Quem quer o Profags?

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Edital do curso de formação técnica em enfermagem para ACS e ACE, lançado esta semana, dedica grande espaço à participação de empresas privadas e provoca dúvidas acerca da organização dos campos de estágio

Por Kátia Machado, da EPSJV/Fiocruz

Publicado no dia 19 de fevereiro, o edital do Programa de Formação Técnica para Agentes de Saúde (Profags), do Ministério da Saúde, instituído pela Portaria nº 83/2018, traz as orientações para o credenciamento de “empresas” interessadas em executar o curso de formação técnica em enfermagem para agentes comunitários de saúde e agentes de combate a endemias, em um prazo de dois anos (1.800 horas-aula), na modalidade presencial ou semipresencial. A proposta, segundo o Ministério da Saúde, é qualificar cerca de 250 mil agentes em todo o Brasil, buscando ampliar a atribuição desses profissionais como parte da nova Política Nacional da Atenção Básica (PNAB). “Os profissionais poderão fortalecer as ações de promoção da saúde e de prevenção de doenças passando a fazer curativos em domicílio, medir a pressão e a glicemia, entre outras atribuições que levarão atendimento primário à casa do paciente”, informa o Ministério da Saúde em seu portal. Para tanto, a pasta destinará R$ 1,25 bilhão, estabelecendo um valor de R$ 5 mil por aluno, fixo e irreajustável.

 

 

Muitas críticas ao próprio programa – que oferece uma formação em enfermagem para dois profissionais distintos cujas áreas têm, cada uma, seu próprio curso técnico – já vinham sendo feitos por várias entidades, entre elas a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), a Confederação Nacional dos Agentes Comunitários de Saúde (Conacs) e a Federação Nacional de Agentes Comunitários de Saúde e de Combate a Endemias (Fenasce) – veja aqui matéria sobre o Profags. Com o lançamento do edita (confira nota da ABEn-RJ e EPSJV sobre o programa)l, surgem novos questionamentos como, por exemplo, o fato de o texto não privilegiar em nenhum momento as instituições públicas, em especial aquelas que compõem a Rede de Escolas Técnicas do SUS (RET-SUS), que têm larga experiência na formação de trabalhadores já inseridos no sistema de saúde. O documento diz que podem participar instituições públicas e privadas, devidamente autorizadas pelo Conselho Estadual de Educação, sem nenhuma distinção ou preferência, fazendo referência na totalidade do documento ao termo “empresa”.

Surgem dúvidas também em torno do estágio supervisionado. O edital indica que o curso seja preferencialmente noturno e diz que a instituição deve garantir campo de estágio – obrigatório para a formação – preferencialmente em instituições públicas de saúde, sem cobrança de valor adicional para os estudantes. “As unidades de saúde da família, que em tese seriam um campo de estágio, só abrem durante o dia. Como esses campos de estágio serão aproveitados? À noite, o que tem aberto? Hospital público e privado, mas aí não tem atenção básica. Então que formação em enfermagem é essa? Para que campo de atuação?”, questiona a professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), Márcia Valéria Morosini, que integra um grupo de trabalho interlaboratorial da Escola Politécnica que vem acompanhando as mudanças relativas à atenção básica. Ela realça ainda que a pauta dos agentes tem sido para que a formação se dê durante a jornada de trabalho, e não no contraturno. “Olha a perversidade: para se formar nesse caso, ele terá penalizado seu horário de lazer e descanso. O ensino noturno, nesse caso, é contrário ao que os movimentos organizados dos ACS defendem como possibilidade formativa”, destaca.

Diretora da Escola Técnica do Sistema Único de Saúde de Blumenau e representante da Região Sul na RET-SUS, Claudia Lange lembra também que garantir o estágio em instituições públicas – que é o campo de trabalho dos ACS e ACE que farão o curso – requer exigências, como a de ter um enfermeiro supervisor. Além disso, segundo ela, o valor disponibilizado no edital não cobriria todos os custos de um curso técnico em enfermagem, incluindo os gastos com campos de estágio, seguro obrigatório, materiais didáticos e custos com coordenação. “Na minha região, o custo por aluno somente com o estágio é de R$ 800”, exemplifica. Para Claudia, a qualidade do ensino oferecido está em xeque, já que o estágio obrigatório pode ser realizado por escolas “não idôneas”, de forma não presencial, o que contribuiria para uma formação de técnicos em enfermagem sem habilidades e competências para sua atuação mesmo nessa área.

Impactos sobre o exercício profissional

O Profags apresenta muitas inconsistências, realça Claudia. Primeiro porque impede uma formação com qualidade. “Dois anos não são suficientes para cumprir a carga horária do técnico em enfermagem”, observa. Segundo porque fere a lei do exercício profissional de enfermagem (Lei n° 7498/1986) quando amplia as atribuições do Agente Comunitário de Saúde (ACS), incluindo verificação de pressão arterial e temperatura, glicemia capilar, curativos e orientações sobre medicamentos, mantendo-o sob a supervisão de um profissional de saúde de nível superior e não especificamente de um enfermeiro. Além disso, ressalta, não os remunera para essa função. Claudia lembra ainda que a esses profissionais serão exigidas atribuições que não são de sua competência e que não estão descritas no Plano de Cargos e Salários Municipais. Por fim, lembra a diretora da ETSUS Blumenau, não poderá ser exigida desses trabalhadores a contribuição de classe do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), órgão que regulamenta a profissão. “O que configura exercício ilegal da profissão”, realça.

Na avaliação de Luiz Cláudio de Souza, presidente da Federação Nacional de Agentes Comunitários de Saúde e de Combate a Endemias (Fenasce), o interesse do Ministério da Saúde é privilegiar as empresas, em detrimento das escolas de saúde pública. “Eles querem fazer o curso em tempo recorde, e sabemos que as escolas de saúde pública do país não teriam essa capacidade de formar várias turmas. O caminho seria fortalecer as nossas escolas, que têm história de formação para o SUS, deixando para as instituições privadas apenas o que não fosse possível ser realizado pelas instituições públicas. Mas a lógica do Profags é contrária: prioriza as empresas”, observa, salientando ainda que se trata de um projeto “arquitetado desde a formação da [nova] PNAB”.

As empresas estariam, segundo Claudio, de olho no quantitativo a ser formado. “Elas pensam no montante do valor, uma vez que não têm compromisso com a qualidade da formação”, critica. E acrescenta: “Em tempos de corte de gastos, o ministro da saúde resolve oferecer um curso gastando muito mais do que se fizesse um curso na área do agente comunitário e de combate a endemias. Isso é no mínimo estranho”.

Recursos não garantidos até o fim

Segundo informações do portal do Ministério da Saúde, as empresas e instituições que quiserem oferecer o curso precisam se credenciar e indicar a quantidade de vagas possíveis de serem atendidas, por município de abrangência e por semestre. Após isso, elas encaminharão para avaliação do Ministério documentos que comprovem habilitação jurídica, regularidade fiscal e trabalhista, além de qualificação técnica e econômico-financeira. As propostas serão analisadas no prazo de dez dias a partir do recebimento dos documentos, levando em consideração todos os parâmetros descritos no edital. Caso a documentação da “empresa”, como escreve o edital, seja aprovada, o credenciamento será homologado e publicado no Diário Oficial da União. A pasta esclarece também que o edital de credenciamento e o Termo de Execução Descentralizada (TED), convênio ou contrato com as instituições têm vigência de 20 meses, podendo ser prorrogado por igual período até o limite de 60 meses. O pagamento será realizado em três parcelas: a primeira será de 20% do valor após o primeiro mês do curso; a segunda, 40% após 12 meses; e o restante, após a conclusão do curso. “Porém, o Ministério da Saúde não garante o recurso até o fim da vigência do programa, pois anuncia no edital a exigência da devolução de recursos caso o aluno ACS ou ACE não finalize o curso técnico em enfermagem. E sabemos que cursos com alunos/trabalhadores têm uma alta evasão escolar”, destaca Claudia Lange, afirmando, de antemão, que a escola que ela dirige não oferecerá a formação por concluir que, com isso, estaria promovendo desvio de função.

O Portal EPSJV/Fiocruz enviou perguntas de esclarecimento sobre o edital e o programa como um todo para o Ministério da Saúde, mas, até o fechamento desta matéria, não tinha obtido resposta.

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