Patentes: trinta anos de submissão e dependência

Há três décadas, Brasil curvava-se ao TRIPS, acordo da OMC que regulamentou propriedade intelectual para garantir fartos lucros à Big Pharma. É hora de enfrentar seus efeitos, se quisermos reverter devastação na indústria nacional e garantir mais remédios à população

Uma ilustração que representa a injustiça do sistema de patentes. Há um comprimido posto em um pedestal do lado direito. À esquerda, pessoas doentes, machucadas, desesperadas tentam empilhar moedas para alcançarem aquele comprimido, em vão.
Imagem: Wren McDonald
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Saúde é dependência? Há 30 anos, o Brasil aderiu de bom grado a um acordo que dinamitou sua indústria farmacêutica e encareceu o preço dos remédios para a população e para o SUS. Até então, não admitia-se patentes a medicamentos no país. Mas, em 1995, o governo de Fernando Henrique Cardoso teve pressa em aderir a um tratado da Organização Mundial do Comércio (OMC) que regulamentava o registro de propriedade intelectual, inclusive de medicamentos. Hoje, é possível perceber que o resultado foi a drenagem de recursos nacionais a corporações estrangeiras e uma indústria vulnerável e dependente. O nome do instrumento que fez o Brasil curvar-se à Big Pharma é Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio, ou Acordo TRIPS.

“Nos dias de hoje, está absolutamente claro que o Acordo TRIPS resultou em uma harmonização mundial do regime de propriedade intelectual em benefício dos detentores da grande maioria das patentes”, a exemplo de “Estados Unidos, Grã Bretanha, França, Alemanha, Suíça e Japão”. Assim descreve Reinaldo Guimarães, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), as consequências da vigência do Acordo.

O fato de que as patentes farmacêuticas foram incluídas no tratado como um de seus pilares trouxe imensos impactos negativos também ao Brasil, devido a uma série de erros, em que se incluem a aprovação apressada de uma nova Lei de Patentes em 1996. “No plano do Complexo Industrial da Saúde, a grande maioria das patentes é de propriedade da Big Pharma. No Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), que é o órgão brasileiro que tem como missão avaliar e conceder registros de propriedade intelectual, cerca de 90% das patentes depositadas em todos os setores industriais pertencem a não residentes no Brasil”, aponta Guimarães.

A despeito de importantes medidas que mitigaram algumas distorções, o pós-TRIPS teve como consequência o aumento do preço de muitos medicamentos, onerando a população e também o Sistema Único de Saúde (SUS). Outros países do Sul Global, como Índia e China, viveram outros processos, ao tomarem decisões políticas distintas no processo de adesão ao Acordo TRIPS e à Organização Mundial do Comércio (OMC). 

Em entrevista a Outra Saúde, pesquisadores e ativistas apresentam medidas – entre elas, a utilização mais ousada das chamadas “quebras de patente” – para enfrentar os efeitos devastadores decorrentes do Acordo TRIPS, em especial a crise do acesso a medicamentos. “O Brasil precisa colocar a licença compulsória no horizonte, não pode se acovardar frente ao poder da Big Pharma. Somos um grande mercado, temos instituições de pesquisa, capacidade produtiva”, defende Veriano Terto Jr., vice-presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (Abia).

Futuro entregue à “exploração primeiro-mundista”

Para Reinaldo Guimarães, a aprovação do Acordo deve ser compreendida nos marcos da correlação de forças vigente no mundo há trinta anos: “Essa nova etapa do capitalismo e a criação da OMC/Trips, ambos liderados pelos EUA, ocorreram após o desaparecimento da URSS e do campo chamado de ‘socialismo real’ e foram radicalizados na década de 1990, na conjuntura do unilateralismo”. 

A adesão à Organização Mundial do Comércio foi vinculada à assinatura do TRIPS – o que, em um momento de apogeu das ideias do livre comércio e da globalização neoliberal, levou muitos países a aceitar os termos do tratado, que se mostrariam amplamente desvantajosos para o Sul Global. A duração mínima de vinte anos das patentes, bastante longa, foi uma das imposições da “uniformização” promovida pelo Acordo.

“A repercussão do TRIPS no Brasil foi quase imediata, pois o governo de Fernando Henrique Cardoso, no meu ponto de vista, foi muito aderente à geopolítica unilateral e com maioria no Congresso, decidiu aprovar a toque de caixa, em 1996, uma nova Lei de Patentes” que atendia às exigências do tratado, avalia o vice-presidente da Abrasco. 

A legislação vigente até aquele momento, o Código da Propriedade Industrial, não admitia a concessão de patentes para “produtos […] químico-farmacêuticos e medicamentos, de qualquer espécie, bem como os respectivos processos de obtenção ou modificação”. Já sobre a nova lei, que vigora até hoje e facilitou significativamente as concessões a empresas do exterior, o então senador Darcy Ribeiro escreveu no ano de sua aprovação que ela “entrega nosso futuro de mãos atadas à exploração primeiro-mundista”. O presidente FHC “aderiu ao neoliberalismo e nos está vendendo barato”, disparou o parlamentar.

Os efeitos da Lei nº 9724/96 podem ser mensurados em números. “Até 1996, a relação entre depositantes de patentes não-residentes e residentes no Brasil era aproximadamente de 70% para 30%. No ano seguinte saltou para 80% e em 2010 atingiu quase 90%”, relata Guimarães. Nos marcos de uma economia crescentemente penetrada pelo capital internacional, as grandes farmacêuticas do Norte Global figuram com proeminência. Segundo a Plataforma de Dados de Patenteamento do Setor Farmacêutico, há dez vezes mais patentes de medicamentos em nome de estrangeiros do que registros por laboratórios nacionais.

Seguiu-se daí a ameaça de uma forte alta no custo dos remédios, e o governo brasileiro foi obrigado a promover ações que mitigassem os efeitos da legislação aprovada para colocar o país em conformidade com o Acordo TRIPS. Em entrevista do ano passado a este boletim, Reinaldo Guimarães indicou três delas: a aprovação da Lei de Genéricos, a criação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e, em 2003, a inauguração de uma política de restrição ao preço de alguns fármacos por meio da criação da Câmara de Controle de Preços de Medicamentos (esta última, como já debateu Outra Saúde, uma ferramenta mais limitada do que parece). Com estes mecanismos, o custo final de diversos medicamentos – ainda que não de todos – se reduziu para a população.

O que não pôde ser mitigado foi o déficit na balança comercial da Saúde, que só cresceu desde então. A Lei de Patentes pós-TRIPS feriu de morte a indústria nacional de Ingredientes Farmacêuticos Ativos (IFAs), as substâncias químicas que servem como base de medicamentos, e o Brasil aprofundou sua dependência da importação desses insumos essenciais para a sua fabricação. 

Estimativas do Ministério da Saúde (MS) apontam que o déficit da saúde chegou a R$20 bilhões no ano passado, o quádruplo da cifra registrada em 2000. Se há 30 anos o Brasil produzia 50% dos IFAs que consumia, o país hoje importa 90% dos IFAs e 50% dos equipamentos médicos que utiliza, ainda segundo os dados do MS. Em outubro passado, o vice-presidente Geraldo Alckmin afirmou que “nós importamos 55% de tudo que compõe o Complexo Industrial da Saúde” — um projeto que, pelo contrário, deveria ser símbolo da soberania sanitária do país.

Quebrar patentes ou aceitar licenças voluntárias?

Frente a tantas consequências negativas, Guimarães lembra que o Brasil não precisava ter reformado sua legislação patentária com tanta pressa. O pesquisador da UFRJ explica: “O Trips previa um ‘período de graça’ de sete anos para que as indústrias dos países se adequassem ao novo regime. A Índia, por exemplo, usou os sete anos. A China só entrou para a OMC em 2001. Já o Brasil resolveu aderir imediatamente. Além disso, a lei aprovada foi ainda mais rígida [que as exigências do TRIPS] na defesa dos proprietários de patentes, por exemplo, admitindo o reconhecimento retroativo de patentes cujo período de proteção já havia vencido. Esse dispositivo foi declarado inconstitucional pelo STF apenas recentemente, no bojo da pandemia de covid-19”.

Ainda em 2001, a luta dos países em desenvolvimento para reduzir as distorções causadas pelo tratado resultou na adoção da Declaração de Doha sobre o Acordo TRIPS e a Saúde Pública. Em meio às preocupações com o avanço da pandemia do HIV, a declaração deu aos Estados o direito de decretar a licença compulsória – medida popularmente conhecida como “quebra de patente”, quando um país decide parar de pagar os royalties de um produto – de um medicamento em contextos de crise sanitária.

Em um caso paradigmático, no ano de 2007, o Brasil exerceu essa “flexibilidade do TRIPS” e quebrou a patente do efavirenz, um importante remédio para o tratamento do HIV, durante a gestão de José Gomes Temporão no Ministério da Saúde. No entanto, a corajosa medida nunca mais se repetiu. Por sua vez, um país como a Índia emprega regularmente a licença compulsória e possui uma legislação extremamente desfavorável à concessão de patentes para empresas estrangeiras, o que fomenta uma colossal indústria nacional de medicamentos genéricos. A experiência indiana já foi apresentada por este boletim em uma série de matérias.

Para tornar a situação mais complexa, a Big Pharma desenvolveu a estratégia das licenças voluntárias, em que abre mão da patente de determinados medicamentos, mas apenas em um número reduzido de países que elas mesmas selecionam. “Com a expansão das licenças voluntárias, as empresas fomentam uma ‘solidariedade corporativa’. Excluem alguns povos do acesso a medicamentos, mas outros não. Com isso, conseguiram em parte que a Saúde deixasse de ser um ponto de tensão no TRIPS”, explica Susana van der Ploeg, advogada do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI), que acompanha a contestação de diversas patentes imerecidas que possuem essas corporações.

Leia em Outra Saúde a coluna mensal Saúde não é mercadoria, do GTPI.

Em geral, por ser um país considerado de renda média, o Brasil costuma ser excluído dos acordos de licença voluntária, e paga o preço cheio de diversos medicamentos que o SUS oferece gratuitamente. Assim, o orçamento da Saúde vai sendo escoado em remessas a empresas estrangeiras. 

Um caso particularmente ilustrativo é o do dolutegravir, explica Susana, um remédio para tratar o HIV. Excluído de uma licença voluntária concedida a vários países do Sul Global, o Brasil firmou um acordo de transferência de tecnologia com a farmacêutica britânica GSK/ViiV para produzir o medicamento em Farmanguinhos, laboratório estatal ligado à Fiocruz. No entanto, os termos desse entendimento não foram tornados públicos – e a cifra que o Ministério da Saúde paga pelo dolutegravir ainda é de 20 vezes o valor internacional. Enquanto o MS compra a unidade do fármaco por R$ 4,40, o preço é de R$ 0,22 na Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS).

Na Colômbia, o presidente Gustavo Petro fez história ao emitir uma licença compulsória para o dolutegravir. Na Argentina, a patente do medicamento não foi nem concedida. “O governo brasileiro está pagando muito caro. Está sendo extorquido pela indústria farmacêutica transnacional, por empresas como ViiV, Gilead, GSK, Pfizer e Moderna”, alerta Susana.

Que fazer?

Não obstante as licenças compulsórias e voluntárias, multiplicam-se as “crises de acesso” em que milhares ou milhões de pacientes não conseguem obter os remédios de que precisam, já que o Acordo TRIPS garantiu ampla margem para que as corporações tenham a palavra final sobre o preço dos medicamentos e vacinas que comercializam.

Especialmente no caso de enfermidades como a tuberculose, a hepatite C e o HIV/aids, consideradas doenças negligenciadas ou associadas a grupos vulneráveis, o alto custo pode levar à não-aquisição dos medicamentos por governos, em especial os de países do Sul Global com parcos recursos. Para muitos, trata-se de uma sentença de morte. No Brasil, que possui um sistema como o SUS e garante a distribuição gratuita de uma série de medicamentos, a população pode até não ficar sem os remédios – mas o custo desse fornecimento torna-se altíssimo para o poder público.

Na visão de Reinaldo Guimarães, um importante passo para enfrentar essas distorções está na reorientação dos organismos de Estado que regem a política de propriedade intelectual. “No Brasil, o órgão-chave nessa questão das patentes é o INPI que, na minha opinião é tradicionalmente penetrado por conflitos de interesse derivados da presença de escritórios de advocacia, tanto lá quanto principalmente no órgão formulador da política brasileira, que é o Grupo Interministerial sobre Propriedade Intelectual”, ele avalia.

A advogada do GTPI, Susana van der Ploeg, e o vice-presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids, Veriano Terto Jr., participaram neste ano da 3ª Cúpula Global sobre Propriedade Intelectual e Acesso a Medicamentos, que teve o tema “TRIPS@30: A Crise do Acesso”. Realizada no Marrocos de 13 a 15 de maio, a conferência reuniu comunidades, governos e organizações internacionais “para debater os impactos do Acordo TRIPS na saúde pública, especialmente em países de baixa e média renda”.

Susana, que apresentou na Cúpula o intrincado caso do dolutegravir, destaca que a mobilização social é considerada indispensável para reverter o atual cenário. “O caminho mais discutido na Cúpula para superar os efeitos negativos do Acordo TRIPS foi a conscientização das populações, especialmente as mais vulneráveis, sobre os impactos do Acordo TRIPS e unir isso à luta mais ampla, fortalecendo a oposição às patentes”, disse.

Além disso, como destacou Veriano, o Brasil precisa usar todo seu peso econômico, político e científico para “colocar a licença compulsória no horizonte” e “não se acovardar frente ao poder da Big Pharma“. Com uma população de mais de 200 milhões de pessoas e uma não-desprezível rede de centros de pesquisa e produção, o país tem condições privilegiadas para negociar a sério com as farmacêuticas estrangeiras e impedir a imposição de tantas barreiras ao acesso a medicamentos. “Também precisa ser mais corajoso e democratizar as negociações para incorporação de inovações. As grandes indústrias farmacêuticas internacionais concentram grande poder. Ter mais atores, negociar de forma intersetorial, envolvendo a sociedade civil, por exemplo, reforça o poder nacional para enfrentar negociações que realmente interessem ao país”, ele defende.

“O Brasil precisa aplicar as licenças compulsórias, parar de conceder tantas patentes para medicamentos e voltar a ter uma política coerente com o SUS. O SUS tem que ser a prioridade, e não o lucro farmacêutico. [Em situações como a do dolutegravir,] Farmanguinhos deve cumprir sua função social, e não ser um laboratório para o enriquecimento alheio”, complementou a advogada do GTPI.

Além disso, no último período, o governo da Colômbia tem encabeçado a defesa de uma revisão exaustiva” do Acordo TRIPS. Em pronunciamento no Conselho Geral da OMC, o representante colombiano destacou que “a propriedade intelectual está no centro dos debates mais importantes de nosso tempo, como a saúde humana”. A proposta apresentada no ano passado pelo país prevê a realização de um estudo sobre o uso das licenças compulsórias e a concentração mundial da produção em um pequeno número de países.

Os governos do mundo, incluindo o brasileiro, realmente se comprometerão com esta proposta? Resta ver. No entanto, os fatos mostram que, mesmo que não tome o passo de revisar sua Lei de Patentes entreguista, o Brasil dispõe de inúmeras opções para defender o direito à saúde, fortalecer sua soberania sanitária e promover o acesso a medicamentos.

“Os caminhos estão colocados pelo próprio Acordo e suas revisões, como a Declaração de Doha. O que é preciso é força, vontade e decisão política dos países para, de forma individual ou coordenada, implementar as próprias flexibilidades do TRIPS e desta forma, ampliar e democratizar a transferência de tecnologia, pesquisar e desenvolver fármacos, reforçar a produção nacional e promover a concorrência de preços de forma a termos um acesso mais justo, universal e sustentável”, concluiu Veriano.

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