Não seria o SUS um patrimônio cultural brasileiro?

Reconhecimento social do sistema de saúde pública brasileira, com a pandemia, suscita o debate. A história de sua criação pelo movimento sanitário, sua construção coletiva contínua e abrangência que tem no território são alguns dos elementos a se considerar

Créditos: Agência Belém
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Por Elizabethe Cristina Fagundes de Souza e Renata Montechiare, especial para o Outra Saúde

A pandemia de covid-19 tornou mais evidente a importância do SUS brasileiro pelas suas características de sistema universal presente em todo o território nacional e demonstrou sua grandiosidade como um patrimônio nacional que deve ser preservado, aperfeiçoado e valorizado. No artigo “SUS como patrimônio cultural brasileiro: apontamentos para estimular iniciativas de reconhecimento e preservação” (leia completo aqui) ressaltamos o necessário debate na sociedade para difundir e pleitear junto às instituições competentes o reconhecimento e a preservação do SUS como patrimônio cultural brasileiro.

Apresentamos alguns elementos para justificar a importância do reconhecimento social do SUS na perspectiva de vir a ser patrimônio cultural, fizemos algumas pontuações sobre sua trajetória e, particularmente, evidenciamos seu papel no enfrentamento da pandemia de covid-19, quando demonstrou grande capacidade de cuidar de pessoas e de salvar vidas, ganhando visibilidade positiva na sociedade e nas mídias.

Ao nos remetermos ao percurso histórico de construção e desenvolvimento do SUS, identificamos, desde seus antecedentes, as peculiaridades de sua construção, inspirada em ideário de outras reformas sanitárias internacionais e sistemas universais, mas, sobretudo, muito atrelada à luta da sociedade brasileira pela redemocratização política do país durante a ditadura civil-militar instituída com o Golpe de 1964. A insígnia Saúde é Democracia, que simbolizou a VIII Conferência Nacional de Saúde, em 1986, resumiu e inspirou o conceito ampliado de saúde, materializando-o no direito de acesso a bens e serviços a ser assegurados por políticas públicas, conforme define a Lei Orgânica da Saúde.

Outra característica marcante é a diretriz organizativa de participação comunitária, cuja regulamentação na Lei nº 8.142 de 1990 estabeleceu instâncias de participação e controle social, os conselhos e as conferências de saúde. Formou-se, assim, uma grande rede de conselhos municipais e estaduais de saúde, com representação paritária de 50% usuários em relação aos 50% restantes da composição distribuída entre representantes da gestão e de trabalhadores da saúde. Mesmo que a participação social seja ainda insuficiente, identificam-se avanços advindos da atuação dessas instâncias, seja na ampliação do debate público sobre questões da saúde pública, seja na articulação e mobilização social para conquistas junto aos parlamentos e aos executivos – municipal, estadual e federal.

A trajetória do SUS tem marcas muito peculiares de sua construção coletiva, de invenção cotidiana no trabalho de profissionais e gestores de saúde, de participação popular e de reconhecimento social, mesmo diante de todas as dificuldades vivenciadas por quem trabalha e por quem é usuário do sistema, exclusivo ou pontual, à revelia das tentativas de sua destruição ou sua distorção constitucional para adequá-lo ao mercado.

Quando destacamos que o SUS tem potencial para vir a ser declarado patrimônio cultural brasileiro, a intenção é buscarmos, no seu passado, caminhos para compreender o presente e fortalecer o seu reconhecimento social. Resgatar a memória do sistema de saúde construído de forma vinculada ao Movimento da Reforma Sanitária brasileira, cuja insígnia, “Saúde é Democracia”, norteou as proposições de um sistema que, por si e isoladamente, não asseguraria o direito à saúde no seu sentido ampliado, mas, que se propôs a assegurar o acesso universal à atenção à saúde, com integralidade e de forma equitativa, considerando as necessidades de assistência, proteção e promoção da saúde, e prevenção de doenças e agravos. Faz-se importante ressaltar que o SUS nasceu numa precária e limitada rede de serviços existente até então, ampliando-a em escopo e em escala a partir da proposta de atenção integral e acesso universal e equânime, assegurando sua presença nos diversos recantos do país, mesmo com os reduzidos aportes de financiamento já referidos.

Vale também lembrar o recente caso que ocupou as mídias sobre o famoso beneficiário de doação de órgãos na lista do SUS – o transplante de coração realizado pelo apresentador Fausto Silva, o Faustão. Entre insinuações de furar fila e desinformação nas redes sociais, o fato oportunizou alguns esclarecimentos junto à sociedade sobre o funcionamento do Sistema Nacional de Transplantes, reconhecido internacionalmente pelo seu caráter público e universal. De polêmica e fake news, o caso tornou-se, então, oportunidade de esclarecer os critérios da lista de espera de órgãos, estimular doadores e dar visibilidade às estatísticas de transplantes realizados pelo SUS, nem sempre visibilizadas no cotidiano pelo anonimato de seus beneficiários.

Segundo Márcia Castro (2023), são mais de 23 mil transplantes ao ano pelo Sistema Nacional de Transplante brasileiro, quantitativo que o coloca em segundo lugar em relação aos Estados Unidos da América. A diferença é que, no Brasil, 90% desse quantitativo são realizados pelo SUS, destaca a autora, dando ênfase à amplitude do SUS como sistema universal. De forma sintética e contundente, apresenta a abrangência e a presença do SUS não apenas na assistência que engloba vacinação, consultas, exames, internações, serviço de urgência e emergência (o SAMU), cirurgias e transplantes de órgãos, mas também no cotidiano de toda a população. O SUS é responsável por todas as ações da vigilância – epidemiológica, sanitária e ambiental – que alcançam um leque amplo, como a fiscalização e segurança dos alimentos, medicamentos, cosméticos, produtos de higiene; de ambientes de lazer como bares, restaurantes; de circulação como aeroportos, portos, rodoviárias; até serviços de saúde públicos e privados, entre outras ações. Destaca ainda programas de referência internacional como é a rede de bancos de leite humano, considerada a maior do mundo em doadoras e receptoras (Castro, 2023).

A pandemia de covid-19 descortinou essa grandiosidade e favoreceu o reconhecimento social da importância do SUS, suas fortalezas e fragilidades, colocando-o em evidência na pauta das políticas públicas a ser priorizada. Ao mesmo tempo, passou a ser fortalecido pelo aporte de investimentos emergenciais realizado naquele momento. Tornou também evidente a necessária valorização da saúde pública como política estratégica, no Brasil e no mundo. Apesar disso, ao se olhar de forma mais atenta para o conteúdo do aparente consenso social formado em torno da importância do SUS, percebem-se diferenças quanto aos interesses econômicos e políticos que atravessaram sua trajetória, com avanços e recuos em torno do preceito constitucional do direito à saúde como dever do Estado. A disputa histórica entre mercado e Estado, público e privado em torno do SUS atualiza-se nesse novo contexto que se apresenta favorável à valorização e ao reconhecimento social do sistema de saúde brasileiro.

Desse modo, consideramos importante reconhecer o SUS como bem cultural brasileiro, desde a sua história – antecedentes e desenvolvimento de seus princípios doutrinários e organizativos, suas práticas e ações, seus efeitos na vida das pessoas que o constroem (usuários, trabalhadores, gestores) e suas repercussões na saúde coletiva. Trata-se de um reconhecimento social na perspectiva de valorização patrimonial, em seu conjunto, ou de forma parcial, em alguns programas ou políticas específicas identificadas ao longo de sua existência. Sua valorização e preservação pela sociedade poderão ampliar as possibilidades para corrigir lacunas e consolidar o seu arcabouço jurídico-legal, com respaldo social. Assim, fica a provocação a instituições de pesquisa e órgãos de preservação patrimonial, legisladores, gestores e movimentos sociais de buscar iniciativas para a preservação do SUS de modo a articular memória, história e conquistas sociais, com ênfase nos diferenciais culturais e políticos que permeiam a construção do nosso sistema de saúde. Tal provocação se traduz em uma convocação à defesa do sistema público de saúde brasileiro.

Link para o artigo completo: https://periodicos.ufrn.br/cronos/article/view/34084


REFERÊNCIA

CASTRO, Márcia. O SUS é de todos e todos usam o SUS. Folha de São Paulo, 10 de setembro de 2023. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/marcia-castro/2023/09/o-sus-e-de-todos-e-todos-usam-o-sus.shtml#:~:text=A%20abrang%C3%AAncia%20do%20SUS%20e,%2C%20exames%2C%20interna%C3%A7%C3%B5es%20e%20transplantes. Acesso em: 26 set. 2023.

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