Mais Médicos: surge uma contradição na base do SUS
Estaria o programa servindo para precarizar o trabalho na Atenção Básica? Dois médicos de família alertam: já se fazem contratações injustificáveis pelo programa. Sem estratégia para fixar os profissionais a longo prazo, problema da falta de assistência não se resolverá
Publicado 23/04/2025 às 08:25 - Atualizado 23/04/2025 às 09:37

Marco Tulio Pereira e Ricardo Heinzelmann em entrevista a Gabriel Brito
Festejado pelo governo Lula como grande símbolo da “reconstrução”, o programa Mais Médicos quebrou recordes de adesão e beira os 30 mil profissionais contratados, distribuídos por unidades de saúde de todo o Brasil.
Em comparação com o desmonte do SUS e do direito à saúde promovidos ativamente pelo governo Bolsonaro, o programa deve ser visto de fato como um grande sucesso. Mas há um outro lado, pouco debatido. Na visão de Marco Tulio Pereira e Ricardo Heinzelmann, médicos de Família e Comunidade entrevistados pelo Outra Saúde, questões trabalhistas envolvidas no programa podem ser lidas como uma bomba-relógio na Atenção Básica.
Como explicam, a forma de contratação acabou por ofuscar outro objetivo perseguido pelo programa: a ampliação do corpo de profissionais da Medicina de Família e Comunidade (MFC), especialidade essencial ao funcionamento do SUS. Isso porque a contratação por bolsa representa vínculo precário de trabalho e na prática se tornou a forma predileta de contratação de municípios, inclusive aqueles que possuem boas condições econômicas.
“A forma como está sendo conduzido o processo é equivocada. Atualmente, apenas 6% dos médicos do programa são da especialidade Família e Comunidade. Não está sendo atrativo porque não tem perspectiva de continuidade. Depois de quatro anos, o processo acaba, e o que acontece? Ninguém vai se mudar com filhos para um município sem perspectiva de carreira”, pontuou Ricardo, que é diretor de Exercício Profissional da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, além de professor e coordenador de programas de residência em MFC pela Universidade Federal de Santa Maria, importante polo gaúcho que serve de exemplo da distorção operada na condução do programa.
“O Mais Médicos pode ser caracterizado como uma contrarreforma trabalhista, pois o próprio Ministério da Saúde oferta aos municípios ferramentas para uma forma de contratação mais barata. Vamos conviver com metade dos médicos que trabalham na atenção primária, nível de atenção tão importante para o funcionamento do SUS, como temporários e bolsistas? Isso não induz uma estruturação da política pública”, analisou Marco Tulio, que trabalha no Hospital Universitário do Vale do São Francisco e também é membro da Rede Nacional de Médicos e Médicas Populares.
Quando retomado, o programa acrescentou incentivos inéditos em relação à sua primeira versão. No primeiro período, o Mais Médicos contratava majoritariamente mão de obra estrangeira, quase toda de Cuba, o que acabou por deturpar o debate público em torno do programa. Agora, profissionais que o aderem são contratados por bolsa e têm gatilhos de acesso a títulos de pós-graduação e especialização.
A ideia essencial defendida pelos médicos ouvidos por Outra Saúde é que o Mais Médicos, em termos conceituais, é um programa de provimento, isto é, de socorro a vulnerabilidades específicas do SUS, pensado nos municípios mais pobres da nação. No entanto, acaba deformado por uma racionalidade neoliberal na operação do Estado, dentro de uma lógica de redução de custos.
“O argumento [da retomada do programa] não é tanto da falta de médicos, mas de fixá-los. E realmente a rotatividade é muito grande. Mas por que isso acontece? Em Florianópolis, entre os concursados, não há rotatividade grande. Em Brasília tampouco. Mas em lugares onde o vínculo é PJ, mesmo CLT através de Organizações Sociais e muita pressão de gestões, realmente se produz muita rotatividade”, explicou Marco.
Como complementa Ricardo, a situação coloca desafios para um futuro não muito distante. Generalizar a contratação de médicos por meios temporários ou precários tende a enfraquecer o próprio conceito do SUS e sua ação longitudinal e também multiprofissional.
“Dá pra ampliar o impacto do programa se qualificarmos as Equipes de Saúde da Família, o que não está acontecendo. Dos R$ 5 bilhões (custo anual do Mais Médicos), pode manter R$ 3 bi para garantir os médicos nas áreas vulneráveis, onde precisa, e pegar R$ 2 bi desse mesmo orçamento e colocar no processo de qualificação. É possível melhorar o programa com o mesmo orçamento”, afirmou, em defesa da retomada da criação de carreiras e vínculos estáveis não só para médicos como também outros profissionais que constituem a base do SUS.
“Se pensarmos neste valor, conseguiríamos estruturar uma política de carreira para praticamente 100% das Equipes de Saúde da Família no Brasil em um intervalo de 10 anos. Isso faria com que os médicos viessem para a APS, porque está difícil o mercado de trabalho”, completa Marco Tulio, que tomou de exemplo o piso recém-implantado para Agentes Comunitários de Saúde, cujo impacto anual é R$ 12 bilhões.
Na longa entrevista, ambos reconhecem o valor do Mais Médicos e não esquecem de todo o desmonte, inclusive financeiro, pelo qual passou o Estado brasileiro nos anos de Michel Temer e Jair Bolsonaro. Nesse sentido, apontam outro legado nefasto do período, cuja influência sobre o SUS é cada vez mais notada, e aqui se expressa no enfraquecimento da ideia de tripartição de sua gestão.
“Tem a influência das emendas, mas tem uma coisa da própria lógica do governo anterior de fortalecer o Centrão, num contexto onde, para se preservar politicamente, Bolsonaro abdicou de certas prerrogativas de liderança política do Poder Executivo e as transferiu ao Legislativo. Isso acabou fortalecendo a gestão dos próprios municípios e dos parlamentares aliados, que agora não querem abrir mão desse espaço ganho. Perdeu-se a lógica da política indutora de uma construção e elaboração estruturante”, observaram.
Leia entrevista completa:
Considerado um sucesso no governo Dilma, o Mais Médicos foi encerrado pelo governo Bolsonaro, em sua intenção de trocá-lo por um programa que mal saiu do papel, em anos que acabaram marcados pelo esvaziamento da Atenção Primária em Saúde (APS) no Brasil. E se antes o programa era mais dependente de profissionais estrangeiros, agora tem uma versão ampliada, com muito mais profissionais contratados. No entanto, vocês apontam uma precarização da medicina, em especial de sua especialidade Família e Comunidade, nesta nova versão do programa. Qual a visão geral de vocês sobre essa retomada do Programa Mais Médicos e sua nova concepção?
Marco Tulio Pereira: O SUS foi criado pouco antes de o país adotar uma concepção econômica e administrativa neoliberal, o que na saúde se refletiu em várias ações, a exemplo da criação das Organizações Sociais, para realizar a gestão privada de estabelecimentos públicos de saúde. Na atenção básica, não podemos dizer que o Mais Médicos criou a precarização, porque ela já existia, claro. Poucos municípios de fato oferecem carreiras municipais para médicos. Tal lógica, portanto, já existia.
Nossa reflexão é que o Mais Médicos, uma solução muito importante para resolver o problema dos vazios assistenciais e provimento médico em áreas muito vulneráveis e remotas, passou a ser considerado uma solução de contratação de profissionais médicos para a APS no Brasil. Aqui, temos um vínculo precarizado porque se contrata por bolsa, como se fossem eternamente estudantes, o que se expressa através dos gatilhos formativos concedidos pelo programa, a exemplo do reconhecimento do título de especialista.
Falamos de um cenário onde metade das Equipes de Saúde da Família (ESF) são contratadas com esse vínculo de bolsa do Mais Médicos. Ao não avançar numa agenda de regularização dos vínculos e criação de direitos trabalhistas para os profissionais médicos, que são trabalhadores como qualquer outra categoria profissional, o governo avançou na precarização a partir de uma política ministerial.
Isso fez municípios que tinham situações regulares de contratação de profissionais médicos e histórico de concursos públicos em condições atrativas abandonarem tais práticas. Por exemplo: Florianópolis e Belo Horizonte passaram a não ter mais essa atratividade e só ofertam vagas através do Mais Médicos. Isso aprofunda o problema da precarização dos vínculos, inclusive em municípios que não o tinham, o que agora passa despercebido.
O programa adota a racionalidade neoliberal de Estado em sua lógica de redução de custos da mão de obra, o que pouco parece mudar num governo de viés mais progressista com mais engajamento em políticas de justiça social?
M.T.P.: Ouso dizer que, a partir de 2023, quando o ministério da Saúde lançou edital com o chamado modelo de coparticipação, o Mais Médicos pode ser caracterizado como uma contrarreforma trabalhista, pois o próprio ministério oferta aos municípios ferramentas para uma forma de contratação mais barata.
Os vínculos de trabalho na atenção primária sempre foram, de maneira geral, precários, com exceção de alguns municípios de grande porte, com melhor estruturação de serviços, que conseguiam contar com recursos públicos e planos de carreiras. Isso tem várias outras dimensões, mas se produziu uma falta completa de atratividade dos médicos por tais vínculos de trabalho, que se tornam muito rotativos, como um primeiro emprego, temporário, pois ninguém quer construir carreira com este grau de precariedade.
Talvez agora menos, a falta de profissionais sempre foi muito gritante no cenário da atenção primária. O Mais Médicos enfrentou essa questão, muito importante. Mas pela forma como está se estruturando e se consolidando também está se transformando numa forma hegemônica de contratação de médicos. Metade das ESF são vinculadas ao Programa, e não tem nenhuma perspectiva de transição para um vínculo trabalhista mais qualificado.
É uma política emergencial de estabilização de médicos na atenção primária muito importante. Mas e no futuro? Vamos conviver com metade dos médicos que trabalham na atenção primária, nível de atenção tão importante para o funcionamento do SUS, como temporários e bolsistas? Isso não induz uma estruturação da política pública.
Ricardo Heinzelmann: Precisamos vislumbrar uma transição a fim de estruturar a APS com vínculos mais estáveis, com mais atratividade. Inclusive agora, num cenário em que se carece de muito menos médicos no Brasil, pois o país e seu mercado de trabalho mudaram significativamente nos últimos 10 anos, em razão também da criação de faculdades de medicina. Mas da forma como está, é difícil que os futuros profissionais possam se interessar e se dispor a seguir a trajetória de se formar em Medicina de Família e Comunidade (MFC) e trabalhar no sistema de saúde.
Nossa posição é: MFCs, profissionais que optaram por fazer uma especialidade praticamente exclusiva do SUS, precisam encontrar um caminho de trabalho minimamente atrativo. Não estamos falando de carreira de juiz ou do mercado de trabalho privado, mas de um mínimo de estabilidade e de perspectiva de carreira.
Por exemplo: pelo painel do Mais Médicos, Santa Catarina tem 42% dos médicos da APS ligados ao programa. Pelo Censo das UBS, realizado no ano passado, 45% das Unidades Básicas de Saúde (UBS) do Sul do Brasil têm médicos ligados ao programa. Falta tanto médico assim no Sul do Brasil? Recife tem 70% dos médicos ligados ao programa, uma cidade como Santa Maria, com faculdade de medicina, tem praticamente 100%…
A estrutura da organização, da gestão do trabalho dos médicos na APS é, basicamente, orientada para os Mais médicos.
M.T.P.: Eu trabalho no programa no município de Araripina, polo gesseiro do sertão do Araripe em Pernambuco, uma cidade média, 90 mil habitantes, que tem curso de medicina: das 32 Equipes de Saúde da Família, 27 são do Mais Médicos. As outras 5 são contratadas por CLT. O município nunca faz concurso público. Nunca criou uma estratégia de atração e fixação dos médicos e o Ministério da Saúde oferta a solução com vínculos por bolsa, temporários. É o que estamos vendo.
O Mais Médicos está preenchendo os vazios assistenciais atribuídos ao governo anterior? As cidades que realmente tinham uma carência de profissionais também estão sendo providas?
M.T.P.: O Mais Médicos tem o grande mérito de garantir o provimento de médicos no Brasil na atenção primária, isso eu afirmo categoricamente. Trabalho no sertão de Pernambuco, conheço o sertão e afirmo que aqui na região não falta médico.
Em outros níveis de atenção faltam, nós estamos vivendo no hospital do Estado uma falta crônica de anestesistas. Tivemos uma situação gravíssima num hospital de referência para trauma de ortopedia e neurocirurgia com falta de neurocirurgiões. E o hospital tem recurso para contratar, mas as pessoas não aparecem. Na APS na nossa região, não falta médico, o que é fruto, essencialmente, do Mais Médicos. Isso o programa garante.
Porém, o cenário do mercado de trabalho está mudando muito. Teremos alguma outra estratégia para regularizar a atuação desses médicos? A proposta atual é emergencial.
R.H.: Dez anos depois do primeiro Mais Médicos, apuramos dados em que se constata que, do total de médicos, apenas 38% estão em municípios de alta e muito alta vulnerabilidade e 62% estão em municípios que não seriam o foco do Mais Médicos.
Aqui entramos em várias discussões importantes. Uma delas é o próprio recurso financeiro investido no programa. É um programa bilionário, de mais de R$ 5 bilhões. Mas este valor não está orientado pelo princípio da igualdade, não se fez tal estratégia, porque estamos falando de municípios ricos. Tranquilamente, tais municípios poderiam abrir concurso e contratar médicos com condições mais atrativas. Mas fica mais fácil e cômodo ter o médico do programa garantido.
Já os recursos financeiros, não são apenas relativos a salários. Por trás do Mais Médicos, tem uma estrutura gigante que envolve a oferta da especialização, os supervisores, os preceptores, a logística. Gasta-se muito para ter esse médico recebendo bolsa de municípios.
A forma como está sendo conduzido o processo é equivocada. Atualmente, apenas 6% dos médicos do programa são da especialidade Medicina de Família e Comunidade. Não está sendo atrativo para médicos da especialidade. Porque, de fato, não tem perspectiva nenhuma de continuidade. Depois de quatro anos, o processo acaba, e aí vai acontecer o quê? Ninguém vai se mudar com filhos para um município sem perspectiva de carreira.
Além disso, mais da metade dos médicos atualmente não teve revalidação da atividade profissional. Considerando a baixa possibilidade de passar da prova do Revalida, a maioria desses médicos, depois de quatro anos, não continuará trabalhando e pode não conseguir fazer a titulação em MFC. E aqui temos mais recursos, porque todo mundo está recebendo especialização em MFC, pois a adesão ao programa vale como uma pós-graduação. É um recurso milionário que está sendo investido em médicos que não vão ficar na atenção primária, pois da forma como o programa está moldado haverá rotatividade.
Uma parte importante desses recursos poderia ser canalizada, por exemplo, para descentralizar os programas de residência, pois é um momento de utilização do médico em local de trabalho próximo à família. Poderia haver muito mais chance de expandir a APS com qualidade pela MFC, com outras estratégias. O Mais Médicos poderia ser direcionado para, de fato, áreas mais vulneráveis. Mas isso não acontece.
Em 2023, quando entrevistamos Zeliete Zambon, presidente da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, no momento em que o programa foi recriado, havia uma visão positiva desses gatilhos de carreira que o governo instalava. Segundo a explicação da época, isso atrairia mais profissionais em relação ao primeiro programa, muito dependente de médicos estrangeiros. Agora, vê-se uma crítica justamente a essa ideia, inclusive como se fosse uma espécie de “atalho”, pois em vez de se promover a residência, cria-se uma espécie de concorrência, uma divisão na carreira.
R.H.: Sim. A pós-graduação nunca vai substituir a residência. É interessante que eu estou nesses dois lugares. Eu estou vendo a nossa residência aqui em Santa Maria, na Universidade, e ao mesmo tempo eu sou tutor da especialização. Acompanho turmas nos dois cenários. É muito diferente. Não tem como comparar o padrão de formação da nossa residência, a qualidade com que os residentes saem depois de dois anos, e o da especialização. São estratégias que precisariam ser complementares, a especialização direcionada para situações de áreas específicas, de difícil acesso, alta vulnerabilidade.
Mas o que aconteceu foi a especialização em massa enquanto a residência é deixada sem dinheiro. Os preceptores trabalham por amor mesmo. Ficamos implorando para eles receberem uma turma de residência. Como universidade pública, criamos cursos, eu faço treinamento, procedimento como habilitação para colocar DIU, a fim de dar alguma contrapartida profissional a quem adere, mas não há nenhum estímulo. E tais recursos poderiam ser usados para estimular os preceptores, inclusive para direcioná-los a mestrados e doutorados. Precisamos fazer uma revisão disso.
M.T.P.: Eu acho correto ter programa de atrelamento da pós-graduação a algum processo formativo em programa de provimentos. Isso qualifica os médicos associados ao programa de provimentos, para terem alguma trajetória nesse sentido. Mas minha impressão é de que ninguém trabalha nos processos formativos do Mais Médicos para fazer pós-graduação. Ninguém foi atraído para o Mais Médicos por conta da pós-graduação.
As pessoas foram atraídas para o Mais Médicos por dois motivos principais: 1) uma parcela grande de médicos do programa não tem atualização de diploma, são mais de 10 mil médicos que têm como única opção de trabalho o Mais Médicos; 2) os médicos que têm CRM no Brasil: uma parte são médicos que já trabalham no interior, são do município, trabalham ali com plantão, na UBS. Diante dos vínculos precaríssimos que existiam nos municípios, pelo patrimonialismo das gestões que se apropriam dos cargos públicos, tais profissionais veem no Mais Médicos uma maior estabilidade. Ser vinculado ao governo federal é mais garantido. O nível salarial não é muito superior, não é uma atratividade necessariamente financeira, mas de estabilidade.
Outro ponto é que os recém-formados querem um primeiro emprego antes de buscar alguma especialização, ou ainda não procuram uma especialização. Eles não querem ser MFC. Inclusive, o Mais Médicos teve uma crise recente no processo formativo porque está muito mais robusto do que a versão anterior. Eu acho que esse é o elogio que a Zeliete fez. O processo formativo realmente está muito mais robusto. E muitos médicos não querem passar por este processo porque não querem se formar em Medicina de Família e Comunidade. Eles não veem a perspectiva de terminar esta especialização e fazer a prova de título. Não tem uma perspectiva positiva de carreira. Querem, basicamente, um primeiro emprego com o mínimo de estabilidade, um salário garantido, condição de estudar para a residência, ou de fazer pós-graduação no mercado privado e depois seguir uma trajetória específica. Eles não querem ser MFCs; quem quer faz residência médica. Tem um padrão de formação absolutamente melhor.
Outra crítica que faço é: vincular a pós-graduação a programa de provimento me parece correto, mas ter como estratégia nacional de formação de especialista, não. O Mais Médicos deve ser direcionado para áreas e regiões realmente mais necessitadas, Amazônia Legal, algumas periferias de grandes cidades, partes do Nordeste, outras regiões que ainda estão se estruturando na atenção básica… Acho que pode ser um processo temporário de organização de operação da rede de APS.
Espero que a atual concepção seja um processo de transição para uma formação central de médico de família por meio da residência médica, seguido de um caminho de fixação por meio de carreiras mais estáveis.
O ministério da Saúde sabe que hoje falta menos médicos na APS do Brasil, pois os números são muito diferentes de 2013. O argumento agora não é uma questão tanto de faltar médicos, mas de fixá-los. E realmente a rotatividade é muito grande. Mas por que tem rotatividade? Em Florianópolis, entre os concursados, não tem rotatividade grande. Em Brasília tampouco. Mas em lugares onde o vínculo é PJ, mesmo CLT através de OS e muita pressão de gestões, realmente se produz muita rotatividade. Esse é o motivo da dificuldade de fixação de médicos. O ministério faz um conjunto de indenizações para incentivar médicos que não querem ficar na APS a permanecerem um pouquinho mais. Tais médicos, obviamente, num período de estruturação da vida, de dívida estudantil, aceitam ficar ali 3, 4 anos, mas depois seguem sua trajetória.
É um caminho possível de organização e de fixação de médicos em algumas áreas de desenvolvimento? Talvez. Mas fazer disso o caminho de fixação de médicos por período de 2, 3 anos, com um custo financeiro bastante alto, não é o caminho ideal. Nós precisamos de outras estratégias mais estruturantes para estabilizar e fixar os médicos. É só olhar para a realidades dos municípios que fazem concurso público. Com carreira, os médicos ficam na APS e seguem uma trajetória para a formação em Medicina de Família e Comunidade, topam fazer residência e se especializar na área.
Em alguma medida, o Médicos pelo Brasil tentou contemplar este aspecto que você coloca aqui?
M.P.T.: O conflito que houve recentemente com os Médicos do Brasil é um exemplo. Quando se tem um mercado de trabalho minimamente atrativo, com mais recursos, um corpo de garantias e benefícios trabalhistas, os médicos vão aderir. No caso do Médicos pelo Brasil, os profissionais estão lutando para efetivar seus direitos e afirmam que estão se formando adequadamente, dentro de um processo formativo de dois anos, para depois se fixarem no local.
R.H.: A questão da gestão é importante aqui. Se a gestão sinaliza que em algum momento vai ter um novo acelerador, como um concurso para MFC, vai ser muito disputado. Muita gente vai fazer. Hoje, o Brasil tem 14 mil MFCs e menos de 1.200 estão no Mais Médicos. Olha que desencontro. No cenário social que vejo, eles vão terminar a residência e se perguntar aonde vão trabalhar. Como pode o programa preencher quase 30 mil vagas, de acordo com o Governo Federal, e ao mesmo tempo MFCs terminam a residência sem saber onde vão trabalhar?
Dessa forma, tem uma incapacidade da política construída em ver o novo cenário. De certa forma, faz uma leitura do cenário de 10 anos atrás. Na questão da abertura de vagas de escolas médicas, com todos os seus problemas (outro capítulo à parte, sobre a qualidade da formação, dentre outros), hoje temos um número muito grande de estudantes formados no interior dos estados. A formação está menos concentrada nas capitais e grandes centros. Para onde vão estes formados? Se conseguirmos fazer, de fato, um processo casado de ampliação das vagas em residência de Família e Comunidade em tais locais e fixar MFCs titulados, com concursos CLT, via AgSUS, eles ficariam ali, se forem ofertadas vagas com estabilidade. Porque foram os locais onde eles fizeram a graduação. Seria um plano mais estratégico.
Um ponto que me gera incômodo é que, muitas vezes, o diálogo fica em torno de ser 100% a favor do Mais Médicos ou totalmente contrário, entende? Não existe, parece, uma possibilidade de fazer uma crítica no pensamento do SUS sobre o Mais Médicos, sobre aprimoramento dos procedimentos. Agora mesmo, discussões estão rolando a defender que o Mais Médicos não teve impacto nos indicadores. Tem vários profissionais da área, inclusive vinculados ao campo da direita, que adoram fazer críticas e detonar o Mais Médicos. Eu não concordo com a questão de não ter impacto nos indicadores, mas da forma como está caminhando vai ter um impacto menor do que o potencial nos indicadores de saúde do país, considerando os R$ 5 bilhões investidos. Dá pra ampliar o impacto se qualificarmos as Equipes de Saúde da Família, o que não está acontecendo.
Dos R$ 5 bi, pode manter R$ 3 bi para garantir os médicos nas áreas vulneráveis, onde precisa, e pegar R$ 2 bi desse mesmo orçamento e colocar no processo de qualificação. É possível melhorar o programa com o mesmo orçamento.
M.T.P.: É possível construir uma perspectiva de longo prazo. Tem 14 mil MFCs no Brasil e 53, 54 mil Equipes de Saúde da Família. Se for pensar em ter médicos de família em todas essas equipes, vai precisar de uma transição a longo prazo. Pode-se estruturar uma proposta a ser consolidada nos próximos 10 anos. Com o aumento gradual de investimento, pois é claro que um pico de concurso público é mais caro do que um pico de bolsista. É um dos eixos centrais. Optou-se por um caminho fácil, mais barato, em detrimento de um caminho mais estruturado. Mas se pensar numa transição de médio prazo, é possível que o Estado se organize. Houve opções políticas, inclusive no campo da saúde pública, que estruturaram políticas públicas, por exemplo, para garantia do piso salarial de Agentes Comunitários de Saúde (ACS), que foram muito mais disruptivas em termos orçamentários.
A PEC que instituiu o financiamento federal de dois salários mínimos para os ACS faz com que o governo federal gaste, anualmente, mais de R$ 12 bilhões de reais para os nossos colegas. Uma ação superinteressante de garantir salários dignos, estabilidade, um piso salarial mais justo. Talvez mereça até uma progressão. E os aumentos salariais são acima da inflação, considerando que o salário mínimo, atualmente, é aumentado no Brasil acima da inflação anual.
Se pensarmos neste valor, conseguiríamos estruturar uma política de carreira para praticamente 100% das Equipes de Saúde da Família no Brasil em um intervalo de 10 anos. Isso faria com que os médicos viessem para a APS, porque está difícil o mercado de trabalho. Para nós, formados há mais tempo, é mais estável. Mas para quem é recém-formado, com os MFCs que estão terminando a residência, estudantes sem emprego, como aqui no sertão de Pernambuco, é mais difícil. Vai ficar dando plantão, umas coisas muito ruins, substituindo profissionais de folga ou afastados. Na APS, não tem trabalho. E quem termina residência em MFC vai entrar no Mais Médicos e trabalhar com bolsa referente a uma formação que já possui?
Como dito no início, o programa é de emergência, de provimento contra vulnerabilidades específicas. Portanto, avançar para a criação da carreira é uma questão de garantia da própria Atenção Primária em Saúde? Em última instância, deveríamos falar de um financiamento adequado da APS para que um programa como o Mais Médicos se torne uma necessidade superada?
R.H.: É necessário o plano de carreira para todo mundo. Mesmo em países com sistemas de saúde bem desenvolvidos, investimentos pesados, como Austrália ou Inglaterra, se mantêm programas de provimento. Para algumas áreas de difícil acesso e integração, é necessário. Aqui, foi um programa elaborado há mais de 10 anos no contexto de toda aquela crítica à vinda dos médicos estrangeiros. Mas países com grande extensão territorial, como o Canadá, adotam a lógica de ter médicos que fiquem um tempo mais curto atuando em áreas remotas. Contextos específicos podem exigir programas de provimento.
A questão é que passados mais de dez anos – claro que houve um intervalo importante nos governos de Temer e Bolsonaro – não construímos algo que possa superar o Mais Médicos. Talvez essa ampliação tenha sido importante para consolidar a APS no Brasil. Com a estabilização da política, é hora de construir um processo de transição nos pontos que nós estamos determinando aqui. Vai precisar de políticas de provimento em locais como a Ilha de Marajó, interiores do país, algumas regiões do Nordeste, ou regiões mais inóspitas… Mas 40% dos médicos de Santa Catarina, 30% de Florianópolis, 30% de Brasília? Isso não é provimento emergencial, tem uma outra coisa acontecendo.
Cito o exemplo de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, onde moro. Um município que tem duas faculdades de medicina, dois programas de residência de MFC e é classificado com de muito baixa vulnerabilidade. A cidade tem 25 ESF e 18 médicos do Mais Médicos. É uma coisa absurda. Não tem nenhum motivo. Não tem sustentação tamanha quantidade de profissionais vinculados ao Mais Médicos num local onde se forma 180 médicos e 10 residências por ano.
A troca do ministério da Saúde, com a entrada de Alexandre Padilha, que teve participação importante na construção da primeira versão do programa, quando era ministro, pode gerar essas mudanças aqui debatidas?
M.T.P.: A Nísia Trindade fez uma boa gestão no Ministério da Saúde, é uma figura importante do campo da Saúde Pública, presidente da Fiocruz, teve um papel importante na pandemia e agora na reconstrução do Ministério da Saúde. Foi uma grande gestora. Não há uma grande mudança de rota com a chegada do Padilha, uma figura de uma trajetória na Saúde Pública identificada com os estudos progressistas, da reforma sanitária. É uma gestão de continuidade.
O Padilha foi um bom ministro da Saúde no governo Dilma, trouxe políticas importantes. Acho que pode ter uma gestão exitosa. Temos esperança de que possa haver alguma abertura para um diálogo maior em relação a questões como essas. Desejamos que sua gestão traga outras perspectivas para o campo da Atenção Primária em Saúde, que possa abrir um canal de diálogo com os médicos de Família e Comunidade, para que possamos pensar na transição do Mais Médicos e uma estruturação de carreira para os trabalhadores da atenção primária.
R.H.: Ele tem um conhecimento total do funcionamento do programa. Também considero que todo arranjo do ministério é uma mudança prática, não há ruptura em questões críticas. Já vínhamos em tentativas de diálogo entre nossas entidades com o ministério, sem êxito, mesmo tendo uma ótima relação. Mas, talvez, como toda mudança, possa ser uma nova oportunidade.
Aparentemente, um dos grandes desafios de Padilha será lidar com a questão das emendas e das pressões que bancadas parlamentares têm exercido para acessar esse grande manancial de dinheiro destinado à saúde.
R.H.: Do ponto de vista macro, tenho uma leitura de que o Ministério da Saúde é, digamos assim, refém dos municípios. Há uma atuação muito semelhante à lógica do Centrão no Congresso Nacional, em relação às políticas do ministério.
Padilha é um quadro técnico. Talvez não tenha alguém mais capacitado para estar à frente da pasta. Mas devemos observar a seguinte contradição: deixamos de evoluir em discussões de ter no ministério a execução da função primordial de indução de mudanças na política da atenção básica para o ideal da autonomia municipal. Porque a Saúde ficou refém de discussões dos municípios, que por sua vez estão muito mais interessados no imediato do que na qualificação do processo de trabalho e organizações de pautas importantes para dentro das Unidades Básicas de Saúde. Eles estão interessados em reforma, construção de unidades, aquisição de equipamentos e ter médicos.
Há uma crise, que se refere à gestão interfederativa do SUS, que passa pela crise da representatividade dos municípios, reféns da lógica das emendas parlamentares e seus acertos político-eleitorais. E o ministério ficou repreendido. Eu não sei até que ponto isso vai se aprofundar ou se haverá habilidade política para enfrentar.
A tripartição do SUS foi enfraquecida?
M.T.P.: Tem a influência das emendas, mas tem uma coisa da própria lógica do governo anterior de fortalecer o Centrão, num contexto onde, para se preservar politicamente, Bolsonaro abdicou de certas prerrogativas de liderança política do Poder Executivo e as transferiu ao Legislativo. Isso acabou fortalecendo a gestão dos próprios municípios e dos parlamentares aliados, que agora não querem abrir mão desse espaço ganho. Perdeu-se a lógica da política indutora de uma construção e elaboração estruturante.
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