O que a Saúde Digital pode aprender com o MTST

Núcleo de tecnologia do movimento promove “alfabetização” em programação para fazer frente às Big Techs. E se o Estado também preparasse profissionais e usuários para construir juntos um SUS Digital participativo e soberano?

Foto: Núcleo de Tecnologia do MTST
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Quando Sérgio Arouca pronunciou seu inesquecível discurso na 8ª Conferência Nacional de Saúde (CNS), em 1986, paradoxalmente estávamos iniciando a redemocratização e, ao mesmo tempo, adentrando a globalização neoliberal. As batalhas e conquistas do/no SUS podem ser vistas como importantes contrapontos às tendências econômico-políticas que ventavam com força do imperialismo ocidental. Mas uma questão estratégica corria na Saúde sem a visibilidade e importância epistêmica, econômica, política e ética devida: as informações e tecnologias de informação em saúde (ITIS). 

Décadas antes, em 1963, vozes já haviam se levantado na 3ª CNS quanto à falta de informações estatísticas em saúde e a baixa qualidade das informações existentes, e também a natureza imprescindível delas para “definir os problemas de saúde em toda sua extensão, bem como avaliar as necessidades da população e dimensionar os recursos que possam ser destinados ao setor”. Além disso, o próprio Arouca já considerava que saúde “não é simplesmente não estar doente, é mais: é um bem­-estar social, é o direito ao trabalho, a um salário condigno; é o direito a ter água, à vestimenta, à educação, e, até, a informações sobre como se pode dominar este mundo e transformá-lo”. Apesar dos esforços de décadas de honrados e honradas sanitaristas nessa luta, foi apenas em 2015 que o SUS teve uma Política Nacional de Informação e Informática em Saúde (PNIIS) formalmente instituída.

Passado o tempo, não só o neoliberalismo vem tendo retumbantes vitórias – também fortemente na Saúde –, como para muitos já estamos vivendo a “Quarta Revolução Industrial” (QRI), cuja determinação central é justamente um salto tecnológico de natureza informacional. Ou ainda, com os olhos  para o Brasil, estamos imersos na quarta grande transformação estrutural, pautada na nova Era Digital. Hoje, ironicamente, as ITIS se tornaram ativos econômicos decisivos na reprodução capitalista das principais corporações do mercado global. Sob a força da conjuntura, não dá mais para negar a sua importância. Cada vez mais, vemos a divisão internacional do trabalho – desigual e combinada – conformar uma hierarquia entre os países com capacidade de produzir e exportar bens e serviços digitais, incluídos os serviços de saúde digital; e aqueles (re)convertidos em “colônias de dados” e importadores desses mesmos serviços – lembremos que somos o quarto país consumidor/importador de bens e serviços digitais.

Mas, se as ITIS parecem enfim estar ganhando os holofotes devidos, uma história lá da Primeira Revolução Industrial (PRI) talvez nos faça reconhecer que estamos esquecendo ou secundarizando uma questão importante do nosso passado: a chamada Marcha do Intelecto. Um projeto do MTST pode mostrar o caminho para enfrentarmos essa questão na Saúde de nossos tempos.

Foto: Núcleo de Tecnologia do MTST

As máquinas e a informação a nosso serviço?

Como sabemos, a PRI colocou na mesa a chamada Questão da Maquinaria, isto é, o debate público da Inglaterra oitocentista sobre o crescente desemprego de trabalhadores, substituídos pelas novas máquinas industriais. Nessa ocasião, ficaram famosos os ludistas, aqueles e aquelas que, submetidos às mudanças nos processos produtivos e às demissões em massa, reagiram quebrando as máquinas. É lógico, todavia, que a questão não eram as máquinas em si – e nem os ludistas eram apenas um bando de ignorantes antitecnologia. Como diz Brian Merchant, “os destruidores de máquinas não estavam, em última análise, atrás das próprias máquinas, mas sim dos homens que as usavam para transformar as relações sociais e ganhar poder. Os ludistas eram eles próprios tecnólogos; eles não odiavam as máquinas, embora também não tivessem nenhum respeito desmedido por elas.” Tanto que em suas palavras de ordem eles eram taxativos: “pela interrupção do uso ‘desagradável’ do maquinário”, pela “derrubada de todas as máquinas prejudiciais à comunalidade”. 

De toda forma, outra questão também foi central na PRI: as respostas dos andares de baixo à implementação das máquinas industriais também vieram sob a forma da demanda por mais educação sobre máquinas ou, como a Marcha do Intelecto demandava, tratava-se de lutar pela “potência intelectual geral”, pelo “intelecto geral do país”. Em suma, na ecologia das lutas proletárias da Inglaterra do séc. XIX não havia somente aqueles que quebravam as máquinas; havia também aqueles que lutavam pela formação dos trabalhadores/as, dos cidadãos e cidadãs, para que eles e elas pudessem vivenciá-las de modo mais “agradável”, ou mesmo pudessem redesenhá-las a favor da “comunalidade”. Para esses, tal como para os ludistas, os problemas não eram as máquinas, mas seus modos de agenciamentos, seus designs, seus usos…

Não é demais lembrar que por detrás da Marcha estavam, por exemplo, os princípios socialistas de alguém como William Thompson. Para Thompson, a crescente separação entre “conhecimento” e “trabalho” – trabalho “intelectual” e “manual” – constituía um poder contrário à qualidade de vida dos trabalhadores/as. E o objetivo dessa separação alienante, dizia ele, era “manter a parte viva da maquinaria ignorante dos dispositivos secretos que regulam a máquina; e para reprimir as potências gerais de suas mentes, com receio de que, pesquisando, eles descobrissem que foram feitos para trabalhar duramente para outros e que os frutos de seus próprios trabalhos foram, por meio de centenas de artifícios, tirados deles.” Em poucas palavras, já se sabia que, sob o design do capital, os dados, as informações e os conhecimentos produzidos nos encontros e apoios mútuos, em vez de aumentarem as forças produtivas e as potências criativas dos trabalhadores, tornavam-se seus algozes. 

Num mundo pós-fordista, o que dizer então das máquinas “inteligentes” [smarts] que pululam em nosso cotidiano, que intermedeiam intensiva e extensivamente nossas relações de trabalho, lazer, crença, educação, arte, amor, cuidado e cura? O que dizer dessas máquinas de bolso quando elas também são meios de produção pertencentes às grandes corporações capitalistas, cujo interesse principal é fazê-las veículos de acumulação de riqueza do 1% mais rico do mundo? O que dizer quando toda nossa vida está coagida a ser uma fábrica de dados e somos ignorantes dos dispositivos secretos que a regulam? O que dizer quando os dados, informações e conhecimentos expropriados dos trabalhadores/as desde a Primeira Revolução Industrial se tornaram sistemas algorítmicos, machine learning e IAs generativas de grandes corporações privadas? 

É famoso o dito de Paulo Freire, para quem a “educação não transforma o mundo. Educação muda as pessoas. Pessoas transformam o mundo.” Imersos na Era Digital, mergulhados em máquinas diuturnamente, é preciso de uma nova Marcha para que nos eduquemos sobre as informações. Uma Marcha que nos permita “dominar este mundo e transformá-lo” que nos ensine os “dispositivos secretos que regulam a máquina”. E, com isso, libertarmos as potências gerais de nossas mentes, do intelecto geral do país.

A ousada experiência do MTST

É com esse espírito, por exemplo, que o Núcleo de Tecnologia do MTST tem germinado algo que, me atrevo a dizer, poderia pavimentar a nova Marcha do Intelecto. A ideia do Núcleo é “Paulo Freire aplicado ao ensino de tecnologia e uma IDE [Ambiente de desenvolvimento integrado] na mão de cada Sem-Teto formando bons desenvolvedores.” No papo reto: é “alfabetização” em programação com as mãos na massa. Massa inicialmente “desplugada” – do computador e da internet –, com os velhos papéis e tesouras e muita integração entre os alunos. E depois, saltando do papel e tesoura para a robótica, passando pelos fundamentos de lógica procedural, condicional, função, variável etc., e com eles para o desenvolvimento de um “app”. Até alcançarmos na prática – todos juntos – o protótipo de uma “cidade inteligente”, que mais do que ensinar o manuseio racional da “parafernália”, ensina a racionalizar de modo humanizado o uso social de tecnologia. Tudo em manhãs e tardes recheadas de valores antineoliberais. 

Quem não sabe programar, certamente sai do curso menos ignorante dos dispositivos secretos que regulam os computadores de bolso. Quem não sabe como tal maquinaria funciona para nos enganchar, modular e interpelar com seus algoritmos, sai de lá dando um primeiro passo para reconquistar as IAs que tem sido expropriadas de nossa inteligência comum, social, coletiva

Ao encontro da Política Nacional de Informação e Informática em Saúde, projetos como esse podem ser calibrados e ressignificados de acordo com as necessidades – populares – da Saúde, do SUS, das ITIS. Depois, então, irradiados por todo país, seja com financiamento e estruturação do governo federal, estadual e municipal ou com o suporte do Conselho Nacional de Saúde. Não para se tornar mais uma política pública – sazonal e foquista – ao sabor das barganhas da “pequena política” e dos jogos institucionais. Tão pouco para ser um enxuga-gelo frente à escandalosa concentração de poder – tecnológico, econômico e político – das Big Techs. Mas para se tornar política de Estado para formação, qualificação e educação permanente – e popular – das/os profissionais de saúde, das/os conselheiros, das/os pacientes… 

O Núcleo de Tecnologia do MTST vem pavimentando a avenida. E os sanitaristas podem e devem se somar, para oxigenarmos juntos a luta pelo SUS, para além do SUS. E, quem sabe, também para concorrermos na construção de uma nova Marcha do Intelecto, uma marcha adequada ao nossos tempos, às nossas maquinarias, aos nossos anseios, às nossas necessidades e nossas urgências… Uma Marcha, como diria Arouca, para conquistar “um bem-estar condizente com o crescimento acelerado da civilização tecnológica. Isto é o que queremos.”

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