Quando a saúde brasileira encontrou a soviética
Na URSS, estes médicos – entre eles, o ministro da Saúde de JK – viram algo, à época, inédito: um sistema de saúde gratuito, com técnicas modernas e trabalhadores bem pagos. No Brasil, dos anos 30 aos 50, seus relatos tiveram notável presença nos debates da saúde pública
Publicado 10/02/2025 às 09:09 - Atualizado 10/02/2025 às 15:05
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No ano de 1953, após participar de um congresso mundial de medicina em Viena, o médico brasileiro Raul Ribeiro da Silva recebeu uma proposta tentadora. Foi convidado a fazer parte de uma delegação de profissionais que, ao longo de dez dias, conheceria a União Soviética e seu afamado sistema de saúde pública, um dos primeiros da história. Uma chance rara em tempos de início da Guerra Fria. O que Raul observou – e, conforme seu relato, apreciou – está registrado no hoje raro livro A Rússia vista por um médico brasileiro, lançado à época pela editora Civilização Brasileira.
Seu relato não é o único. Dos anos 1930 aos anos 1950, vários outros médicos brasileiros escreveram obras bastante similares sobre a saúde soviética, que conheceram em viagem – entre eles, personagens que poderíamos chamar de “ilustres”, a exemplo de Maurício de Medeiros, futuro ministro da Saúde do governo Juscelino Kubitschek, e Osório César, psiquiatra no Hospital do Juqueri, companheiro da pintora modernista Tarsila do Amaral e pioneiro da arteterapia no Brasil. Muitos dos viajantes, como Medeiros, não eram militantes ou mesmo simpatizantes comunistas.
Em seu doutorado, a pesquisadora da Fiocruz Gabriela Alves Miranda mapeou e analisou essas publicações, entre as quais encontrou uma confluência: a admiração pela saúde soviética partia da intenção de desmistificar e trazer ao Brasil concepções lá implementadas. Algumas que hoje conhecemos muito bem: uma saúde pública e gratuita com integração com educação e pesquisa, formação continuada dos profissionais, estímulo ao desenvolvimento de novas técnicas e outras inovações. Quarenta anos depois, por outros caminhos, alguns desses pontos se tornaram pilares da criação do Sistema Único de Saúde (SUS).
Em entrevista a Outra Saúde, Gabriela explica a pouco conhecida presença desses relatos sobre a saúde da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) nos debates da saúde pública brasileira até os anos 1950 – e sua incidência no embate entre “projetos de organização da saúde pública e da assistência médica no Brasil” daquele tempo.
Década de 1930: uma empolgante nova sociedade
Nos anos 1930, mesmo que mais de uma década já houvesse se passado desde a Revolução Russa de 1917, a União Soviética seguia sendo uma terra relativamente desconhecida para o resto do mundo. Poucas informações confiáveis sobre os rumos do país socialista, isolado por um “cordão sanitário” das potências que viam um perigo em sua influência, eram claras para observadores externos.
Contudo, a crise geral das grandes economias capitalistas após o Crash de 1929 viria a multiplicar o interesse geral pela URSS. Sua economia seguia crescendo consistentemente – e registravam-se enormes ganhos sociais para a população, não só em comparação com o período do czarismo como também com as nações mais prósperas daquele tempo. Nesse contexto, em diversos países, livros com relatos dos viajantes que adentravam o território soviético vendiam milhares de exemplares – e o Brasil não ficou de fora desse fenômeno. Como explica Gabriela Miranda em sua tese, em uma tendência que teve início com os Dez dias que abalaram o mundo de John Reed, “as viagens à Rússia após a revolução socialista representaram o mundo novo para leitores do século XX”.
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Parte desse mundo novo consistia nos avanços da saúde pública vividos na União Soviética e registrados pelos relatos de inúmeros viajantes. Ainda no início daquela década, a publicação de Rússia: notas de viagem (1931) por Maurício de Medeiros inauguraria essa tendência no Brasil. O autor, médico e professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, não era um simpatizante do comunismo – e, segundo define Miranda, assume uma narrativa “crítica e moderada” sobre o sistema soviético na obra. Mesmo assim, Medeiros destaca que as descrições de um caos social repercutidas pela imprensa ocidental eram “completamente fantásticas” – isto é, falsas – e que notáveis progressos no campo da saúde estavam sendo implementados ali. Seu livro teve uma tiragem de 24 mil exemplares e 6 reedições, um enorme êxito para a época.
No ano seguinte, viria Onde o proletariado dirige (1932), de autoria do médico paraibano e militante comunista Osório Cesar. Psiquiatra do Hospital do Juqueri, ele teria escrito um relato mais detalhado do que Maurício – o deste, sendo mais genérico – sobre o que viu. “No relato do Osório, ele se mostra bastante impressionado com a quantidade de instituições científicas de lá. Ele já chama atenção para o apoio estatal que levou à criação dessas instituições de pesquisa, não necessariamente só de saúde pública, mas também de pesquisa biomédica”, explica Gabriela a Outra Saúde.
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Citado no trabalho da pesquisadora, o professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Cláudio Bertolli Filho destaca que a medicina soviética tornou-se objeto de interesse porque “representava a ideia de ampla assistência aos cidadãos e de maior participação dos médicos na resolução dos problemas nacionais” – elementos, em larga medida, ausentes do cenário brasileiro e de outros países naquele período. Por isso, explica Gabriela, os relatos não se tratam de textos meramente descritivos, mas de ferramentas empregadas por seus autores para incidir nos debates da saúde pública no país.
“Um dos temas que mais nos vêm aos olhos, por conta do que estamos vivendo no mundo de hoje, é o do aborto legal. O Medeiros chama muita atenção para o tema do aborto, que era legalizado na União Soviética dos anos 1930. O tema da maternidade também aparece bastante, porque a saúde materna e infantil era bastante desenvolvida na União Soviética naquele momento”, ela explica. Naquela época, o “aborto livre na URSS repercutia como escândalo no mundo capitalista”, aponta Gabriela, e os autores demonstram que ele vinha sendo uma política exitosa em diversos sentidos naquele país, especialmente em termos de seus fins de saúde pública.
Ambas as obras também elogiam a medicina soviética por “[abordar] a doença em uma perspectiva ampla”, levando em consideração “os elementos que compunham as condições de vida do paciente, tais como visitas a domicílios, consultas a familiares e análise do meio em que viviam”, ela escreve em sua tese. Segundo a pesquisadora, “ainda nos anos 1930 também aparecem [na URSS] os centros de saúde e assistência nos municípios e bairros”, isto é, a territorialização da saúde pública.
A concepção ali implementada tinha nome: ficou conhecida como Modelo Semashko, em homenagem ao médico Nikolai Semashko, ministro da Saúde Pública de 1918 a 1930 na Rússia Soviética. Sob sua direção e orientação é que foram constituídas as bases do sistema público de saúde daquele país.
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Os relatos de profissionais de saúde como Maurício de Medeiros e Osório César não foram os únicos no mercado editorial brasileiro a tratar sobre a medicina soviética naquela década. Outros viajantes nacionais, como o historiador Caio Prado Júnior e o engenheiro Claudio Edmundo, também publicaram obras sobre aquilo que viram na União Soviética.
Além disso, livros de autores estrangeiros que geraram interesse no público, como A luta contra a tuberculose na URSS, Proteção à maternidade e à infância na União Soviética e A vida sexual na Rússia também foram traduzidos para o português – e é relatada a influência da tese Socialized medicine in the Soviet Union, publicada em 1937 pelo médico norte-americano Henry Sigerist, sobre muitos profissionais. Dono da Editorial Calvino, o médico João Calvino Filho seria o responsável pela maioria dessas publicações no Brasil.
Anos 1950: Saúde do trabalhador e valorização dos médicos
Após a Segunda Guerra Mundial, o prestígio soviético havia crescido por todo o mundo, especialmente pelo papel central que o país cumpriu na destruição do nazismo. Mas não só: a URSS também passava mais uma vez por um período de acelerado crescimento econômico, que consolidava o estado de bem-estar social e as instituições de saúde pública e ciência fundadas nas décadas anteriores.
Por isso, nos anos 1950, um renovado interesse pelo gigante do Leste se traduziu na publicação de novos livros de médicos brasileiros que conheceram o sistema de saúde soviético. Dois deles – A Rússia vista por um médico brasileiro (~1956), de Raul Ribeiro da Silva, e Médicos brasileiros na URSS (1955), de Milton Lobato e Reinaldo Machado – foram estudados por Gabriela Miranda em sua tese. Contudo, os números gerais foram bem maiores: segundo a tese de doutorado da historiadora Raquel Torres, considerada uma referência por Gabriela Miranda, 33 relatos de 54 viajantes à União Soviética foram publicados no Brasil entre 1951 e 1963.
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Em comparação com a década de 1930, a União Soviética possuía uma política mais organizada para recebê-los – e inclusive atraí-los. Criaram-se roteiros institucionais, desenhados pela agência turística estatal VOKS, que conduziam profissionais por instituições-modelo da saúde pública e da ciência, como maternidades e centros de pesquisa.
“Nos relatos dos anos 50, você percebe uma maior estruturação do espaço pediátrico e das instituições de saúde. Na época em que o Osório César e o Maurício de Medeiros – e também o Caio Prado Júnior, que não era médico – foram, eles estiveram mais livres para conhecer o que queriam. Não é que os outros estivessem ‘presos’, mas havia uma organização maior da viagem por parte dos soviéticos, que amarraram um pouco mais um roteiro de viagens para divulgar o socialismo para os ocidentais”, explica a historiadora.
Além disso, em um sentido político mais amplo, o movimento comunista internacional se esforçava para para convencer os médicos de todo o mundo – assim como outros profissionais e técnicos, a exemplo dos arquitetos, juristas, etc. – de que só o socialismo seria capaz de permitir o desenvolvimento pleno de sua profissão, em um mundo de paz e justiça. O movimento mundial pela paz era um dos principais instrumentos dos comunistas para interpelar os intelectuais e artistas a se somarem à luta contra o conflito imperialista e o perigo crescente de uma agressão das potências ocidentais contra a União Soviética, que poderia desencadear uma temida Terceira Guerra Mundial.
“Aquele momento é um início desse crescimento do perfil da União Soviética, que está fazendo sua diplomacia cultural depois de um período de isolamento. O fluxo de latino-americanos vai ficando cada vez maior a partir dos anos 1950 até os anos 1970, principalmente após a criação, ali em 1960, da Universidade da Amizade dos Povos Patrice Lumumba, voltada para os povos do Terceiro Mundo”, ela aponta.
Um dos principais instrumentos dessa diplomacia cultural naquele período foi a realização de congressos internacionais em prol de causas que poderiam unir os comunistas a pessoas de outros credos ou mesmo “apolíticas”, como a luta pela paz ou contra a miséria. Em dezenas de países, grupos de profissionais se organizavam para participar dos eventos. Um deles foi o Congresso Internacional de Medicina, realizado em Viena no ano de 1953 – de cuja delegação brasileira fizeram parte os autores de ambos os livros analisados por Gabriela.
A historiadora destaca que os debates promovidos no Congresso já ensaiavam temas que seriam melhor desenvolvidos posteriormente. “É um dever dos médicos em seu ofício, seja aonde estiver, defender a paz e lutar por melhores condições de vida. Naquele momento, a ideia de determinantes sociais da saúde ainda não era um conceito solidificado, mas a gente vê que eles estavam discutindo o papel das condições de vida no bem-estar das pessoas. Ali, em 1953, já se estava entendendo que a saúde era algo muito mais amplo do que a doença”.
Contudo, mais importante foi o que ocorreu após o evento. Como desejavam e antecipavam, os membros da delegação receberam um convite do Ministério da Saúde Pública soviético para, partindo de Viena, conhecer a URSS e seu sistema sanitário. É dessa experiência que se servem seus relatos de viagem, dos quais a pesquisadora apresenta as principais observações.
“Você não encontra os termos saúde universal ou saúde integral nos relatos de viagem ou na revista. Mas você encontra acesso a ideia de acesso gratuito, franco acesso. Também se discute a característica de ser uma saúde mais voltada para a prevenção do que para a medicina curativa, além do fato de exames serem realizados nas fábricas e locais de trabalho. Os médicos brasileiros ficaram bastante impressionados positivamente com essa forma de prevenção”, diz Gabriela.
Também no âmbito da saúde do trabalhador, há uma percepção de pioneirismo da URSS. “No seu relato, o Raul Ribeiro destaca que os trabalhadores de fábricas deviam a cada seis meses fazer exames de prevenção da tuberculose. Os que não eram operários são convidados a fazer o mesmo, por meio do que ele chama de ‘propaganda sanitária’. Me parece ser um pouco o que hoje nós chamamos de informação em saúde. Esse tema das campanhas sanitárias aparece com bastante força no relato do Raul, mas principalmente no do Milton Lobato”, avalia a pesquisadora.
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“Outro tema a que eles dão bastante atenção é o da saúde rural. O médico de saúde rural era muito valorizado pelo Estado, era obrigatório que se fizesse um estágio nas regiões mais interioranas e periféricas da União Soviética. Mas vale dizer que os médicos brasileiros não foram muito para essas regiões, eles ficam com o que foi dito a eles”, ela complementa.
Por fim, explica Gabriela, “os viajantes se impressionam com os salários, que eram bons salários, mas também com o respeito que os médicos tinham naquela sociedade. Na verdade, nesse momento eles estão falando com o público dos seus pares. Nos anos 50, essa discussão sobre o papel político dos médicos estava pegando, e houve algumas greves da categoria no Brasil”.
Com essa observação, a historiadora retoma aquilo que, em sua visão, era o sentido de publicar aqueles relatos: além da desmistificação da propaganda anticomunista sobre a URSS, havia um interesse profundo em trazer as ideias e práticas consideradas positivas da medicina soviética para a consideração do público brasileiro, seja o geral ou especializado. “Naquela época, se estavam discutindo projetos de país para o Brasil, e essas ideias estavam em debate – e, por vezes, sendo postas em prática – nesse contexto político”, sintetiza Gabriela. Os projetos de país, inevitavelmente, envolviam “projetos de organização da saúde pública e da assistência médica no Brasil”.
O interesse dos brasileiros se estendia ainda às técnicas médicas desenvolvidas na União Soviética. Em sua tese, a pesquisadora também analisa em detalhes os números da revista Atualidades Médicas e Biológicas, periódico de divulgação científica editado pelos médicos comunistas Alcedo Coutinho e Irun Sant’anna de 1951 a 1960, que também promovia seminários e estudos sobre as práticas de saúde concebidas naquele país. Algumas delas sendo o “parto sem dor” popularizado por Fernand Lamaze, as terapias de tecidos humanos do oftalmologista Vladimir Filatov e a fisiopatologia preconizada por Ivan Pavlov.
Para Gabriela, é uma tarefa complexa mensurar com exatidão a influência que tiveram todos esses relatos na época de sua publicação — apesar do êxito de vendas do livro de Medeiros. Evidentemente, apesar de ocupar o Ministério da Saúde no governo de JK, o médico e viajante Maurício de Medeiros não implementou a socialização da saúde brasileira. Apesar disso, há registros fotográficos de palestras sobre a medicina soviética que atraíam centenas de assistentes no Rio de Janeiro e em São Paulo nos anos 1950. A historiadora também revela em sua tese que a polícia considerava os autores importantes o suficiente para acompanhar de perto sua atividade política, como demonstram os fartos prontuários encontrados.
Sem dúvida, além de todos esses pontos, há o pioneirismo em valorar positivamente políticas públicas à época minoritárias, mas que no futuro seriam essenciais para o SUS.
Conexões, ainda que indiretas, com o SUS?
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Nos anos 1970, cerca de duas décadas depois dos últimos debates estudados por Gabriela Miranda, ressurgiu com força no seio da oposição ao regime militar a bandeira da universalização do direito à saúde no Brasil. Em 1988, nos marcos da Assembleia Nacional Constituinte, esse movimento social que teve início em meados dos anos 1970 conquistou a criação do Sistema Único de Saúde, que hoje é o maior sistema de seu tipo – isto é, público, gratuito e universal – em todo o mundo.
Assim como no caso de alguns dos médicos viajantes que relataram ao público brasileiro os avanços vividos pela saúde soviética, muitos dos proponentes dessa reforma estrutural que mudou a história do Brasil eram comunistas – especialmente aqueles que estavam na vanguarda de sua formulação. A questão democrática na área da saúde, considerado o primeiro documento a apresentar a proposta do SUS, contou com a participação de militantes do PCB em sua elaboração. Não eram nem de longe os únicos. Dezenas de figuras associadas àquele partido, mas também a outras organizações marxistas-leninistas, estiveram envolvidas de diversas maneiras na luta que, de forma associada, derrubou a ditadura e conquistou a criação do SUS.
Contudo, Gabriela Miranda destaca que seria exagerado falar de uma influência direta dos relatos de brasileiros que conheceram a saúde soviética sobre as ideias da Reforma Sanitária. O próprio golpe militar de 1964 serviu como uma espécie de corte, que limitou as trocas entre diferentes gerações de ativistas – além disso, naquelas décadas, surgiram outros sistemas públicos e outras concepções sanitárias que poderiam servir de inspiração aos interessados em promover a universalização da saúde no Brasil.
No mesmo sentido, para figuras que tiveram uma participação bastante ativa na efervescência daquele período, como os sanitaristas Reinaldo Guimarães e Sonia Fleury, outros modelos foram mais importantes nas discussões da Reforma Sanitária.
“No SUS, foram outras as principais influências. Inglaterra, Cuba, Canadá e a Itália, essa tanto no que se refere à reforma sanitária quanto à saúde mental”, explica Sônia, uma das principais responsáveis pela elaboração do documento “Pelo direito universal à saúde“, que também preparou o caminho para a criação do Sistema Único de Saúde. Ela também acrescenta que “hoje, o SUS, que é um modelo original, serve de inspiração pra esses países e muitos outros”.
Já Guimarães, que hoje é professor da UFRJ e vice-presidente da Abrasco, rememora discussões sobre o feldsher, um profissional do sistema de saúde soviético de formação intermediária e capacitado para aplicar algumas técnicas médicas. Não surgiu uma figura com exata equivalência no SUS – mas a ideia teria feito parte do debate mais amplo que desembocou na criação da Estratégia de Saúde de Família, implementada na década seguinte.
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Apesar disso, ambos os sanitaristas destacam que variadas experiências internacionais, e não apenas a soviética, incidiram sobre o que viriam a ser a ESF e os agentes comunitários de saúde. Uma delas foi a “da China dos anos 1960”, lembra Sônia Fleury, com seus médicos de pés descalços. Outra, a da Saúde da Família implementada em Cuba, como já destacaram os sanitaristas cearenses Odorico Monteiro e Carlille Lavor em entrevistas de 2010 e 2015 à revista da Fiocruz Trabalho, Educação e Saúde. Ambos estiveram envolvidos, ainda nos anos 1980, na bem-sucedida implementação no Ceará de métodos com significativa inspiração no sistema cubano mas também na experiência de Planaltina (DF), processo que antecedeu a nacionalização da ESF.
Na mesma entrevista, Odorico Monteiro também lembra que “evidentemente que, numa etapa anterior, havia a proposta do modelo soviético, conhecido como modelo Semashko, que foi muito pouco discutido no Brasil. Foi a primeira grande perspectiva de universalização que poderíamos ter tomado como referência, mas que, por razões diversas, não chegou a se generalizar em nosso país”.
Por enquanto, nenhuma dissertação ou tese acadêmica investigou em maior profundidade a influência da medicina soviética sobre esse período posterior ao recorte temporal da pesquisa de Gabriela. Mas a pesquisadora acredita que o campo é fértil. “A história da medicina e da saúde pública, que antes era uma narrativa muito europeia e norte-americana, está começando a ter mais abertura para essa possibilidade”, ela conclui.