das taxas de suicídio entre 2004 e 2012, em correlação com a implementação de um determinado programa que envolveu cerca de 14 milhões de famílias. Em resumo, os resultados mostraram uma acentuada redução das mortes por suicídio associada ao acesso a esse programa e revelaram que os efeitos na redução da taxa foram ainda mais fortes nos municípios que contam com maior cobertura e com maior tempo de implementação (três anos ou mais) desse modo de cuidar das pessoas. Como era de se esperar, o estudo também mostrou uma correlação entre o acesso ao programa e a redução das hospitalizações por tentativas de suicídio na população beneficiária.

E de qual programa estamos falando, afinal?

Do Bolsa Família.

O que a pesquisa analisou foram os impactos deste programa de transferência de renda, instituído no governo Lula. O estudo verificou que há uma relação significativa entre os municípios com maior cobertura do Bolsa Família e as menores taxas de morte por suicídio. E a correlação é tão forte que se observou que as menores taxas ocorreram entre as mulheres – que, vale lembrar, são preferencialmente as beneficiárias do Bolsa Família.

O Bolsa Família sabidamente impacta a vida das pessoas, tendo promovido redução da pobreza, da mortalidade infantil, aumento dos níveis de escolaridade e de rendimento entre os beneficiários. O programa também tem impactos nas relações sociais, sendo conhecido o efeito de ampliação do poder de decisão de mulheres beneficiárias. E o Bolsa Família contribui para reduzir a enorme desigualdade de renda do país.

Assim, o que a pesquisa indica é que este complexo conjunto de impactos possíveis, gerado por um programa de transferência de renda, pode também influenciar positivamente a saúde mental das pessoas. 

Aliás, o reconhecimento de que programas de transferência de renda tem efeitos também como políticas de prevenção ao suicídio não é algo só visto no Brasil. Na Indonésia, estudos indicam que as taxas de morte por suicídio caíram 18% após a implementação de um programa do tipo. Essa relação entre a implementação de políticas de enfrentamento de desigualdade de renda e melhora da experiência de saúde mental da população é um campo vasto para pesquisas e a ser explorado – mas não exatamente uma novidade.

Pobreza e saúde mental

Basta recordar que há quase 30 anos já é bem estabelecido e reconhecido que a pobreza tem relação com a saúde mental em um ciclo negativo. E o relatório publicado em 2024, de autoria do Relator Especial para Pobreza e Direitos Humanos da ONU, reafirma essa conexão. O documento parte da premissa de que a saúde mental deve ser compreendida como uma questão de justiça social, e não meramente como um problema individual que precisa ser tratado.

Entre as conclusões apresentadas, o relatório afirma que pobreza e experiência de sofrimento estão interligadas em um ciclo de retroalimentação: a pobreza aumenta as chances de uma pessoa experimentar um problema de saúde mental; e uma pessoa com problema de saúde mental que não encontra resposta apropriada de cuidado, enfrenta mais dificuldades para acessar educação, trabalho, renda e outros direitos, perpetuando uma situação de não pertencimento social. O relatório ainda assinala que a diferença de renda também agrava a experiência de sofrimento psíquico. Portanto, não apenas a pobreza material, mas também a desigualdade de renda é um problema que precisa ser enfrentado adequadamente como parte da agenda de saúde mental.

Se é assim, devemos investir em políticas que deem respostas reais a esses problemas, retirando pessoas da situação de pobreza e diminuindo a desigualdade de renda. Resta perguntar: hoje, no Brasil, a quem cabe cobrar para que políticas desse tipo sejam implementadas?

O papel do Congresso Nacional

De alguns anos para cá, a saúde mental se tornou um assunto cada vez mais familiar. Ainda mais quando a notícia é que o SUS registrou um aumento do número de internações por tentativas de suicídio e por autolesão, é realmente preciso falar disso. Sob quais termos e a partir de quais perspectivas fazê-lo, é assunto longo e a se debater.

Fato é que, acompanhado deste protagonismo que o tema da saúde mental vem ganhando, observa-se uma expansão na proposição de ideias para ampliar o cuidado em saúde mental no âmbito das políticas públicas. Tais propostas, muito frequentemente, estão circunscritas à duas ideias: a criação de serviços ou políticas específicas para determinado problema ou grupo populacional e, articulada à primeira ideia, a determinação de prestação de serviços por alguma categoria profissional em certo cenário de vida.

Seguramente, é relevante e necessário o fortalecimento e expansão de serviços de saúde mental – de base territorial e articulados aos princípios e à lógica da Rede de Atenção Psicossocial, para não incorrer na fragmentação da política pública, da rede e do cuidado. Mas o que esses exemplos de políticas de redistribuição de renda e seus impactos na saúde mental indicam é que defender e aprovar políticas que focam na diminuição da desigualdade de renda é, também, batalhar pela saúde mental da população.

A pauta atual é de justiça tributária pela redução da desigualdade social e de renda. Se tomarmos como referência os resultados dos estudos mencionados, é preciso assumir e levar à sério a hipótese de que apoiar e aprovar projetos de lei que almejam à justiça tributária – tendo como impacto a diminuição da desigualdade de renda – é atuar em favor da saúde mental. Por isso a importância de que aqueles que se colocam na linha de frente da saúde mental levem a sério o debate sobre taxar mais os super-ricos e assegurar isenção tributária para quem ganha até R$5 mil. Esse debate, inclusive, precisaria ir além: se precisamos de mais programas e serviços para ampliar o cuidado em saúde mental, é preciso que o ajuste fiscal não atinja os programas sociais – é uma questão de responsabilidade e coerência.

Agora, para ficar no tema central discutido aqui, o que as pesquisas indicam é que defender o enfrentamento da desigualdade de renda é voto de compromisso com a saúde mental da população. Temos, hoje, uma oportunidade única de avançar na diminuição da desigualdade de renda – e, de quebra, uma conquista do tipo pode ser também uma vitória para a saúde mental.

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