Como Bolsonaro esvazia — literalmente — a Anvisa

Às vésperas de decisão sobre alertas de risco nas embalagens de alimentos, agência está sem três de seus cinco diretores. E mais: o novo estudo sobre danos mentais causados pela covid; rejeição à vacina cresce nos EUA, por causa de Trump

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PROCURAM-SE DIRETORES

Está marcada para amanhã uma reunião da diretoria colegiada da Anvisa para decidir sobre um tema que está na mesa há seis anos: a mudança na rotulagem frontal de alimentos processados e industrializados, para alertar sobre o excesso de sal, açúcar e gorduras saturadas. Mas a reunião corre o risco de não acontecer porque o governo Jair Bolsonaro deixou a agência ficar sem três dos seus cinco diretores. Ou seja: neste momento, não há quórum.

Isso já havia acontecido em abril. Na época, um decreto assinado pelo presidente e pelo então ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta designou três substitutos: os servidores Marcus Aurélio Miranda de Araújo, Meiruze Sousa Freitas e Romilson Rodrigues Mota. Acontece que eles só poderiam permanecer no cargo durante 180 dias, prazo que venceu no último domingo – e Bolsonaro ainda não apontou nenhum outro nome. Segundo o Planalto, a indicação dos novos diretores (não se sabe se efetivos ou substitutos) “ainda se encontra na instância da Anvisa”.

Para tentar garantir que a reunião seja realizada, o Idec entrou com um mandado de segurança no STF na última sexta-feira. A Folha apurou que pode haver uma “designação de última hora“. Também há uma brecha legal para que a presidência da Anvisa, ocupada hoje pelo almirante Antonio Barra Torres, possa reconduzir os atuais diretores (a designação de efetivos precisa ser feita pelo presidente Bolsonaro). 

Em tempo: a falta de quórum atinge outra decisão marcada para amanhã – a permissão para utilização do estoque já adquirido por agricultores do agrotóxico paraquate, que foi proibido pela agência no mês passado. Além disso, a ausência dos diretores é um problema em meio à pandemia. Afinal, ficam impedidas as decisões colegiadas sobre temas importantes, como normas relativas a medicamentos.

BAIXAS EXPECTATIVAS

Mesmo que as coisas se resolvam a tempo da reunião, há grandes chances de que a Anvisa não aprove o modelo de rotulagem de alimentos mais adequado. O que tem sido referendado por dezenas de pesquisas mundo afora (e, por isso, pleiteado por organizações da sociedade civil) é o chileno, com selos de alerta em fundo preto. Para cada ‘excesso’, há um selo diferente – e, quanto mais selos, pior o produto. É um esquema fácil de entender, inclusive para analfabetos. Os efeitos positivos no comportamento dos consumidores foram notados no Chile desde muito cedo, e países como México, Peru e Uruguai caminharam na mesma direção. Por razões óbvias, a indústria de alimentos pressiona contra esse sistema, e teve sucesso por aqui: a proposta final da Anvisa defende um modelo baseado em selo único, independentemente do número de ingredientes maléficos em excesso em cada produto.

“O sistema brasileiro tem tudo para ser o pior entre os adotados em toda a América Latina nos últimos anos“, escreve o jornalista João Peres, n’O Joio e o Trigo. E nem é só pela maior dificuldade de leitura. Um ponto importante é que o limite dos ingredientes (para definir se um produto vai ou não receber selo de alerta) é mais brando do que o recomendado pela Opas, a Organização Panamericana de Saúde. Outro: nada impede que a indústria reduza as quantidades de açúcar elevando absurdamente o nível de adoçantes artificiais, que também são perigosos se consumidos em grande quantidade. A Anvisa não prevê nenhum aviso sobre a presença dos adoçantes.

Além disso, até onde se sabe, a agência nunca testou o design que propõe para ver se funciona bem. Peres assinala as limitações políticas que envolvem a proposta: “Em linhas gerais, a decisão da agência parece muito mais baseada naquilo que o ambiente político do país permite aprovar do que na ciência. Os alertas que tanto contrariam a indústria poderiam não sobreviver ao presidente da agência, bolsonarista, e aos desmandos do ministro da Saúde e do presidente da República”.

Com a proximidade da decisão, a Aliança pela Alimentação Adequada e Saudável intensificou a divulgação da campanha Direito de Saber, que pede a adoção do modelo chileno. No site, é possível assinar uma petição.

MESES DE ATRASO

Quando a OMS reconheceu que o SARS-CoV-2 podia ser transmitido pelo ar, em julho, já havia um conjunto de evidências que sustentavam isso – e a comunidade científica internacional vinha pressionando para que a entidade se manifestasse nesse sentido. Ontem foi a vez de o CDC (Centro de Controle e Doenças dos EUA) atualizar seu documento sobre as formas de contaminação, incluindo finalmente a transmissão pelo ar, via aerossóis. Isso significa reconhecer que o vírus pode ficar em suspensão durante algum tempo e alcançar distâncias maiores do que dois metros. 

Você deve se lembrar do tumulto que o órgão gerou há duas semanas quando publicou – e retirou em seguida – diretrizes que reconheciam esse tipo de transmissão. A remoção ocorreu sob a justificativa de que o texto havia sido postado por engano, e ele era muito impactante: dizia que “a principal forma de propagação do vírus” era por meio de  “gotículas respiratórias ou pequenas partículas, como as dos aerossóis, produzidas quando uma pessoa infectada tosse, espirra, canta, fala, ou respira”. Agora, isso ficou atenuado. O novo texto diz que essa transmissão pode acontecer, mas que o mais comum é o vírus se espalhar quando as pessoas estão próximas a alguém infectado. Alguns cientistas concordam com essa conclusão, mas não há unanimidade. No início da semana, vários pesquisadores publicaram uma carta na Science Magazine apontando evidências de que a transmissão pelo ar é, na verdade, um importante meio de propagação do vírus. E seria a explicação mais provável para vários eventos de superespalhamento

A propósito, o site do Ministério da Saúde brasileiro ainda não inclui os aerossóis como forrma de contaminação.

CABO DE GUERRA

Não é novidade que Donald Trump quer anunciar uma vacina antes das eleições presidenciais. Agora, uma reportagem do New York Times revela que altos funcionários da Casa Branca estão bloqueando as diretrizes propostas pelo FDA para o uso emergencial da vacina. O documento, submetido no dia 21 de setembro, foi engavetado por Mark Meadows, chefe de gabinete do presidente. 

A administração se opõe particularmente a uma cláusula de segurança que prevê que participantes dos ensaios clínicos sejam acompanhados por dois meses após tomarem a dose final das candidatas a vacina. Só depois desse período, necessário para identificar possíveis efeitos colaterais e garantir que a proteção da vacina é duradoura, é que uma autorização para uso emergencial poderia ser concedida. No atual estado da arte desses ensaios, o prazo impossibilitaria qualquer liberação antes da eleição, marcada para 3 de novembro. 

Segundo o jornal, Meadows chegou a ‘acusar’  Stephen Hahn, diretor do FDA, de ser “excessivamente influenciado pelos cientistas de carreira de sua agência”… Já Trump chegou a dizer a repórteres em 23 de setembro que poderia não aprovar as diretrizes. Desde outubro do ano passado, a Casa Branca tem o poder de segurar documentos assim. A manobra serviu justamente para restringir a autonomia das agências.

Diante de tudo isso, a FDA resolveu pedir ajuda. A agência deve convocar um comitê externo de especialistas e compartilhar com eles as diretrizes. A expectativa é que os padrões que garantem a segurança e eficácia das vacinas sejam validados pelos cientistas – o que jogaria a pressão de volta sobre a Casa Branca. 

Na última quinta-feira, a associação comercial da indústria de biotecnologia dos EUA se somou ao esforço e pediu, em carta aberta, que as diretrizes da FDA fossem divulgadas. Alguns fabricantes, como a Johnson & Johnson, já indicaram publicamente que seguirão as recomendações da agência, independentemente das ações da Casa Branca. Ontem, Hahn participou de um evento de empresas de tecnologia e assegurou que as decisões sobre vacinas “serão tomadas pelos cientistas da agência”.

Enquanto esse cabo de guerra acontece, a confiança da população em uma vacina decai. Em maio, 72% afirmaram que provável ou certamente tomariam uma vacina. Muitas declarações de Trump depois, esse número caiu para 51% em setembro, de acordo com o Pew Research Center.

AMEAÇA À LIBERDADE ACADÊMICA

O autoritarismo também está à solta no Japão. O novo primeiro-ministro Yoshihide Suga rompeu com a tradição de aceitar o processo que seleciona os dirigentes do Conselho de Ciência do país. Ele barrou o nome de seis acadêmicos críticos ao governo anterior. Detalhe: Suga foi chefe de gabinete de Shinzo Abe.

Diante das críticas, o governo tenta se blindar do jeito mais cínico possível, dizendo que não há nada de errado, já que  não é obrigado a indicar as pessoas recomendadas. A mídia japonesa trata o ocorrido como “um caso sério de intervenção política que pode ameaçar a liberdade acadêmica neste país”.

De sua parte, as entidades científicas reagem, acusando Suga de tomar uma decisão “ilegal” e pressionam para que ele acate a indicação dos seis pesquisadores. No domingo, houve manifestação em frente à residência oficial do primeiro-ministro.

O Conselho de Ciência é a principal sociedade acadêmica do Japão, representando mais de 800 mil pesquisadores em praticamente todas as disciplinas. Seu atual presidente é Takaaki Kajita, vencedor do Prêmio Nobel de Física de 2015 – que acaba de assumir o cargo.

#EXCELGATE

A Inglaterra pode ter deixado de contabilizar – e, principalmente, rastrear contatos e orientar – quase 16 mil pessoas infectadas pelo novo coronavírus. Tudo isso porque a Public Health England, agência ligada ao Departamento de Saúde inglês, usou uma versão do Excel dos anos 80 para registrar os casos e não se deu conta de que ela tem um limite de 65 mil linhas por arquivo. “E como cada resultado de teste cria várias linhas de dados, na prática isso significa que cada modelo é limitado a cerca de 1,4 mil casos”, explica a BBC

O que era uma fragilidade se transformou num erro quando laboratórios enviaram arquivos num formato (CSV) que não tem essa restrição. Num dado momento, os arquivos com mais linhas foram simplesmente cortados na conversão, deixando de lado 15.841 testes com resultados positivos – o que significa que 50 mil pessoas potencialmente contaminadas podem ter sido perdidas, segundo o Guardian.

Para lidar com o problema, a agência está dividindo os resultados recebidos em lotes menores para criar um número maior de arquivos do Excel na expectativa de que nenhum laboratório atinja o limite de linhas. É claro que a ‘solução’ está sendo pesadamente criticada. 

“O software de planilha da Microsoft é uma das ferramentas de negócios mais populares do mundo, mas está regularmente implicado em erros que podem ser caros, ou até perigosos, devido à facilidade com que pode ser usado em situações para as quais não foi projetado”, resume o jornal.

10%

Ontem, a Organização Mundial de Saúde alertou que o novo coronavírus provavelmente já contaminou 20 vezes mais pessoas do que as estatísticas oficiais dão conta. Ao invés de 35 milhões de casos, o planeta teria acumulado 780 milhões de infecções – o que corresponde a 10% da população mundial. A informação foi dada por Michael Ryan, diretor-executivo da OMS, que alertou: “Ao mesmo tempo, isso significaria que a maior parte da população mundial ainda está vulnerável à infecção e que a pandemia está longe de terminar”. A declaração foi dada durante a reunião do Conselho Executivo da OMS, que começou ontem e termina hoje. 

VOLTA ATRÁS?

Durante a reunião do Conselho Executivo, chamou atenção a postura dos Estados Unidos. Brett Giroir, secretário-adjunto de Saúde dos EUA, parece estar tentando emplacar um roteiro para a reforma da OMS desenvolvido pelo G7. De acordo com o site Health Policy Watch, ele passou a impressão de que o país estaria disposto a pressionar por mudanças por dentro ao invés de simplesmente abandonar a Organização.

Em tempo: o Brasil se alinhou à iniciativa de reforma da OMS proposta pelos Estados Unidos.

COMO NÃO SE DEVE FAZER

O evento de nomeação da juíza Amy Coney Barrett para a Suprema Corte dos EUA parece ter sido mesmo um foco de superespalhamento do coronavírus. Além do presidente Donald Trump, pelo menos outras sete pessoas que estavam lá já foram diagnosticadas com covid-19. Mesmo assim, a Casa Branca decidiu não rastrear os contatos dos presentes. Segundo a apuração do New York Times, a única medida tem sido notificar as pessoas que estiveram em contato próximo com Trump nos dois dias anteriores ao seu diagnóstico. E não por telefone, como seria recomendado, mas sim via e-mail. O CDC, que tem os recursos mais amplos do governo para fazer o rastreamento, foi retirado da jogada: os regulamentos exigem que o órgão só se envolva quando é solicitado, o que não aconteceu.

Como se sabe, essa fase é fundamental para estancar surtos, ainda mais depois de um evento que deixou um rastro tão visível de contaminados. “Qualquer um dos convidados e membros da equipe lotados na cerimônia do Rose Garden poderia ter transmitido o vírus a muitos outros, então a decisão da Casa Branca de não investigar o grupo de infecções e identificar a fonte tem consequências potencialmente devastadoras para centenas de pessoas”, ressalta a reportagem.

Há pouco tempo mencionamos aqui uma reportagem da Wired que explicava por que uma abundância de testes rápidos (mesmo os que indicam a presença do vírus) não seria suficiente para conter a pandemia, e o episódio envolvendo a contaminação de Trump é a ilustração perfeita disso. A Casa Branca vinha testando compulsivamente qualquer pessoa que entrasse em contato próximo com ele. Porém, os exames apresentam falsos negativos, especialmente no começo da doença. Na cerimônia envolvendo a juíza Barret, os convidados que testaram negativo podiam retirar suas máscaras. Depois, várias pessoas que tiveram contato com Trump na semana passada continuaram circulando livremente, baseadas nos seus testes negativos. Uma delas foi a secretária de imprensa de Trump – que, no fim das contas, acabou sendo diagnosticada na segunda-feira. Agora, sem o rastreamento e o isolamento dos contatos, as contaminações que começaram no evento ainda podem se estender indefinidamente.

“NÃO TENHAM MEDO”

Depois de chegar de helicóptero ao hospital e ficar três dias internado, recebendo um atendimento inacessível à imensa maioria dos americanos, Trump teve alta ontem e disse que as pessoas não precisam ter medo. Pouco antes de ser liberado, tuitou: “Sentindo-me muito bem. Não tenham medo da covid. Não deixem que ela domine sua vida. Desenvolvemos, no governo Trump, remédios realmente muito bons e conhecimento. Sinto-me melhor do que há 20 anos”. Mais tarde, em um vídeo gravado já na Casa Branca, completou: “Eu aprendi tanto sobre o coronavírus. E digo uma coisa: não deixem que ele os domine. Não tenham medo dele. Vocês irão vencê-lo. Temos os melhores equipamentos médicos, os melhores remédios, todos desenvolvidos há pouco. E vocês irão vencê-lo”. Mais de 210 mil pessoas morreram de covid-19 nos EUA.

A chegada teatral de Trump à Casa Branca deixou boquiabertos muitos dos que já estão acostumados às suas bizarrices. Após subir um lance de escadas, ele tirou a máscara diante das câmeras e entrou de cara limpa no edifício, onde funcionários estavam à espera.  Agora o presidente vai seguir o tratamento em casa. Segundo o médico da Casa Branca, ele ainda não está fora de perigo.

ALTERAÇÕES MENTAIS

Ontem saiu o maior estudo feito até agora sobre alterações mentais nos infectados pelo novo coronavírus. Os pesquisadores analisaram os registros de 509 pacientes hospitalizados entre março e abril, em dez hospitais na área de Chicago. Concluíram que quase um terço apresentou algum tipo de alteração da função mental, variando de confusão a delírio. E que esse grupo teve desfechos clínicos piores, com sete vezes mais rico de morrer da doença e três vezes mais tempo de internação do que pacientes sem função mental alterada. Também foi identificada uma diferença grande no que acontece com os dois grupos depois da alta hospitalar: 89% dos que não apresentaram alteração conseguiram retomar atividades cotidianas como cozinhar e pagas contas. Já entre quem teve alguma alteração, essa taxa foi bem menor: 32%.  

PANE GERAL

De acordo com a OMS, 93% dos países do mundo interromperam serviços de saúde mental durante a pandemia – e o Brasil é um deles. O estudo avaliou como está se dando o acesso a esses atendimentos em 130 nações. Em 67% delas houve paralisação das sessões de terapia e psicoterapia e em 60% foram interrompidos os cuidados aos mais vulneráveis, incluindo crianças, adolescentes, idosos e mulheres grávidas ou puérperas. Até as intervenções de emergência em casos de surto foram atingidas: isso aconteceu em um terço dos países. 

POR INDUÇÃO

Os ministros Eduardo Pazuello (Saúde) e Fernando Azevedo e Silva (Defesa) se livraram da instauração de processos de impeachment por conta dos gastos com a produção da cloroquina e a indicação de uso da droga como tratamento da covid-19. Mas a decisão de Celso de Mello não se baseou no mérito da ação, uma notícia de fato apresentada pela deputada federal Natália Bonavides (PT-RN). O ministro do Supremo apenas concordou com o argumento da Procuradoria-Geral da República (PGR) de que cabe exclusivamente ao órgão instaurar processos de afastamento de ministros de Estado. No dia 17 de setembro, a PGR instaurou procedimento com o intuito de apurar os fatos noticiados pela deputada.

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