Medicina: por que rejeitar exames de proficiência

Projetos de lei buscam transferir a conselhos profissionais a definição de quem poderá exercer as profissões de médico e dentista. Não parece boa ideia: prejudica estudantes e não garante qualidade de atendimento. Conheça quatro motivos para rechaçá-los

Créditos: Aliburhan S/Unsplash
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Título original: Provas de Proficiência para Médicos e Dentistas: um remédio que erra o alvo, ataca a vítima e pode envenenar o sistema de saúde

Em dezembro de 2024, projetos de lei que instituem os chamados Exames Nacionais de Proficiência para Medicina (PL 2.294/24) e para a Odontologia (PL 3.000/24) foram aprovados em comissão do Senado. Outras organizações profissionais já estão mostrando interesse em atuar pela instituição de exames similares. Porém, a análise dos PLs mostra que se trata de medidas que miram em dois problemas importantes sem conseguir enfrentá-los de fato. Na essência, os PLs revelam evidentes conflitos de interesses, responsabilizam e prejudicam uma das vítimas e poderão ter profundos e negativos efeitos no sistema de saúde, público e privado.

As propostas dessas medidas são simples: modificam as respectivas leis das profissões para condicionar o exercício profissional à realização e aprovação do egresso do curso de graduação em uma prova elaborada e aplicada pelo próprio conselho profissional. Ou seja, o estudante poderia terminar o curso com aprovação, mas ao contrário de poder exercer a Medicina ou a Odontologia, se não passar na prova do Conselho, não terá uma profissão. Há ainda um agravante na comparação com a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB): o graduado em direito que não é aprovado na prova da OAB não pode advogar, mas pode desenvolver diversas atividades nos setores público e privado. O formado em medicina e odontologia não poderá exercer a profissão, provavelmente, só poderá ser aluno do cursinho preparatório para a pretendida prova.

Os problemas-alvo declarados pelo PL 2.294/24 são a “proliferação indiscriminada de cursos de Medicina” e a “precariedade na formação de médicos”. O primeiro problema, em verdade, exige maior efetividade da regulação estatal, já estabelecida legalmente e, recentemente, reafirmada pelo Supremo Tribunal Federal. A Lei e as normas do Programa Mais Médicos (PMM), por exemplo, condicionam a expansão de cursos privados somente em municípios que ainda não têm um curso e, mesmo assim, somente onde haja capacidade institucional e necessidade social, medida objetivamente pelo número total de vagas existentes nos municípios daquela região dividido pelo número de habitantes. A legislação que hoje se aplica à Medicina pode ser estendida para abraçar outras profissões, caso o Congresso queira intervir na raiz do problema.

O segundo problema declarado tampouco é atacado. Não há qualquer intervenção na precariedade da formação, há apenas o impedimento do estudante que foi prejudicado por essa precariedade. Ele é, portanto, prejudicado duas vezes e ainda como cidadão (porque o Estado não o protegeu) e como consumidor (porque pagou caro por algo cuja qualidade mínima não lhe foi assegurada).

As soluções efetivas para esse problema são bem conhecidas por quem estuda as medidas implementadas tanto internacionalmente quanto na história recente do Brasil. Passam pela combinação de iniciativas de qualificação da formação, de avaliação de cursos e estudantes e de regulação e punição das instituições que não atingem o mínimo exigido de qualidade. Para esta finalidade a Lei 12.871/2013, por exemplo, criou uma avaliação específica para o curso de Medicina no SINAES (Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Superior), a envolver governo, instituições de ensino, de estudantes e as organizações profissionais da Medicina. Mas a avaliação foi interrompida no Governo Temer, justamente o período que teve o boom de criação de novas escolas fora das regras da Lei 12.871/2013.

Essa mesma Lei resultou na criação em 2015 da Avaliação Nacional Seriada dos Estudantes de Medicina (Anasem), mais efetiva e mais justa que a proposta do exame de proficiência porque avalia o estudante no 2°, 4° e 6° ano do curso de medicina, detectando o problema ainda enquanto o jovem está sendo formado. Avaliando, responsabiliza e exige medidas concretas da escola antes da conclusão da graduação do estudante. Esta avaliação que seria para a medicina um análogo ao sistema ENEM-SISU, deveria ser também a avaliação de acesso ao Programa de Residência Médica (que forma os médicos especialistas) e de revalidação de diplomas para atuação no Brasil, submetendo a condições rigorosamente iguais os estudantes formados no Brasil ou fora do Brasil, sejam eles brasileiros ou não. Mas esta avaliação também foi interrompida pelo Governo Temer em 2016.

Se o Exame de Proficiência for criado ocorrerá um deletério conluio entre dois interesses particulares que têm sido adversários nos últimos 40 anos: o interesse das empresas de educação de comercializar vagas de graduação com o mínimo de regulação do Estado e o interesse de organizações médicas que querem frear a entrada de novos médicos no mercado de trabalho para evitar perda de valor dos serviços médicos.

Com o exame, perde força o argumento em prol da ação de controle responsável do Estado sobre a quantidade e qualidade dos cursos de medicina, porque o controle passará a ser feito pelo exame. Assim, poder-se-ia abrir cursos à vontade porque, no fim, a prova é que teria o papel de proteger a população do médico mal formado.

Assim, é necessário reconhecer que a análise destas medidas, de seus objetivos, de sua provável inefetividade e de seus efeitos negativos, leva-nos a concluir que são simplórias e equivocadas por muitos motivos, dentre os quais destacamos quatro:

1) não atacam as causas dos problemas, nem a criação de novas vagas sem necessidade tampouco a qualidade insuficiente da formação. Ao contrário, desobrigam o Estado de agir sobre essas causas;

2) deixam de lado as escolas e atacam os estudantes, que além de não serem protegidos das más escolas, passam a ser duplamente prejudicados. Os pesados investimentos de anos a fio de muitos jovens e suas famílias seriam perdidos, em metade dos casos (considerando que quase 50% dos estudantes são reprovados em exame similar realizado por conselho profissional no estado de São Paulo), resultando em uma nova categoria de profissionais: os graduados em uma determinada profissão, mas sem direito de exercício;

3) há uma consequência negativa não planejada pela medida, uma vez que parte significativa dessa categoria de profissionais tenderia, para pagar as dívidas com a formação ou para se manterem, atuar “ilegalmente” ou sendo subcontratada pelos profissionais que teriam a autorização e poderiam “carimbar” por eles;

4) equivocadamente, essas medidas tentam transferir as responsabilidades legais de avaliação da qualidade, que cabem ao MEC, e as de definição da necessidade de profissionais no sistema de saúde, que cabem ao Ministério da Saúde, para os conselhos profissionais. Estas são organizações que não têm competência para nenhuma destas funções e que apresentam evidente conflito de interesse uma vez que visam e atuam pela restrição do mercado de trabalho – a popularmente chamada reserva de mercado.

Em nenhuma hipótese, por exemplo, uma organização nesta condição pode elaborar, controlar o grau de dificuldade e aplicar uma prova que pode impedir que metade dos profissionais formados entrem no mercado de trabalho. Por este motivo, do Canadá à União Europeia o papel de regulação profissional vem sendo ampliado pelo Estado e, para compatibilizar os interesses conflitantes, vem envolvendo progressivamente não só a respectiva profissão, mas também as demais profissões de saúde e representantes da sociedade que devem representar os interesses dos cidadãos-pacientes.

Aos conselhos profissionais cabem seus importantes papéis na prevenção de erros profissionais e nas ações junto aos próprios profissionais para proteger os pacientes. Ao Ministério da Saúde, apoiado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar, cabe a identificação de qual a necessidade, qualitativa e quantitativa, de cada profissão para o adequado funcionamento dos sistemas públicos e privados de saúde. Ao MEC cabe a regulação da abertura, quantidade e qualidade das vagas, incluindo nesse papel a proteção dos estudantes das más escolas. Cada um dos papéis de cada uma dessas instituições deve ser fortalecido e feito com cada vez mais qualidade, abrangência, transparência e imparcialidade.

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