Quando a ciência busca transformar a realidade
No 14º Abrascão, perspectivas inovadoras de pesquisadores brasileiros: epidemiologia baseada em big data e uma nova – e subversiva – maneira de enxergar a alimentação. Como o poder público pode aliar-se à academia para enfrentar as enormes desigualdades do Brasil?
Publicado 03/12/2025 às 15:49 - Atualizado 03/12/2025 às 16:06

Dois dos maiores expoentes da ciência brasileira estiveram presentes na noite de terça (2) no 14º Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva, ao lado da sanitarista, socióloga e ex-ministra da Saúde que comandou a reconstrução do SUS após a pandemia, Nísia Trindade. Eram os epidemiologistas Carlos Monteiro, fundador do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (Nupens/USP), e Mauricio Barreto, criador do Centro de Integração de Dados e Conhecimento para Saúde (Cidacs/Fiocruz) – duas enormes conquistas para a saúde dos brasileiros, com influência global. A concepção e condução do grande debate ficou a cargo do sanitarista e vice-presidente da Abrasco, Reinaldo Guimarães.
Um centro de análise de um enorme volume de dados da população brasileira, que reúne dezenas de pesquisadores para averiguar a efetividade de programas de proteção social e seus impactos na saúde – esse poderia ser um resumo do papel do Cidacs, que está localizado no Parque Tecnológico da Bahia, em Salvador. Ele só foi possível por um diálogo da academia com a gestão pública. Em meados de 2011, começou a ser firmada uma parceria entre pesquisadores e o Ministério do Desenvolvimento Social, por influência da então ministra Tereza Campello. A ideia era ceder para estudos epidemiológicos os dados do Cadastro Único (CadÚnico) – um registro do governo federal de informações de todas as pessoas que se beneficiam de programas assistenciais como o Bolsa Família.

Hoje, 9 anos após a criação do Cidacs, esse sistema conta com informações de 140 milhões de brasileiros – utilizando tecnologias complexas, como alta capacidade computacional. É possível cruzar informações de programas sociais com dados de saúde, nascimento, nutrição, óbitos etc, que formam uma imensa base de investigação e dão subsídio a pesquisas que demonstram a determinação social da saúde. Alguns deles, citados por Mauricio, demonstram que o Programa Bolsa Família, que distribui renda para famílias pobres, teve dezenas de impactos secundários. Ele contribuiu para a melhora do estado nutricional, a redução do baixo peso ao nascer, da mortalidade infantil e materna, de doenças cardiovasculares – até abaixou níveis de hospitalização por suicídio e melhorou a saúde mental de seus beneficiários.
Em sua fala, Mauricio frisou a importância de a epidemiologia estar fortemente vinculada à Saúde Coletiva no Brasil e mostrou como novas tecnologias podem fazer avançar a compreensão sobre a população brasileira – e, mais importante, atuar sobre as imensas desigualdades do país. Segundo ele, as descobertas do Cidacs sobre o impacto do Bolsa Família na saúde mostram que “a importância do SUS tem que ser compatibilizada com processos de transformação da sociedade”. Se um programa como esse, que é capaz de reduzir apenas ligeiramente o fosso entre ricos e pobres, provoca tantas transformações na vida das pessoas, “imaginem o que faria o pleno emprego, por exemplo”, instiga. E encerra com uma defesa: “O SUS é uma engenharia em construção, e ela precisa de um ramo da Ciência & Desenvolvimento que seja inovador e permita a transformação”.
Uma mudança de paradigma na alimentação
Tanto Mauricio quanto Carlos Monteiro, que discursou em seguida, são mostras de que mesmo em condições muito desfavoráveis, a ciência brasileira comprometida com avanços sociais segue forte. O pesquisador da USP foi considerado, pelo Washington Post, uma das 50 pessoas que mais influenciariam o ano de 2025. Isso porque seus estudos foram responsáveis por uma mudança de paradigma na alimentação. Monteiro foi um dos responsáveis pela NOVA, uma classificação de alimentos que os categoriza de acordo com seu grau de processamento – de in natura a ultraprocessados. Até então, grãos de cereais e biscoitos eram igualmente classificados como “fonte de carboidrato”; filé de peixe e salsicha, “proteínas”. Mas os estudos realizados por Monteiro e seus colegas foram mostrando, a partir do final dos anos 2000, que isso não era correto.
Ao longo do século passado, os avanços na indústria eram muito positivos, ao prolongar a duração da comida, conta Monteiro. “Mas a partir de certo momento ela passou a investir em substitutos dos alimentos, extremamente mais lucrativos que os convencionais”, alerta. São os ultraprocessados, formulações industriais com baixíssimo nível de nutrientes e repletos de compostos químicos para torná-los mais agradáveis ao paladar e olfato. Segundo o epidemiologista, a partir de determinado momento, a indústria – com seu enorme poder de influência – começou a mudar o padrão de alimentação das populações para promover esse tipo de comida.
Os estudos do grupo de Carlos Monteiro foram pioneiros em mostrar que essas formulações estavam impactando a população de forma extremamente negativa, causando aumento da obesidade e de doenças crônicas como diabetes e hipertensão. O autor foi um dos responsáveis pela Vigitel, o Sistema de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico que começou a ser implantado a partir de 2005. Por meio de entrevistas por telefone, o Ministério da Saúde começou a fazer uma avaliação de consumo alimentar e atividade física. As primeiras hipóteses sobre a mudança na alimentação dos brasileiros começaram a surgir quando os pesquisadores perceberam que a desnutrição estava caindo, mas a obesidade estava aumentando.

A NOVA tem caráter subversivo, defende Monteiro, porque “aponta com o dedo para quem é o responsável por essa epidemia” – o grande capital. Sua hipótese foi testada por dezenas de cientistas mundo afora que comprovam os malefícios do aumento do consumo de ultraprocessados. Hoje, a classificação de alimentos criada pelo grupo de pesquisadores do Nupens já inspirou as diretrizes de 15 países – tão diversos quanto a França e a Malásia – e influenciou políticas regulatórias por toda a América Latina. O próprio modelo de perfil de nutrientes elaborado pela Organização Pan-americana da Saúde (Opas) se baseou na NOVA.
A fala de Carlos Monteiro traçou um panorama de sua trajetória acadêmica, e merece ser assistida por completo. Vale destacar sua primeira experiência, quando desenvolveu a dissertação de mestrado em 1975, no departamento de medicina preventiva da Faculdade de Medicina da USP. O epidemiologista fez um levantamento nutricional nos bairros onde fazia residência médica, no Vale do Ribeira – região pobre do sul do estado de São Paulo. Seu grande achado: as crianças de famílias que tinham uma porção de terra para plantar, por menor que fosse, eram muito menos afetadas pela desnutrição que aquelas sem posse. “A recomendação da dissertação era a reforma agrária”, brinca, lembrando que aquele era um período de intensa perseguição da ditadura militar no Brasil.
Como resposta, políticas públicas
Falando nos militares… Após a apresentação de Monteiro, o mediador Reinaldo Guimarães passou a palavra para a ex-ministra Nísia Trindade, lembrando: as grandes descobertas da ciência brasileira não são efetivas se não tiver quem as escute no poder público. “Imagine se Carlos Monteiro ou Mauricio Barreto tivessem que lidar com um general Pazuello para implementar suas descobertas”, provoca, recordando o desmonte do Ministério da Saúde no governo Bolsonaro. Nísia, ela própria uma renomada pesquisadora, comandou a reconstrução da pasta com os ouvidos atentos aos cientistas e contribuiu para melhorar os indicadores da saúde dos brasileiros em seus pouco mais de dois anos no ministério.

Ela saudou a presença dos dois epidemiologistas: “A ciência do Brasil hoje é referência e os trabalhos de vocês têm muito a ver com isso. Isso vai além de publicações em periódicos – embora sejam muito importantes. Esse trabalho influencia a construção de políticas públicas”. Ao traçar um panorama das ações de sua gestão à frente da saúde, frisou: “Para que haja consequência no que estamos falando, é importante o investimento em Ciência, Tecnologia e Inovação” – e destacou o “papel de indução do Ministério da Saúde, indução que não se faz de gabinete, mas na escuta e diálogo feitos com comunidade científica e ouvindo os problemas da sociedade”
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