Na pandemia, os EUA escancaram sua face pirata

Depois de negligenciar de todas as formas combate à covid-19, Trump tenta apoderar-se do estoque de vacinas do mundo. No Brasil, governo Bolsonaro reluta em autorizar Fiocruz a produzir imunizante. E mais: em novos tratamentos, alguma esperança

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NEGÓCIO FECHADO

Por US$ 1,95 bilhão (R$ 9,9 bilhões), o governo Donald Trump fechou um negócio com a Pfizer e a BioNTech pela produção e entrega de cem milhões de doses da vacina BNT162, uma das duas candidatas desenvolvidas pelas companhias. Acontece que, até o fim deste ano, não vão ser produzidas mais do que cem milhões de doses, e por isso várias manchetes anunciaram que o país havia comprado antecipadamente tudo o que estaria disponível em 2020. À noite, a Pfizer desmentiu a notícia, afirmando que a compra se refere a 2020 e a 2021 e que, nesse período, devem ser fabricadas ao todo 1,3 bilhão de doses. 

Bom, o acordo permite ao governo norte-americano obter 500 milhões de doses adicionais. Então, se essa extensão se confirmar, o país ficará com quase metade da produção das empresas – tendo menos de 5% da população mundial.

A verdade é que o governo americano está negociando com todas as empresas que desenolvem as principais candidatas à vacina. Por meio da ‘Operation Warp Speed’ (‘Operação Ultra-Velocidade’ em tradução livre), há investimentos em várias companhias para impulsionar o desenvolvimento e a produção em larga escala, garantindo o abastecimento por lá. Bilhões de dólares saíram dos cofres americanos para as farmacêuticas Moderna, Johnson & Johnson e AstraZeneca – esta última é a que está trabalhando junto com a Universidade de Oxford. Aliás, a AstraZeneca já anunciou que cerca de 300 milhões de doses da vacina de Oxford irão para os EUA; o Reino Unido vai ficar com outros cem milhões.

No caso da Pfizer e da BioNTech, é diferente. O pagamento só vai sair se a vacina demonstrar eficácia e for autorizada pela FDA (equivalente à Anvisa no Brasil). No momento, esse não é o imunizante mais avançado nas pesquisas. Foram publicados (sem revisão de pares) resultados promissores das fases 1 e 2 dos ensaios clínicos, com apenas algumas dezenas de voluntários. Os testes de fase 3, em larga escala, estão para começar em breve e, como dissemos ontem, a Anvisa autorizou que sejam realizados no Brasil também.

Para lembrar: o governo Trump está fazendo tudo errado para conter o espalhamento coronavírus, mas, quando se trata de mostrar seu poder de compra, a coisa muda de figura. Ainda em abril, os Estados Unidos deram um jeito de abocanhar máscaras e respiradores encomendados por outros países (inclusive por estados brasileiros). Em alguns casos, pagando mais por eles; em outros recorrendo a uma antiga legislação sobre exportações. Na época, o ministro do Interior alemão cravou: aquilo era “pirataria moderna”. Sem meias palavras, Trump chegou a afirmar que não queria “outros países conseguindo máscaras.” Na seara dos medicamentos, o país já garantiu a compra de toda a produção de remdesivir até setembro. Esse medicamento mostrou, em um grande estudo randomizado, reduzir o tempo de internação por covid-19. 

POR AQUI…

Depois do acordo dos EUA, o general Eduardo Pazuello disse que a Pfizer está no “radar” brasileiro. “Nós vamos observar isso daí, com a possibilidade também de entrar em algum tipo de acordo de cooperação para comprar essa vacina com a Pfizer”, afirmou o ministro interino. 

Para a vacina de Oxford, já em testes de fase 3 no Brasil, está em pauta uma parceria com compra de lotes e transferência de tecnologia para que a Fiocruz produza o futuro imunizante. Seriam no total cem milhões de doses, sendo 30 milhões antes mesmo da aprovação e registro do produto, e o restante depois. Mas essa cooperação, anunciada há quase um mês, ainda não foi fechada, 

MAIS REALISMO

“A ideia de que teremos uma vacina em dois ou três meses e, de repente, esse vírus terá passado… Adoraria dizer isso a vocês, mas não é realista”. O sacolejo veio do diretor do programa de emergências da OMS, Michael Ryan, em coletiva ontem. Mais uma vez, ele frisou que os bons resultados que as candidatas tiveram até agora nas fases 1 e 2 são apenas preliminares: promissores, mas não definitivos. É só na fase 3 que teremos respostas sobre a imunização. Depois disso, como o topo dessa edição da newsletter não nos deixa esquecer, há a dificuldade de se garantir o acesso ao mundo inteiro.

O MOMENTO EXATO

Quando pesquisadores de Oxford verificaram que a dexametasona aumenta sobrevida de pacientes de covid-19 hospitalizados, no mês passado, a notícia foi celebrada, e com razão. Afinal, o medicamento havia reduzido em um terço as taxas de mortalidade dos pacientes graves, que estavam submetidos à ventilação mecânica, e em um quinto a dos que recebiam oxigênio. E a descoberta foi no âmbito do Recovery, um enorme estudo randomizado e controlado por placebo. 

Agora, um novo trabalhopublicado no Journal of Hospital Medicine mostra quem tem mais chances de se beneficiar com o tratamento, e não só com a dexametasona mas também com outros esteroides: aprednisona e a metilprednisolona . Mais ainda, os cientistas viram que dá para identificar esses pacientes por um exame de sangue simples e barato.

Efeitos positivos de esteroides têm sido relatados por médicos desde o começo da pandemia, mas especialistas já haviam alertado sobre o perigo de oferecê-los cedo demais. Isso porque eles não agem atacando o coronavírus, e sim suprimem o sistema imunológico – em alguns pacientes a doença parece se agravar por uma resposta forte demais desse sistema, de modo que a supressão é bem-vinda. Se tomados muito cedo, porém, os remédios poderiam impedir a resposta imune e evitar a recuperação do organismo. 

O que os pesquisadores fizeram nesse estudo mais recente, observacional, foi analisar os dados de 1.806 pessoas internadas em quatro hospitais. Eles viram que, nos pacientes que tinham altos níveis de um indicador de inflamação chamado proteína C reativa, os resultados do tratamento com esteroides foram muito bons: suas chances de morrer ou de precisar de um ventilador caíam 75%. Por outro lado, quem tinha baixos níveis dessa proteína teve nada menos que o dobro das chances de morrer ou de precisar de ventilação. Assim, um exame de sangue para identificar a proteína poderia servir para definir se essas substâncias devem ou não ser administradas. 

COLEÇÃO DE ANTICORPOS

Cientistas da Universidade de Columbia, em Nova Iorque, descobriram um grande conjunto de anticorpos que, mesmo em pequena quantidade, bloqueiam a capacidade do novo coronavírus de infectar células. No estudo, feito com cinco pacientes que se recuperaram da covid-19, foram identificados 61 anticorpos; 19 deles provavam ser altamente eficazes. Um deles foi testado em hamsters e, em baixa dosagem, foi eficaz na proteção. “Ele interrompeu completamente o vírus infeccioso no tecido pulmonar dos hamsters que tratamos”, diz, no Guardian, David Ho, que liderou a pesquisa. Segundo os cientistas, os anticorpos que foram isolados poderiam ser usados tanto para o tratamento precoce de infecções quanto preventivamente, em substituição a uma vacina. Faltam, é claro, testes em humanos.

O MAIS NOVO RECORDE

O Brasil atingiu ontem um novo recorde de casos: foram 67.860 infecções registradas em apenas 24 horas. E a maior parte desses diagnósticos – 16 mil – veio de São Paulo, estado que vinha apresentando melhora. Houve uma certa confusão para justificar o número, que é o segundo pior desde o início da pandemia. O novo secretário estadual de Saúde, Jean Gorinchteyn, primeiro atribuiu a alta à testagem. Depois, o governo do estado deu uma justificativa diferente, afirmando que os casos ficaram represados por dois dias no sistema do SUS que computa os registros. Outro estado que vinha apresentando melhora encabeçou a lista: o Rio de Janeiro ficou em segundo lugar, com 3,5 mil novos casos. 

A Fiocruz, que olha para outro sistema de dados, dá conta de que o Rio pode estar vivendo uma segunda onda de contágios. De acordo com a Fundação, as internações por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARG) voltaram a crescer no estado na semana passada. O mesmo fenômeno acontece no Amapá, no Maranhão e no Ceará. “É preciso avaliar se há um salto por causa da retomada econômica, se há interiorização dos casos ou se são as duas coisas combinadas”, disse o pesquisador Marcelo Gomes à coluna de Monica Bergamo.

A notícia preocupa, já que nos últimos tempos o crescimento de casos tem acontecido principalmente em estados do Sul, do Centro-Oeste e em Minas. Na semana passada, a Organização Mundial da Saúde (OMS) afirmou que, dependendo da região do país, a taxa de contágio variava entre 0,5 e 1,5. A verdade é que, na média, o Brasil está há um bom tempo “em uma situação descontrolada de contágios”, como os especialistas definem. Nossa taxa de transmissibilidade é maior do que 1 há 13 semanas, de acordo com o Imperial College de Londres. 

No total, já temos mais de 2,2 milhões de casos conhecidos. Foram 200 mil novos registros em apenas uma semana. Ontem, diante do recorde de 67 mil novas infecções em apenas 24 horas, o ministro interino da Saúde se esquivou. A tradicional entrevista da quarta-feira, quando o boletim epidemiológico semanal do Ministério é divulgado, foi totalmente fora do padrão – a começar pela decisão de não divulgar os dados. A coletiva aconteceu em Santa Catarina, atrasou 1h30 e durou apenas 30 minutos. Eduardo Pazuello e sua equipe não aceitaram perguntas da maior parte da imprensa.

Hoje, Estadão publicou uma reportagem que revela mais um pouquinho desse estilo militar de lidar com questões incômodas. No fim de maio, já sob a gestão interina do general, técnicos do Ministério alertaram que o isolamento social seria a única política pública disponível para evitar o descontrole das infecções (que estamos vendo). Defenderam que, sem isso, a situação no país poderia demorar “até dois anos” para se normalizar. Mas, de lá para cá, a pasta simplesmente deixou de tocar nesse assunto – que sempre irritou o presidente Jair Bolsonaro. Perguntado ontem sobre o marco das 80 mil vidas perdidas, o general falou que “dói” e “faz todo dia acordar para trabalhar e buscar novas soluções para evitar novas mortes“. Falta explicitar por que as ‘velhas’ soluções que não agradam são ignoradas.

15 MILHÕES

O mundo chegou a 15 milhões de casos confirmados do novo coronavírus, segundo o levantamento da Universidade Johns Hopkins, que leva em conta os dados oficiais de cada país. Outro número marcante vem da América Latina, que superou ontem quatro milhões de infecções, de acordo com contagem da Reuters.

Entre as doenças infecciosas, a tuberculose é a que mata mais no planeta, tirando a vida de 1,8 milhão de pessoas todos os anos. Este ano, contudo, a covid-19 pode tirar mais vidas. A contagem está em 617 mil óbitos, mas há risco de o número triplicar caso novos surtos continuem pipocando. 

Falando em tuberculose, uma excelente notícia foi dada ontem: o uso do antibiótico pretomanid foi aprovado na Índia. O país tem a pior taxa de infecções por tuberculose no mundo. O tratamento da doença é um grande desafio, na medida em que a resistência aos antibióticos existentes cresceu e, de outro lado, a indústria farmacêutica não investiu na criação de novas fórmulas. O pretomanid expressa bem isso:  em quase meio século, foi o terceiro antibiótico lançado para combater a forma multirresistente da doença, e o esforço financeiro para a criação da droga partiu não da indústria, mas de uma ONG. A Índia é o segundo país a aprovar a droga; o primeiro foi os EUA.

RICARDO BARROS, DE NOVO

O Planalto está insatisfeito com parlamentares aliados do PSL. A indisposição aconteceu por conta da votação do Fundeb. Depois de trabalhar contra o texto, o governo fez um acordo com líderes partidários: apoiaria a proposta em troca de votos favoráveis ao programa Renda Brasil (que ainda não foi enviado ao Congresso). O acordo não foi respeitado pela vice-líder do governo no Congresso, Bia Kicis (PSL-DF), que votou contra o fundo. Ontem, o governo dispensou a deputada da função. E, pelo o que os bastidores indicam, planeja trocar também o atual líder, Major Vitor Hugo (PSL-GO), pelo deputado Ricardo Barros (PP-PR).

A substituição aconteceria no início de agosto. E, segundo os repórteres Gustavo Uribe e Julia Chaib, a oportunidade serviria para que o Planalto testasse seu entrosamento com Barros. Ex-ministro da Saúde no governo Temer, ele poderia assumir novamente a pasta em outubro – que, agora, aparece como o novo prazo para que o general Pazuello deixe o cargo. 

Mas a movimentação não é unânime no Centrão. Congressistas ouvidos pela reportagem temem que a nomeação de Barros como líder do governo possa tirar protagonismo do líder do PP, Arthur Lira (AL) – que é candidatíssimo à presidência da Câmara. 

A propósito: Jair Bolsonaro fez o terceiro teste para o novo coronavírus desde que anunciou estar doente. Continua dando positivo.

MEIA VOLTA, VOLVER

A filha do general Braga Netto não vai mais para a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Sem formação na área, Isabela Braga Netto ocuparia um cargo de livre nomeação do governo, com salário de R$ 13 mil. Ela foi indicada pelo diretor-adjunto da agência, Daniel Pereira, que é irmão de um dos principais assessores do ministro da Casa Civil, Thiago Pereira. O Sindicato dos Servidores das Agências Nacionais de Regulação cravou: o caso configuraria nepotismo cruzado, quando dois agentes públicos empregam familiares um do outro como troca de favor. A desistência, anunciada ontem, aconteceu aparentemente por pressão de integrantes do Planalto que temiam (com razão) que a boquinha causaria mais desgaste ainda à imagem das Forças Armadas.

FINALMENTE

O Tribunal de Contas da União (TCU) deu o prazo de 15 dias para que o Ministério da Saúde explique por que não gasta o dinheiro que tem para combater a pandemia. Auditoria realizada pelo órgão de controle mostrou que a pasta utilizou apenas R$ 11,4 bilhões (29%) dos R$ 38,9 bilhões previstos para ações relacionadas à covid-19. Bem antes disso, o Conselho Nacional de Saúde vinha alertando sobre a baixíssima execução orçamentária da pasta. A Comissão de Financiamento do órgão constatou o problema em… abril. 

MAIS GENTE E MAIS DINHEIRO

O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) lançou hoje um relatório em que defende que 132 países “em desenvolvimento” criem programas de renda básica temporária para a população mais pobre. O texto calcula que a transferência de renda poderia manter 2,7 bilhões de pessoas em casa, derrubando o ritmo de contágios na pandemia. O custo total projetado por mês é de US$ 199 bilhões – e a agência da ONU defende que o dinheiro que vai para o pagamento das dívidas públicas seja redirecionado para a criação desses programas

Apesar de ter aprovado o auxílio emergencial em abril, o Brasil não discute esse tipo de saída para o financiamento do programa. Os R$ 600 serão pagos até agosto e, depois disso, o governo planeja um programa que provavelmente terá o escopo reduzido. Mas segundo o relatório do PNUD, mais de 108 milhões de brasileiros deveriam ser beneficiados com cerca de US$ 188 por mês – o que dá, na cotação de hoje, R$ 962.   

OLIMPÍADA COM COVID

Mesmo que a pandemia não tenha diminuído no ano que vem, os organizadores dos Jogos Olímpicos de Tóquio pretendem realizar o evento. “É bastante difícil para nós supor que a pandemia de coronavírus esteja contida. Mas se pudermos realizar os Jogos em Tóquio com coronavírus, Tóquio pode ser o modelo para os próximos Jogos Olímpicos ou outros eventos internacionais”, disse o chefe executivo do comitê organizador, Toshiro Muto, à Reuters. A ver.

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