Por que não estamos prontos para a próxima pandemia

Brasil sediou cúpula para pensar e planejar a resposta às próximas crises sanitárias. Fica claro: ainda há muitas lacunas, e a desigualdade é um dos principais problemas. Declaração do Rio de Janeiro busca maior colaboração entre Sul e Norte globais

Créditos: El País Brasil
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Por Kerry Cullinan, no Health Policy Watch | Tradução: Gabriela Leite

As mudanças climáticas provocam cada vez mais surtos de doenças, e mesmo assim o mundo continua mal preparado para a próxima pandemia. Faltam colaboração na vigilância, ferramentas diagnósticas e financiamento, segundo palestrantes na Cúpula Global de Preparação para Pandemias (GPPS), que aconteceu no Brasil.

A cúpula, que durou dois dias, contou com a presença de especialistas globais em pandemias. Tinha como objetivo “revigorar o impulso para a preparação e resposta a pandemias” – mas também ofereceu uma avaliação sóbria das deficiências globais.

“Mais da metade dos patógenos estão sendo intensificados pelas mudanças climáticas. Com a circulação global de patógenos, há um risco maior de transmissão entre diferentes continentes”, alertou o professor Tulio de Oliveira, cientista baseado na África do Sul e principal impulsionador da vigilância genômica de patógenos na África.

Créditos: Health Policy Watch

A Etiópia está enfrentando seu maior surto de dengue, enquanto Burkina Faso também volta a lidar com a doença após quatro anos sem casos. Há uma nova cepa de chicungunha e uma nova linhagem de cólera em Camarões, Tulio observou.

A interação aumentada entre animais, humanos e o meio ambiente – em parte causada pela destruição de habitats e migração – aumentou a mobilidade dos patógenos, afirmou Tulio na cúpula, que foi organizada pelo Ministério da Saúde do Brasil, a Coalizão para Inovações em Preparação para Epidemias (Cepi) e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

A OMS está respondendo a 42 emergências com algum nível de importância, 15 das quais de Grau Três que requerem assistência internacional, informou Mike Ryan, Diretor Executivo de Emergências de Saúde da OMS.

“Hoje, estamos monitorando mais 168 emergências de saúde em andamento ao redor do mundo, gerenciadas em nível nacional. Também estamos buscando respostas à cólera em 30 países, mpox, gripe aviária, H5N1, dengue e febre amarela – além de múltiplas emergências de saúde relacionadas a guerras e desastres naturais”, completou.

Segundo Ryan, “É nossa própria conectividade que nos expõe. Somos a população humana mais conectada da história. Vivemos principalmente em áreas urbanas densamente povoadas onde trabalhamos, nos movemos, nos reunimos e socializamos intensamente”.

Falhas de diagnósticos

De acordo com a organização sem fins lucrativos FIND, dos 21 patógenos com potencial de surto, o SARS-CoV-2 é o único para o qual existe preparação diagnóstica adequada.

Durante a cúpula, a FIND lançou seu Índice de Preparação Diagnóstica de Patógenos (PDxRI), uma ferramenta abrangente para avaliar a preparação diagnóstica.

“Diagnósticos rápidos e distribuídos equitativamente são essenciais para identificar e conter uma pandemia emergente. A FIND tem um roteiro de cinco anos, impulsionado por parcerias, para alcançar a prontidão diagnóstica para a Missão dos 100 Dias. Mas isso requer 100 milhões de dólares em financiamento inicial”, disse Marta Fernandez Suarez da FIND.

A missão dos 100 Dias se refere à necessidade de desenvolver vacinas, testes e tratamentos dentro de 100 dias de um surto e possibilitar o acesso àqueles que mais precisam para prevenir pandemias.

“Doenças infecciosas podem surgir rapidamente e precisamos garantir que estamos prontos para responder de forma rápida e equitativa”, afirmou o CEO da Cepi, Richard Hatchett.

“Se um novo coronavírus surgisse, hoje há a possibilidade de resposta em 100 dias. Mas se uma nova doença fosse da família dos Paramyxovirus ou Orthopoxvirus, provavelmente não estaríamos prontos ainda. Importante, estamos nos movendo na direção certa – mas para alcançar a Missão dos 100 Dias, precisamos avançar as capacidades com contramedidas médicas e globalizar o acesso a essas tecnologias”, completou.

Falhas de acesso

Anban Pillay, diretor-geral adjunto de Saúde da África do Sul, observou que foi cobrado de seu país um preço mais alto pelas vacinas covid-19 do que a Europa.

“Há grandes problemas com a conduta da indústria farmacêutica quando se trata de acesso a vacinas”, criticou Pillay. “Elas não forneceram acesso. Aumentaram os preços. Decidiram não fornecer estoque a certos países, mesmo que estivéssemos pagando preços mais altos do que a Europa.”

“Então, precisamos de um sistema global diferente para garantir o acesso a vacinas e outras contramedidas, um sistema que seja equitativo, que esteja ligado às necessidades reais.”

“Mas o acesso supõe que exista algo para acessar”, observou Mona Nemer, assessora científica chefe do governo do Canadá e presidente do Grupo de Direção da Missão dos 100 Dias.

“E claramente, quando se trata de diagnósticos e terapêuticos – e, ouso dizer, de vacinas – para todas as diferentes famílias virais que temos diante de nós, temos um longo caminho a percorrer”, afirmou ela.

Falhas financeiras

Priya Basu, do Fundo Pandêmico, disse que o Banco Mundial conseguiu mobilizar 2 bilhões de dólares em capital inicial de 28 contribuintes para iniciar o fundo e viu “uma demanda tremenda e projetos de boa qualidade”.

Durante a primeira rodada de financiamento no ano passado, os projetos “se concentraram na coordenação e colaboração entre diferentes braços do governo – saúde, finanças, agricultura, pecuária, meio ambiente, todos trabalhando juntos”.

Mas a demanda superou em muito os recursos financeiros disponíveis. O Fundo levantou 850 milhões de dólares, mas recebeu propostas de alta qualidade no valor de 7 bilhões.

“Um dos nossos maiores desafios é, de fato, arrecadar mais dinheiro para manter esse impulso, porque em breve veremos muitos países decepcionados, caso não recebam o dinheiro. E é por isso que acabamos de lançar nosso esforço de mobilização de recursos de curto prazo, na semana passada”, disse Basu.

Progresso político nas negociações internacionais da OMS

Em um cenário pós-covid, grande parte do foco mundial está nos políticos que negociam um acordo pandêmico na Organização Mundial da Saúde (OMS).

O embaixador do Brasil, Tovar da Silva Nunes, que é vice-presidente do Conselho de Negociação Internacional (INB) da OMS, disse à cúpula que estava confiante de que um acordo será alcançado antes da próxima Assembleia Mundial da Saúde, em 2025.

Nunes e a embaixadora Anne-Claire Amprou vão presidir um subcomitê sobre acesso e acesso a patógenos e compartilhamento de benefícios (PABS), o maior ponto de discórdia nas negociações.

“Se conseguirmos resolver o artigo 12, as portas estão abertas para concluirmos o acordo em bom tempo”, garantiu Nunes aos delegados.

Ele acrescentou que não havia mais muitas discordâncias sobre as cláusulas relativas à abordagem de Saúde Única.

“Havia uma percepção de que uma abordagem incompleta de Saúde Única não levaria à equidade”, explicou, acrescentando que a falta de acesso a água limpa, por exemplo, era um fator na disseminação de certas doenças.

“Doenças transmitidas por vetores estão claramente relacionadas ao [acesso à água]. Portanto, tem que ser uma abordagem completa. Isso está superado. Decidimos incorporar a Saúde Única. É um grande passo para a saúde comunitária global, desde que seja feito de maneira muito equilibrada.”

Ryan observou que os detalhes mais finos do PABS podem levar tempo, mas sem um amplo acordo internacional “será muito difícil alcançar o que esta conferência se propõe”.

Solidariedade do Sul Global

“Parcerias globais são essenciais para o sucesso da Missão dos 100 Dias”, defendeu a ministra da Saúde do Brasil, Nísia Trindade.

“No cenário pós-covid, aprendemos que Pesquisa & Desenvolvimento equitativos, investimento e acesso são cruciais para a saúde pública. Não podemos trabalhar apenas dentro de nossos países; devemos pensar além das fronteiras. É hora de ciência, tecnologia e inovação se unirem para políticas de saúde pública robustas. Devemos trabalhar juntos em saúde global para que isso se torne uma realidade.”

Participantes da cúpula do Sul Global assinaram a Declaração do Rio de Janeiro, que pede maior colaboração entre parceiros do Norte Global e do Sul Global para superar as disparidades no acesso a ferramentas de saúde e contramedidas em países de baixa e média renda.

A Declaração também insta os parceiros da saúde global a priorizar políticas de pesquisa e acesso equitativo para focar em P&D de ponta a ponta e apoiar o estabelecimento da Aliança para Produção, Inovação e Acesso Regional e Local, conforme discutido dentro do marco da Presidência do G20 do Brasil.

“É hora de pensar e projetar um mundo diferente com uma nova mentalidade para construir sistemas de saúde globais e fortalecer a preparação e resposta a pandemias globais, com coordenação entre o Sul Global e o Norte”, afirmou Mario Moreira, presidente da Fiocruz, que apresentou a declaração.

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