O país curupira

Pesquisadores debatem a EC 95 e constatam que Brasil parece caminhar para trás na saúde

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Inserido num cenário complexo de internacionalização e aumento da disputa pelo fundo público, tal qual o personagem folclórico, o Brasil olha para frente e caminha para trás na saúde

Por Maíra Mathias, do Outra Saúde

06 de junho de 2018

“Meu palpite é que vamos nos assustar com o Brasil daqui a dez anos”, disse Isabela Santos, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz, numa manhã de maio para um auditório atento que se reuniu na sede da instituição no Rio de Janeiro. Não era um diagnóstico isolado. “A minha hipótese é que o Brasil esteja caminhando para uma situação semelhante – ou pior – a dos Estados Unidos, que gasta 17,2% do PIB com saúde e tem resultados sanitários muito ruins”, afirmou José Sestelo, da UFRJ. “Por aqui, a perspectiva é o ressurgimento de vazios assistenciais em regiões onde esse problema havia sido superado. E piora dos indicadores básicos de saúde”, completou o economista Rafael Barbosa, da Unicamp.

E, de fato, indicadores ruins já começavam a aparecer. Dados do Ministério da Saúde consolidados pelo Observatório da Criança e do Adolescente, da Fundação Abrinq, apontam que após 13 anos em trajetória descendente, as mortes evitáveis entre um mês e quatro anos de idade aumentaram 11% em 2016. A piora afetou todos os estados brasileiros, com exceção de Rio Grande do Sul, Sergipe, Paraíba e Distrito Federal.  A mortalidade na faixa etária entre um mês de vida e um ano também aumentou 2%. Segundo o Observatório, a taxa global de mortalidade infantil em 2016 ficou em 12,7 – número que, em 2015, foi de 12,4.

Já pesquisa coordenada por Davide Rasella, da UFBA, publicada na PLoS Medicine, concluiu que 19.732 mortes de crianças de até cinco anos poderiam ser evitadas caso os orçamentos do programa Bolsa Família e da Estratégia Saúde da Família aumentassem no mesmo ritmo que a pobreza vai aumentar no país até 2030. Crescimento, como se sabe, impedido pela regra imposta pela Emenda Constitucional 95, conhecida como EC do teto dos gastos.

E foi justamente para debater como a EC 95 e as tendências do mercado de planos de saúde vão impactar o SUS nesse futuro que já começou que os especialistas se reuniram a convite da Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES) e da Fiocruz.

No horizonte, a austeridade

A conjuntura aponta para o fortalecimento da política de austeridade fiscal, afirmou Isabela Santos. Ela lembrou que o ex-ministro da Fazenda e atual candidato à Presidência pelo MDB Henrique Meireles declarou que saúde e educação são “itens que atrapalhavam a estabilidade do país”. Também citou um relatório do Banco Mundial publicado no fim do ano passado que propõe um conjunto de medidas de ajuste para o Brasil, dentre elas o fim da gratuidade no ensino público superior.

“Tudo isso ganhou impulso depois da crise econômica de 2008. Desde então, vários são os exemplos do aumento da pressão do setor privado sobre os Estados nacionais na disputa pelo fundo público e na abertura de mercados via desregulamentação”, contextualizou. Os dados vêm de países europeus que direcionaram parte de seus orçamentos para arcar com as dívidas geradas pela quebradeira das instituições financeiras depois do estouro da bolha imobiliária dos Estados Unidos.

“As políticas de austeridade fiscal trouxeram efeitos negativos para os países que as adotaram, como desemprego, desigualdade, diminuição do gasto público com proteção social, fechamento e redução das horas de funcionamento dos serviços, redução da força de trabalho, implantação de copagamento e taxas adicionais para acessar os serviços, restrição do direito à saúde como um todo, especialmente para populações vulneráveis como imigrantes e moradores de rua”, enumerou ela, que coordenou pelo Centro de Estudos Brasileiros em Saúde (Cebes) a edição da cartilha Políticas sociais e austeridade fiscal. E listou: “O resultado disso foi aumento nas taxas de suicídio, no abuso de drogas, nas doenças crônico-degenerativas e nas infectocontagiosas”.

Em nome de quê

A justificativa dada pelo governo federal para aprovar a EC 95 pode ser desmembrada, segundo Rafael Barbosa, em quatro afirmações: o Estado gasta demais; a economia está quebrada; é necessário um ajuste; e a população compreende o esforço.

“O Estado gasta demais ou abdica de receber?”, questionou, destacando que o Brasil é um país continental e uma das dez maiores economias do mundo. “Na saúde, a estratégia é similar ao caso da Previdência: não se fala nas desonerações e isenções que afetam a receita. Só se fala do gasto”, criticou.

Para ele, o aprofundamento de subvenções e desonerações nos impostos que compõem a seguridade social, como COFINS (contribuição para o financiamento da seguridade social) e CSLL (contribuição social sobre o lucro líquido), foram um problema. Mas Barbosa alerta para outro grande nó: a renúncia no Imposto de Renda – que não está sob controle da EC 95.

Os economistas Carlos Ocké (Ipea) e Artur Fernandes (Receita Federal) estimaram o tamanho dessa renúncia, chamada de gasto tributário em saúde, no período que vai de 2003 a 2015. Descobriram que os subsídios destinados às pessoas físicas cresceram em termos reais, de R$ 3,74 bilhões em 2003 para R$ 11,7 bi, em 2015; e neste último ano, R$ 8 bi foram renúncias destinadas ao pagamento de planos de saúde. Já os empregadores (IRPJ) passaram a renunciar quase o dobro de recursos na área da saúde, saindo de R$ 2,3 bilhões em 2003 para R$ 4,5 bilhões em 2015.

Como a EC 95 não colocou teto para gastos tributários, os pesquisadores alertam que “há uma expectativa de que a inexistência de um limite aumente a pressão para a criação ou para a ampliação de benefícios fiscais”. Rafael Barbosa reforçou: “Abre-se um cenário de total descontrole em relação à retirada dos recursos da previdência, da assistência social e da saúde”.

Além das renúncias do IR, o estudo foi atrás do que o governo deixa de arrecadar com medicamentos, produtos químicos e hospitais filantrópicos. Somando tudo, a União deu adeus a nada menos do que R$ 331,5 bilhões ao longo de 13 anos.

Por essas e por outras, defende Barbosa, seria preciso refazer as contas para afirmar, como faz o governo, que a economia está quebrada. Ele lembrou que entre 1998 e 2013, o país alcançou sucessivos superávits fiscais, ou seja, a diferença entre as receitas e as despesas (sem contabilizar o serviço da dívida pública) ficou no azul. “O Estado foi muito bem, obrigado. O Estado não está quebrado. Houve, isso sim, um desvio no curso da política feito pelo ajuste fiscal de Joaquim Levy [ex-ministro da Fazenda do segundo governo Dilma, atual diretor financeiro do Banco Mundial]”.

O economista ressaltou que os gastos sociais são multiplicadores de renda e riqueza e citou uma pesquisa do Ipea que concluiu que cada real gasto com saúde retorna R$ 1,70 para o PIB. “Ou seja, quase dobra. A saúde é uma variável do investimento. Não é custo”, afirmou. O contrário se dá com o pagamento dos juros da dívida pública. A cada real gasto, retornam apenas 70 centavos. “O país perde 30% do que gastou”, observou, completando: “Em termos estritamente econômicos é irracional cortar em saúde e gastar de forma desenfreada no serviço da dívida. A justificativa é meramente ideológica e política.”

Barbosa lembrou ainda que em dezembro de 2016, antes da aprovação da Emenda, uma enquete do site do Senado teve como resultado 345 mil votos contra a instituição do congelamento dos gastos públicos e apenas 23 mil favoráveis. Também uma pesquisa feita pelo Datafolha cravou 60% de reprovação a então PEC 241.

Caminhando para trás

Pode ser uma entrevista de um empresário dizendo que o SUS é uma utopia; um evento organizado por uma entidade privada defendendo que é preciso criar um “novo” sistema nacional que amplie a base de consumidores dos planos e seguros de assistência à saúde; mas também pode ser o próprio ministro da Saúde dizendo que quanto mais planos, melhor vai ser para quem depende exclusivamente do SUS porque o setor público vai ser “desafogado”. Em 2018, o Sistema Único completa 30 anos em meio a um festival de declarações que apontam (e celebram) o setor privado como solução para sua crise.

Na década de 1970, lembrou José Sestelo, a Associação Brasileira dos Planos de Saúde (Abrange) já tentava convencer a opinião pública com esses mesmos argumentos. “No que se refere à questão de aliviar o SUS esse argumento foi forjado pela Abrange na época do Inamps – e, até hoje, é uma falácia muito bem-sucedido do ponto de vista ideológico. Está presente no senso comum a ideia de que é bom que tenha muito plano de saúde porque isso vai favorecer quem não tem”, afirmou ele, que faz parte do Grupo de Pesquisa e Documentação sobre Empresariamento na Saúde (GPDES), baseado no Instituto de Estudos em Saúde Coletiva.

“Ao contrário”, ressaltou, por sua vez, Isabela: “A forma como esse encaixe do privado se dá aumenta as filas do setor público, principalmente as filas mais complexas, desorganiza o sistema como um todo, além de aumentar a iniquidade no uso, no retorno e no financiamento. E nós temos provas disso”. Para ela, a participação da prestação privada de serviços de saúde deve retornar aos níveis da época da ditadura empresarial-militar, estimulada pelo governo no contexto da EC 95. “Tem tudo para se repetir”, disse.

De acordo com Rafael Barbosa, o setor desperta o interesse do mercado, dentre outras razões, porque muito do valor adicionado ao PIB vem da saúde. “Ela representa 9% do PIB e gera muita renda e riqueza para o país”, disse, completando que cerca de 10% da mão de obra brasileira qualificada trabalha no setor, segundo o IBGE.

E mesmo a desigualdade brasileira é, na avaliação dele, uma “oportunidade” para o mercado privado. “O Brasil tem o melhor dos mundos: doenças do atraso e do desenvolvimento. E isso faz com que as empresas consigam se apropriar discricionariamente de ambos os mercados: ficam com o filé mignon da renda alta, mas também obtém ganhos em escala com a população de baixa renda e com as doenças negligenciadas.”

O economista destacou que os serviços de saúde têm grande apelo social e, consequentemente, geram capital político. “Os políticos utilizam a urgência para fazer arranjos público-privados. Mas há um detalhe: nenhum agente privado entra sem a garantia do recurso público, que é o calço.”

Nesse sentido, o setor privado não pode ser a “solução”, já que não vai ofertar saúde universal para todos até o fim da vida. Os movimentos de mercado mostram isso. Segundo a Pnad, do IBGE, quando se aposenta, o brasileiro perde 35% do salário. Já os sinistros, nomenclatura do mercado de seguros que significa o uso do serviço, tendem a aumentar três vezes. “As pessoas serão expulsas, retiradas da carteira [de clientes] do plano quando mais precisarem”.

Desde que a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) foi criada, em 2000, e começou a acompanhar as internações de beneficiários das empresas de planos e seguros de saúde nas unidades públicas, através do ressarcimentos ao SUS se pôde ter dimensão de que as empresas empurram os procedimentos mais caros para o Sistema Único. Barbosa citou o relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) de 2012, que concluiu que o valor das autorizações de procedimentos ambulatoriais de alto custo, conhecidas pela sigla APAC, é R$ 10 bilhões a mais do que computou a agência. “Quando as operadoras abdicam de forma premeditada de garantir o serviço contratado pelo beneficiário, que vai para a rede pública, quem desafoga quem? “É o SUS que desafoga o setor privado de ‘n’ formas”, respondeu.

Rafael Barbosa destaca que, de 2008 a 2015, o setor privado foi responsável pelo fechamento de metade dos estabelecimentos de saúde do país: foram 26 mil unidades a menos. Houve, segundo ele, uma corrida das empresas para os centros econômicos mais dinâmicos do país. E para os nacos de mercado mais lucrativos. No período, o SUS reduziu em 17% a capacidade instalada na alta complexidade, enquanto o setor privado aumentou em 31% a sua. Na média complexidade, não houve queda significativa dos estabelecimentos particulares e houve avanço da criação de unidades públicas ou contratadas pelos governos. Na baixa complexidade, o Sistema Único avançou ao mesmo tempo que o setor privado perdeu o interesse. Com a EC 95, garante, os vazios assistenciais vão reaparecer.

Síndrome de curupira

Todas essas transformações acontecem em um cenário cada vez mais complexo, em nada semelhante ao mercado privado de saúde dos anos 1970, quando o movimento da reforma sanitária começou a se articular na defesa de um sistema público universal. “Antigamente eram empresas. Hoje a gente não pode mais falar na forma ‘empresa’ no sentido estrito; são grupos econômicos que têm uma perna na intermediação assistencial, mas atuam num complexo mais amplo”, disse José Sestelo. E completou: “É do interesse desses grupos colocar um pé na oferta de planos, mesmo com prejuízo operacional. Isso não pode ser olhado com lupa: a empresa ‘x’ pode até dar prejuízo, mas o grupo tem interesse nessa atuação”.

Ainda de acordo com o pesquisador, os grupos atuam no controle das duas principais variáveis operacionais: receita e despesa. Do lado da receita, a grande questão hoje, aponta ele, é a falta de regulação dos reajustes anuais dos planos de saúde coletivos, que são a maioria. “Ou seja, são as empresas que determinam o valor. E no que se refere à despesa, quando querem passam um torniquete”, disse. O que seria o torniquete? Negar tratamentos e procedimentos cobertos pelos contratos. Isso tem gerado um aumento na judicialização, já que os consumidores tentam garantir na Justiça as negativas de cobertura. “É uma prática habitual do ponto de vista operacional”, garantiu Sestelo.

Outra forma de controlar o binômio receita/despesa é a chamada verticalização, quando uma empresa de planos de saúde tem, também, hospitais. “A Amil tem hospitais e leitos de UTI, mas ela não tem – nem precisa ter – todos os leitos que utiliza. Ela precisa deter o necessário para influenciar o preço do leito de UTI na praça de São Paulo, por exemplo”, explicou.

E tudo fica ainda mais confuso com a entrada de agentes globais no mercado brasileiro. São fundos de investimento ou multinacionais que têm participação nas ações de várias empresas concorrentes no país. “Isso permite um maior poder de pressão na esfera política e econômica, inclusive uma maior margem para arbitrar valores.” É o caso, citou Sestelo, de agentes como o fundo soberano de Cingapura (GIC), o BlackRock e o Fidelity Bank. “Tratam-se de cadeias globais controladas a partir dos países centrais que tendem à cartelização e à oligopolização. No fundo, estamos diante de um novo objeto [de estudo]. E é preciso outra estratégia para lidar com ele”. Nesse sentido, observou ele, se a regulação das empresas pelo Estado brasileiro sempre foi falha, hoje, ainda por cima, está caduca.

A oferta inicial de ações (IPO na sigla em inglês) das operadoras de planos de saúde NotreDame Intermédica e Hapvida atraíram compradores estrangeiros. Segundo Sestelo, à medida em que entram mais intermediários no sistema brasileiro de saúde, a tendência é que o país caminhe para uma situação semelhante – ou pior – a dos Estados Unidos. “Nos EUA, os custos administrativos das diversas transações e intermediações é alto. Trata-se de um país que gasta 17,2% do PIB com saúde e tem resultados sanitários muito ruins.” A hipótese do pesquisador é que o Brasil esteja caminhando para algo semelhante. Ou pior.

“Por aqui, podemos ver um aumento no gasto proporcional do PIB sem melhora sanitária porque esses recursos são dirigidos a custos administrativos e a uma rede infindável de intermediários. O que intermediação acrescenta em termos de processos, eficiência?”, perguntou. E defendeu: “É preciso que a gente se debruce sobre isso e abra a caixa preta dos custos. As empresas falam que a inflação médica é superior à inflação geral. Mas quais são as variáveis? Não vamos conseguir avançar se a gente não partir desse objeto complexo, atravessado de uma nova situação estrutural que ameaça os sistemas de saúde como um todo. Num país como o nosso que não constituiu Estado de bem-estar, que está aumentando gastos proporcionais da saúde em relação ao PIB e passa por um processo de desindustrialização, o que nos aguarda?”

Ao que parece, o país está olhando para o futuro mas caminhando para trás como o curupira do folclore nacional.

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