Para onde vai a ética em pesquisa?

Controle social e proteção aos participantes de ensaios clínicos podem ser fragilizados

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Por Raquel Torres, do Outra Saúde

Tramita no Congresso Nacional um projeto que pode mudar as regras para as pesquisas feitas com seres humanos no Brasil. Para representes da indústria farmacêutica, ele é importante para acelerar os tempos de aprovação de novas drogas. Mas não tem passado sem críticas porque, além de fragilizar o controle social, retira proteção dos pacientes participantes.

A proposta nasceu no Senado (PL 200/15), foi aprovada lá há pouco mais de um ano e agora corre na Câmara (sob o número 7.082/17). Embora ela já tenha sofrido algumas alterações na Câmara, o Senado pode ou não aceitá-las quando vier a analisar a matéria novamente. E, para José Ruben Bonfim, coordenador da Sociedade Brasileira de Vigilância de Medicamentos (Sobravime), boa parte dessas mudanças não são tão significativas. “Na essência, é uma maquiagem do PL 200”, caracteriza.

Para ser realizada no Brasil hoje, uma pesquisa precisa passar pela avaliação do chamado sistema CEP/Conep: as instituições têm seus Comitês de Ética e Pesquisa (CEPs), que veem se os estudos a serem realizados nelas estão de acordo com os protocolos, e o país tem ainda uma Comissão Nacional de Ética e Pesquisa no Conselho Nacional de Saúde (Conep/CNS), que também precisa analisar os pedidos. Por fim, se a droga ainda não for aprovada no Brasil, a Anvisa também precisa analisar. A Conep tem outras funções. É ela quem coordena o sistema CEP/Conep, registra e supervisiona os CEPs e elabora normas e diretrizes, que devem ser aprovadas pelo CNS.

As regras brasileiras são bastante protetivas para quem participa das pesquisas, na avaliação de Dirceu Greco, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e presidente da Sociedade Brasileira de Bioética. Essa proteção é garantida hoje pela resolução 466/2012 do CNS. Ela obriga que, ao fim do tratamento, as empresas farmacêuticas forneçam o medicamento testado a todos pacientes, caso os resultados sejam favoráveis. E um de seus pontos mais importantes – não apenas para a proteção do paciente, mas também para garantir que a nova droga seja de fato pertinente é a exigência de que, durante os ensaios, os novos medicamentos não sejam comparados a placebos (substâncias inertes), mas ao melhor tratamento existente disponível.

O texto aprovado inicialmente no Senado mexia nesses dois pontos. Ele permitia o uso de placebo, e garantia o tratamento dos pacientes após os ensaios, mas apenas se “o não acesso resultar em agravamento significativo ou se não houver outro equivalente no País”. E, no controle social, uma grande mudança: o fim da Conep. A extinção não está expressa, mas o texto sequer cita a comissão.

As empresas farmacêuticas estão de acordo com as alterações: “O tempo de aprovação de um pedido de pesquisa clínica é muito longo, em torno de 12 meses, o dobro da média mundial. Isso acontece ora pela morosidade na validação sanitária, ora pela morosidade na validação ética” nos escreveu a Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa (Interfarma), por meio de sua assessoria de imprensa. Neste boletim, a Conep afirma que o tempo médio de análise é de pouco mais de 40 dias e que ele vem diminuindo. A Interfarma também afirma que os entraves na validação ética impedem que pacientes tenham acesso a medicamentos de ponta, uma vez que o “acesso às pesquisas clínicas, na prática, significa também acesso dos pacientes a mais uma esperança de cura ou de controle de doenças, fato especialmente relevante no caso em que as terapias disponíveis no mercado falharam”

Mas, para Dirceu Greco a questão é perigosa: discussões como essas são antigas e polêmicas no mundo todo e o Brasil conseguiu manter um bom grau de proteção apesar das pressões.

O contexto

Faz muito tempo que se percebeu a necessidade de estabelecer diretrizes éticas para a pesquisa. Em 1964, a Declaração de Helsinque foi redigida com essa finalidade e, embora não tenha valor legal, é um importante balizador. O texto já passou por vários processos de revisão. As discussões começaram a ficar mais acaloradas nos anos 1990, e um fato específico de grande repercussão tornou o debate emergencial.

Em 1997, o New England Journal of Medicine publicou estudos sobre tratamento da Aids que apresentavam resultados positivos, mas eram muito questionáveis do ponto de vista ético.  Naquela época, já se conhecia o mecanismo da transmissão vertical (da mãe para o bebê), já existia um tratamento-padrão e já se sabia que essa transmissão era muito prevenível com o tratamento em determinada dose e período. “Mas era muito caro, custava cerca de US$ 1 mil por cada par mãe-bebê. O National Institutes of Health [centro de pesquisa biomédica governamental dos EUA] começou a pensar que, se fosse usada uma dose menor e por um período menor, talvez isso diminuísse os custos e mantivesse os bons efeitos. Era uma hipótese até muito boa e já se tinha ideia de que podia funcionar. Só que, em vez de oferecer essa nova possibilidade comparando com o tratamento-padrão, os pesquisadores compararam com placebo”, lembra Greco.

O resultado óbvio foi que, no grupo de controle, em que o teste foi feito com placebo, a taxa de infecção dos bebês foi altíssima. “O periódico publicou os resultados, mas acompanhado por um duro editorial de Marcia Angell e dois outros editores criticando o problema ético envolvido ali”, conta o professor.

Seguiu-se então um debate internacional intenso e uma pressão para mudar as regras da declaração de Helsinque, tornando-as mais rígidas. No ano 2000, foi feita uma reunião em Edimburgo para isso. Greco participou do encontro e diz que foi um embate duro. “O Brasil e muitos outros países em desenvolvimento ajudaram a pressionar. No fim, conseguimos essa vitória”, comenta. Mas ele diz também que uma reação já era esperada. E logo aconteceu: em 2004 houve uma flexibilização. “E essa é uma palavra que tem a mesma conotação no mundo todo. Quando flexibiliza, pode saber que alguém vai ser prejudicado. Nesse caso, abriram exceções para situações em que o placebo seria aceito”, comenta.

Em 2008, quando haveria uma nova revisão da Declaração, o Brasil se adiantou a ela e o CNS, via Conep, publicou a resolução 404, (que foi atualizada pela 466, citada ali em cima) afirmando que o placebo não poderia ser usado e que o direito ao acesso pós-ensaio deveria ser garantido a todos participantes. Em seguida, o Conselho Federal de Medicina também decidiu colocar isso no Código de Ética Médica. Como previsto, meses depois a Declaração de Helsinque foi novamente modificada no sentido de diminuir essa proteção. “Também brigamos muito lá, mas perdemos grosseiramente”, lembra Dirceu Greco. O país, porém, manteve sua posição.

O pesquisador conta que o Brasil ficou praticamente sozinho nessa decisão e havia muitas críticas de que as pesquisas no país diminuiriam, mas isso não aconteceu. “E, na realidade, em geral as pesquisas são realizadas aqui a partir da fase 3 [quando os medicamentos já foram desenvolvidos e são testados em milhares de pessoas ao redor do mundo]. Aqui são desenvolvidos estudos importantes na medicina tropical, em doenças relevantes para nós, nas vacinas, mas a maior parte dos medicamentos vem de fora. E quando nós, pesquisadores, participamos da fase 3, somos muito mais prestadores de serviço do que propriamente pesquisadores. A pesquisa já vem com o projeto completamente amarrado, tudo pronto, temos pouca liberalidade até para questionar. Podemos, claro, fazer revisões, adaptar o termo de consentimento, mas não muito mais”, revela.

Ainda de acordo com Greco, o temor não se sustentou. “Os projetos chegavam ao Brasil, eram barrados na Conep, voltavam em diligência, eram modificados e realizados aqui. Não diminuiu a quantidade. Só que o Brasil acabou ficando como um ‘exemplo ruim’ para a indústria. Um país enorme, com um mercado farmacêutico grande… O medo real era que o exemplo podia se espalhar pelo mundo e, para a indústria, essas decisões são desvantajosas. A questão do placebo, principalmente, é fundamental para ela”. As razões são evidentes: quando um medicamento novo é comparado com placebo, as chances de ele ser considerado eficaz são muito grandes, o que não acontece na comparação com o melhor remédio já conhecido. “Assim, são lançados medicamentos novos, semelhantes aos antigos, mas às vezes muito mais caros”, resume o pesquisador.

Ponto a ponto

O parecer da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara, aprovado em dezembro, faz algumas alterações no projeto original e, por enquanto, é com essas mudanças que ele continua a tramitar. A principal delas é justo em relação ao placebo que volta a só ser permitido quando não houver tratamento conhecido. Essa mudança, segundo Dirceu, permite algum alívio. Porém, ele diz que as outras são insuficientes e continuam colocando em risco a ética em pesquisa no Brasil.

O principal ponto é a extinção da Conep, que, sendo parte do Conselho Nacional de Saúde, é uma instância de controle social na pesquisa. O parecer aprovado pela CCTCI aparentemente a traz de volta. Mas, de acordo com José Ruben Bonfim, a reincorporação é ilusória. “O relatório não reincorpora a Conep. Ele cria uma outra comissão, com o mesmo nome e a mesma sigla, mas que é essencialmente outra porque, segundo o texto, não estaria vinculada ao CNS, mas ao Ministério da Saúde. Tem uma imensa diferença. Não se trata da mesma Conep, é uma proposta totalmente nova que vem na forma de um ardil de siglas”, critica.

Assim como Bonfim, Greco expressa preocupação, pois isso tornaria a Conep mais frágil em relação aos interesses governamentais: “O CNS é independente. Nessa nova conformação, as decisões ficariam ao bel prazer de quem estivesse no governo”. Ele ainda chama a atenção para o fato de que, segundo o parecer, as comissões (inclusive a nacional) deverão contar com “representante de usuário”. “Essa redação é dúbia. ‘Representante do usuário’ pode ser um usuário só. Hoje a Conep tem vários representantes”, lembra.

Outro ponto alterado pela Câmara diz respeito ao direito ao acesso pós-ensaio, e foi acrescentado expressamente que esse direito será estendido aos participantes do grupo-controle (isso não estava posto no texto original do Senado). Ele mantém, porém, as restrições ao fornecimento e, entre elas, está a disponibilidade do medicamento em questão pelo SUS. Isso significa que, quando for incorporado pelo sistema público, o remédio não precisa mais ser custeado pela empresa. “Um dos principais efeitos disso é que a indústria vai fazer pressão para o SUS incorporar. Mesmo que não seja tão bom”, comenta Greco.

Antes de ir a plenário na Câmara, o projeto ainda precisa passar por outras duas comissões. Se enfim for aprovado, volta ao Senado, que pode tanto aprovar o texto com as alterações da Câmara como aceitá-lo com ressalvas ou ainda rejeitar todas as mudanças,. Para os dois pesquisadores entrevistados pelo Outra Saúde, é importante manter esse debate aceso. “Quando se fala em pesquisa clínica, qualquer país sério tem que considerar, em primeiro lugar, a proteção aos participantes. Essa é a premissa maior”, conclui Bonfim.

Leia mais: O que não tem remédio (será que terá?)

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O Outra Saúde entrou em contato com a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa do Conselho Nacional de Saúde (Conep/CNS), mas não obteve resposta até o fechamento desta matéria.

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