O pior diagnóstico em saúde mental
Diagnosticam-se cada vez mais transtornos psíquicos: o fenômeno já é muito conhecido – e criticado. Mas é preciso entendê-lo mais a fundo. Por que tantos desejam estes rótulos? O que isso diz sobre a cultura de psiquiatrização da vida?
Publicado 18/12/2025 às 11:02

Por Cláudia Braga, para a coluna Cuidar das pessoas, cuidar das cidades
Leandro tinha 15 anos quando estava em sua quarta internação em um hospital psiquiátrico; a última por determinação da Justiça e, segundo ele, feita a seu pedido.
Morador de uma cidade pequena, não tinha notícias da mãe. Do pai, nunca soube. Morava com a avó, que, ao longo de um período de mais de quatro meses, foi visitá-lo apenas uma vez na instituição.
Já não frequentava a escola havia alguns anos e precisava trabalhar para se alimentar. Antes da internação, fazia a limpeza de uma barraca de pastel, com o acordo de que, ao final do dia, receberia alguns pastéis e um troco para comprar pão. Ocorre que, antes disso, foi chamado para atuar como olheiro do tráfico de drogas, o que lhe rendia algum dinheiro a mais; em certo momento, ele se envolveu em problemas e a consequência foi ter sido jurado de morte. Por isso, procurou a Vara da Justiça que conhecia para pedir que fosse colocado em um hospital psiquiátrico, lugar onde já estivera antes em outras três internações. Leandro não queria morrer.
Em sua quarta internação na instituição, ele fazia questão de cumprimentar e conhecer os adultos internados, chamados de “moradores” por estarem ali havia muitos anos. Dizia que era bom já ir fazendo amizades, pois sabia que ficaria ali por muito tempo. Um menino de 15 anos.
Certo dia, pouco antes do início da reunião de equipe da ala em que estava internado, entrou na sala onde já se encontravam todos os profissionais e encarnou um personagem: uma brincadeira em que ele seria um funcionário do hospital psiquiátrico. Falando de si mesmo na terceira pessoa do singular, pegou seu prontuário e anunciou que naquele dia seria discutido um “caso muito difícil e que dá muito trabalho”, o caso do Leandro. Começou fazendo um relato sobre a instituição e, em seguida, iniciou a discussão de caso, imitando os profissionais do hospital psiquiátrico. Alguns levavam à sério, outros riam. Daí Leandro afirma que não havia e, com toda a seriedade do mundo, declarou: “Ele é um insócio-lata”. Algum profissional arriscou perguntar o que seria aquele diagnóstico, e ele respondeu: um insócio-lata é um vira-lata humano. Alguém que está vagando a esmo, que ninguém quer e que não tem condições de viver em sociedade.
Ninguém mais riu.
Leia os textos da coluna Cuidar das pessoas, cuidar das cidades, de Cláudia Braga.
O risco de um diagnóstico psiquiátrico
Não é de hoje que a patologização da vida vem sendo denunciada. Desde pelo menos 2017, o movimento social pela Despatologização da Vida vem alertando e debatendo os problemas da ampla atribuição de diagnósticos psiquiátricos a experiências próprias da vida. Crianças distraídas tornam-se crianças com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade. Crianças que se indignam passam a ser lidas como expressando um Transtorno Opositivo Desafiador. E assim por diante. Mais recentemente, passaram a compor esse debate as discussões sobre a patologização de sofrimentos sociais.
As consequências disso são muitas. A primeira é a óbvia medicalização da vida. Em uma lógica simplista de problema–solução, uma vez identificada uma situação como problema e categorizada como doença, a resposta tende a ser a prescrição de medicação.
Outra consequência, menos falada, mas muito impactante, é reconhecida em uma perspectiva histórica: a atribuição de um diagnóstico psiquiátrico pode dar início a uma carreira de psiquiatrização da vida. A partir do momento em que um diagnóstico desse tipo é estabelecido, além de os gestos e sofrimentos – apenas humanos – passarem a ser lidos e explicados a partir de um código de doença, a pessoa adentra um circuito de serviços, relações e vocabulários da instituição psiquiátrica que a reiteram em um lugar previamente definido. Este lugar é o de alguém identificado como um desviante da norma social, sendo o desvio codificado como doença mental.
Se a pessoa será vista unicamente a partir de um diagnóstico, tendo sua totalidade reduzida a ele, ou se o diagnóstico será apenas uma parte de sua experiência ampla de vida, isso se relaciona, entre outras coisas, ao seu poder de contrato na sociedade. Para as pessoas que desviam das rígidas normas sociais representadas pela eficiência e pela produtividade – como nos ensina Franco Basaglia – e que possuem baixo ou nulo poder de contrato social, o lugar reservado é o da segregação social em uma instituição asilar, confirmada pelo poder da ciência.
Aliás, este é um paradoxo da instituição psiquiátrica: com base no julgamento de que a pessoa é um “risco para si ou para outros”, justifica-se tantas vezes pelo poder da psiquiatria uma internação em hospital psiquiátrico, quando o próprio diagnóstico pode se tornar um risco, ao dar início a uma carreira de psiquiatrização da vida e de exclusão social.
O risco de um diagnóstico psiquiátrico é o de fazer a pessoa adentrar em um circuito que, ao invés de produzir saídas para ampliação de cidadania e das possibilidades de vida, a reitera em um lugar em que todos os seus gestos – todo o seu passado — são explicados em termos de uma doença, criando impeditivos para projetos futuros.
O risco, no limite, é fazer alguém crer que não reste outro caminho, que não o da exclusão social; que não há outro jeito que não o de ter a si atribuído um diagnóstico fatal: o de se tornar um insócio-lata.
O que se deseja no desejo por um diagnóstico psiquiátrico?
Com base em reflexões críticas, mas também na experiência de acompanhar inúmeras histórias de vida como a de Leandro, trabalhadores vêm se preocupando com a patologização e têm denunciado a consequente medicalização da vida. O debate sobre a patologização da vida não é outro que não o da psiquiatrização da vida.
Ainda assim, é urgente explorar uma contradição visível a olho nu: há, certamente, um aumento no número de diagnósticos psiquiátricos atribuídos, como mostram diversos dados; mas também tem ocorrido um movimento crescente de pessoas em busca de diagnósticos.
Por quê?
Essa pergunta, antes de demandar uma resposta imediata, abre espaço para outras indagações igualmente urgentes sobre percursos pessoais e coletivos. O que as pessoas desejam ao receber um diagnóstico de ansiedade, depressão, transtorno do espectro autista, entre outros? O que imaginam – ou mesmo o que é possível obter – quando um diagnóstico psiquiátrico lhes é atribuído? Quais são as demandas e necessidades reais das pessoas que buscam um diagnóstico psiquiátrico? E o que a demanda – e, por vezes, a celebração nas redes sociais – de um diagnóstico psiquiátrico nos diz sobre a sociedade?
O que isso nos revela sobre os rumos do poder da psiquiatria enquanto instituição?
Psiquiatria difusa
Franco Rotelli não poderia ter sido mais direto ao afirmar: “Faz-se necessário repetir algo para nós óbvio, mas desconhecido para muitos: a instituição que colocamos em questão nos últimos vinte anos não foi o manicômio, mas a loucura”. Isso significa colocar em questão o “conjunto de aparatos científicos, legislativos, administrativos, de códigos de referência cultural e de relações de poder estruturados em torno de um objeto bem preciso: ‘a doença’, à qual se sobrepõe, no manicômio, o objeto ‘periculosidade’”.
É preciso repetir que a instituição negada por Franco Basaglia (e a violência por ele denunciada) não se reduz ao hospital psiquiátrico nem a práticas como isolamento e contenção. A instituição a ser negada é a instituição psiquiátrica, e a violência denunciada é a do estatuto da razão, da categorização e da redução dos modos de ser e de se expressar no mundo a um objeto, um dito transtorno mental, instituindo relações não mais entre pessoas, mas com alguém apenas objetificado em uma doença e anulado das relações sociais.
Os ensinamentos da perspectiva teórico-prática da desinstitucionalização oferecem suporte para refletir sobre as questões apresentadas e impõem uma tarefa: não reproduzir o paradigma psiquiátrico. De tempos em tempos circula nas redes sociais e em rodas de conversa a ideia de que o aumento do número de diagnósticos configuraria uma nova forma de “manicômios invisíveis”, bem como a noção de que “práticas manicomiais” estariam sendo realizadas em serviços de saúde mental substitutivos ao modelo asilar. É recomendável cautela com ambas as afirmações, pois, ao tentar formular uma crítica justa, acabam por desviar a atenção do alvo real: condena-se o manicômio e salva-se a psiquiatria – esta psiquiatria que reduz a experiência humana.
Por isso interessa aqui juntar estas duas pontas que, por vezes, parecem distantes: a da exclusão social e a da patologização da vida.
Assim como a patologização da vida é atribuível à instituição psiquiátrica, quando serviços de saúde mental abertos e de base territorial realizam práticas não alinhadas às suas diretrizes e objetivos, o que se observa não é meramente a reprodução da instituição asilar, mas da instituição psiquiátrica: um modo específico de se relacionar com as pessoas, baseado na redução do sujeito a um objeto, invalidando-o e anulando-o das relações.
Apenas humanos
Talvez estejamos diante de um novo fenômeno – o de uma psiquiatria difusa – e, mais do que nunca, será necessário manter atenção aos “códigos de referência cultural e de relações de poder” que sustentam práticas de etiquetamento das pessoas em todos os locais.
Em especial em relação às pessoas que detém maior poder de contrato social, é preciso muito mais responsabilidade no anúncio público da conquista do desejo de um diagnóstico psiquiátrico, reconhecendo que isto reforça uma cultura de psiquiatrização da vida e que, se para uns isso pode significar uma identidade, direitos ou até mesmo privilégios, para outros isso é caminho para se tornar um vira-lata humano.
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