Lei de Genéricos, 25 anos: foi o suficiente?

Medida foi decisiva para garantir remédios mais baratos para a população e o SUS – mas ainda importamos 95% dos IFAs dos remédios nacionais, o que limita maiores avanços. Mais ousadia na luta contra as patentes pode impulsionar novos ganhos com a Lei

Foto: Agência Brasil
.

Há vinte e cinco anos, foi promulgada uma das peças legislativas de maior consequências para a política de Saúde do país: a Lei nº 9787/1999, ou Lei dos Genéricos. De lá para cá, graças à possibilidade de se produzir medicamentos livres de patentes, comprar remédios se tornou bastante menos caro para a população. Além disso, floresceu nas últimas décadas um parque industrial de fabricação de genéricos no Brasil, e eles já representam 37% do mercado nacional, de acordo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

Porém, apesar do impulso dado pela Lei à produção nacional de medicamentos mais baratos, o déficit na balança comercial da Saúde só cresceu nos últimos anos. Em 2023, ele chegou a 20 bilhões de dólares, o quádruplo do que era em 2000. Além disso, só no setor farmacêutico – onde se enquadra a produção de remédios –, esse déficit chega a US$9,8 bilhões, segundo dados compilados pela Associação Brasileira da Indústria de Insumos Farmacêuticos (Abiquifi).

Outra Saúde conversou com a química Eloan Pinheiro, ex-diretora executiva do Instituto de Tecnologia em Fármacos da Fiocruz (Farmanguinhos), e o pesquisador da UFRJ Reinaldo Guimarães, vice-presidente da Associação Brasileiro de Saúde Coletiva (Abrasco), para trazer um balanço dos vinte e cinco anos da Lei. Ambos especialistas em política de medicamentos, eles apresentaram o contexto de sua aprovação nos difíceis anos 1990, seus efeitos e também seus limites.

Pinheiro e Guimarães indicam que não é possível apontar uma só razão para o quadro contraditório em relação à balança comercial da Saúde – mas, entre os principais motivos, há o fato de que, mesmo com a Lei dos Genéricos, estamos produzindo cada vez menos os Insumos Farmacêuticos Ativos (IFAs) necessários para os remédios fabricados em solo nacional. Contudo, eles sinalizam caminhos para mudar essa situação, garantindo maior soberania sanitária para o país e medicamentos genéricos mais baratos para a população.

Uma lei contra um desastre

Dados detalhados do déficit da balança comercial do setor farmacêutico em 2023. Slide: ABIQUIFI

Aprovada em 1999, a Lei de Genéricos não pode ser pensada fora do contexto daquela década, dizem os estudiosos. “O macroprocesso foi a construção do neoliberalismo resultante da unipolaridade alcançada depois da extinção da União Soviética. A expressão brasileira disso está em dois acontecimentos: a abertura comercial desenfreada de Collor e do primeiro FHC e a Lei de Patentes”, enumera Reinaldo Guimarães.

Sobre essa lei aprovada em 1996, o intelectual e então senador Darcy Ribeiro escreveu à época que ela “entrega nosso futuro de mãos atadas à exploração primeiro-mundista”, por reconhecer a validade da propriedade intelectual sobre produtos farmacêuticos e facilitar excessivamente a concessão de patentes, especialmente a empresas estrangeiras. Enquanto parlamentar, Darcy propôs que metade dos royalties adquiridos pelas empresas devido à nova lei fossem destinados a um Fundo Brasileiro de Desenvolvimento Tecnológico – mas sua emenda foi derrotada no Congresso Nacional.

Gerou-se um cenário em que, hoje, cerca de 85% das patentes depositadas no país — entre elas, as de remédios — não estão nas mãos de brasileiros. Especificamente no ramo dos medicamentos, as empresas estrangeiras possuem dez vezes mais patentes que os laboratórios nacionais, segundo dados da Plataforma de Dados de Patenteamento do Setor Farmacêutico.

“No plano dos farmoquímicos, [a Lei de Patentes significou] um completo desastre para as empresas nacionais, a maioria das quais desapareceu”, lamenta Guimarães. Essas empresas eram beneficiadas pela legislação anteriormente vigente, o Código de Propriedade Industrial, que não reconhecia patentes farmacêuticas, de química fina ou de microorganismos. Sua viabilidade econômica estava diretamente associada a não pagar royalties para as multinacionais pela fabricação de produtos essenciais à saúde.

Para Guimarães, o desastre foi “mitigado” com três medidas que vieram no fim dos anos 1990 e no início da década seguinte: a aprovação da Lei dos Genéricos, a criação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e, em 2003, a inauguração de uma política de restrição ao preço de alguns fármacos por meio da criação da Câmara de Controle de Preços de Medicamentos (CMED).

“A despeito da resistência generalizada da corporação médica, a política para os genéricos foi um passo decisivo para o aumento do acesso a medicamentos no Brasil”, avalia o pesquisador da UFRJ. Eloan Pinheiro explica que isso se deu porque “ela favoreceu a diminuição dos preços, ao confrontar os valores exorbitantes dos medicamentos patenteados”. Além disso, complementa Reinaldo, a partir dela ressurgiu uma “indústria farmacêutica de capital nacional entre nós” — contudo, sem a ampla produção de IFAs que caracterizou o período anterior.

Os ganhos e as lacunas

Dados mais concretos sobre os avanços comentados por Reinaldo e Eloan foram recentemente divulgados em uma nota do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI) acerca dos 25 anos da Lei dos Genéricos. Se o texto da legislação prevê que os remédios genéricos devem obrigatoriamente ser pelo menos 35% mais baratos que os medicamentos de marca, na prática, eles chegam a ser 60% mais em conta, devido à ampla concorrência.

Hoje, 35,7% dos fármacos comercializados no país são genéricos. Com isso, estimativas apontam que a população economizou algo em torno de R$300 bilhões com a compra de medicamentos desde a introdução da Lei de Genéricos. “Isso representa uma significativa redução de custos para o SUS e para o povo”, sintetiza o GTPI.

O que explica, portanto, que esse barateamento para o consumidor final – a grande massa da população – tenha acontecido de forma paralela ao crescimento explosivo do déficit da balança comercial da saúde? Para entender essa aparente contradição, é preciso voltar à destruição da indústria brasileira de IFAs pela Lei de Patentes.

Eloan, que é química de profissão, trabalhou em fábricas do setor privado nos anos 1970. “Eu lembro que as multinacionais fabricavam aqui no Brasil as matérias-primas de todos os seus carros-chefe. Naquela época, nós produzíamos amoxicilina, hoje se compra no mercado internacional”, ela conta. Esta não é uma impressão anedótica: segundo o presidente da Abiquifi, Norberto Honorato Prestes Junior, o país produz hoje apenas 5% dos IFAs que usa para fabricar medicamentos, enquanto há 30 anos essa cifra era de 50%.

“Eu imaginava, na época, que a política de genéricos ia estimular a produção industrial de insumos no país, aumentando a nossa competência tecnológica e talvez até acarretando a possibilidade de mais atividades inventivas no país. Mas as nossas empresas importam os insumos farmacêuticos ativos e mandam dividendos para o mercado internacional, seja ele asiático – China e Índia são os maiores produtores de IFAs –, europeu ou americano”, lamenta a química.

Ataque dos monopólios

Apesar de também serem países em desenvolvimento, China e Índia são a primeira e a terceira maiores fontes de importação de IFAs pelo Brasil. Gráfico: ABIQUIFI

Se o Brasil mergulhou de cabeça nos princípios neoliberais nos 1990, com consequências funestas para nossa produção de IFAs, houve países do Sul Global que tomaram outro caminho. “Nesse pano de fundo, a China e a Índia iam se tornando potências no desenvolvimento, fabricação e exportação de princípios ativos”, revela Reinaldo Guimarães. 

Outra Saúde já revelou em série especial (1, 2, 3) a história da indústria farmacêutica da Índia, conhecida como “farmácia do Terceiro Mundo” – e recentemente contou que seu vizinho Bangladesh, através do endurecimento de sua Lei de Patentes e do estímulo à produção de IFAs, pretende seguir a mesma trilha.

Mesmo com os limites que tem nossa política em relação a outros exemplos, os monopólios farmacêuticos internacionais rejeitam os aspectos mais democráticos da Lei de Genéricos brasileira – e quer suprimi-los. Empurrados pelo lobby dessas gigantes do setor, parlamentares têm discutido uma proposta que pode dificultar a produção de medicamentos livres de patentes no país: é a chamada exclusividade de dados.

Hoje, as fabricantes de genéricos não precisam apresentar estudos que demonstrem a atividade desses remédios no corpo humano para que eles recebam registro na Anvisa. Afinal, os efeitos já foram demonstrados pelos dados submetidos pela empresa dona do medicamento de marca (essa sim, obrigada a apresentá-los). A proposta da exclusividade de dados consiste em que os genéricos também devam realizar esses estudos. Caso a medida tenha o aval do Congresso, serão repetidos desnecessariamente testes clínicos – contrariando a Declaração de Helsinki sobre princípios éticos em pesquisa – e se elevará de forma exorbitante os custos para se vender genéricos no país.

“Querem obrigar as empresas a fazer um estudo que é muito caro. Objetivamente, é inibir ainda mais a possibilidade de você ter genéricos, mesmo que a patente já tenha caído”, denuncia Eloan. Em recentes audiências (1, 2) no Senado Federal, representantes do GTPI e de diversos grupos da sociedade civil frisaram a ameaça que essa proposta representa à Saúde Pública do país.

Planos do Ministério

O atual Ministério da Saúde (MS) não tem assistido de forma passiva ao cenário de entraves à produção autônoma de medicamentos a preços acessíveis. À frente da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Inovação e do Complexo Industrial da Saúde (Sectics/MS) na pasta, encontra-se o economista Carlos Grabois Gadelha, uma referência na discussão acadêmica e política sobre o tema, que, como ele mesmo frisa, transcende uma mera questão industrial e representa uma batalha fundamental pelo direito à saúde e à vida. Enquanto pesquisador da Fiocruz, Gadelha destacou diversas vezes (1, 2) sua preocupação com o problema do déficit na balança comercial da saúde.

Desde o início da gestão de Nísia Trindade no MS, diversas iniciativas já foram anunciadas. O Grupo Executivo do Complexo Econômico Industrial da Saúde (GECEIS) foi recriado em abril de 2023, a Estratégia Nacional de Desenvolvimento do Complexo Econômico Industrial da Saúde foi lançada em setembro do mesmo ano e boa parte dos investimentos do PAC Saúde serão voltados para a área.

Essas ações se concentram principalmente na ampliação a longo prazo da infraestrutura do parque fabril do setor farmacêutico brasileiro e, formalmente, a Estratégia Nacional orienta que elas “[envolvam] a reconstrução da capacitação local de fornecimento de insumos farmacêuticos ativos – IFAs”. Concretizando-se esse objetivo, é possível imaginar que a produção autônoma de genéricos consiga ser ainda mais economicamente viável e barata e que o déficit da balança comercial da Saúde seja reduzido.

Contudo, Eloan questiona o fato de que outras frentes que também poderiam fomentar a indústria nacional e baratear os remédios seguem intocadas pela administração federal. “Nesse país de 200 milhões de habitantes que precisam de remédios, temos um governo progressista e uma ministra da Saúde excelente, mas que, não sei por que razão, não atuam mais firmemente em três aspectos: as patentes farmacêuticas, o acompanhamento dos preços internacionais e a reformulação das PDPs”, sintetiza a química carioca.

Nesse mesmo sentido, quando o governo Lula recriou o programa Farmácia Popular, Reinaldo Guimarães escreveu em ensaio para Outra Saúde afirmando que a intocabilidade da Lei de Patentes é um dos “esqueletos no armário” que impede um impulsionamento ainda maior do acesso da população mais pobre a medicamentos baratos ou mesmo gratuitos. Para o pesquisador da UFRJ, essa é “a principal ideia fora do lugar e o esqueleto mais robusto a ser sepultado” na política de medicamentos do Governo Federal.

Caminhos para avançar

Pela via do fortalecimento do complexo econômico-industrial da saúde, o Brasil ainda pode aspirar a condições mais soberanas e autônomas para o fornecimento de medicamentos acessíveis à população, assim como fizeram a China e a Índia. A Lei de Genéricos, por formalizar no país uma alternativa mais barata aos remédios patenteados e ter reconstruído uma indústria farmacêutica nacional, ajuda a dar sustentação para essa opção política, mas não alcançará todo o seu potencial sem mudanças nos três aspectos citados por Eloan.

No âmbito da propriedade intelectual, a química carioca aponta que “tem havido uma concessão muito grande para o pouco caráter inventivo” das patentes depositadas pelas empresas multinacionais, além de caminhos muito abertos para que elas sejam renovadas para além dos vinte anos mínimos exigidos pelo Acordo TRIPS, o tratado da OMC que rege as questões patentárias no mundo. Tanto a Lei de Patentes quanto o processo que avalia os pedidos que chegam ao INPI, ela indica, precisam de mudanças.

Para completar, diz Eloan, “continuamos com uma política de não aplicar novas licenças compulsórias”, mesmo após o país ter se tornado referência mundial com a quebra da patente do efavirenz, importante medicamento no tratamento do HIV, em 2007. Responsável, por um período, pela produção de remédios do que na época se chamava de “coquetel da aids” em Farmanguinhos, ela frisa a importância dos genéricos para essa política pública que salvou milhares de vidas.

Já no aspecto das Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo, a química carioca opina que elas poderiam ser melhor negociadas. As PDPs são acordos entre uma empresa privada (estrangeira ou nacional) e uma instituição pública em que, ao final de um período de produção conjunta, serão repassados os conhecimentos necessários para a fabricação nacional de um determinado produto farmacêutico. “Com essa política que está aí, a PDP demora 10 anos para transferir a tecnologia. Não há necessidade de todo esse tempo, em 5 anos já poderíamos fazer o desenvolvimento”, critica.

Caso o país fosse mais firme na utilização do recurso da licença compulsória e também na criação de uma política de inteligência mais aprofundada sobre os preços dos medicamentos e IFAs no mundo (onde entra o aspecto do acompanhamento de custos), ela argumenta, também seria possível negociar termos mais favoráveis para as PDPs firmadas com farmacêuticas estrangeiras. “Como que um determinado produto custa centavos de dólar no mercado internacional e o Brasil paga 3, 4 dólares mesmo com uma PDP? O governo não pode aceitar essas situações de abusividade econômica”, ela ressalta. Essas situações são particularmente comuns no caso de medicamentos para doenças negligenciadas, como a Hepatite C, diz Eloan.

Vinte cinco anos depois de sua aprovação, a Lei dos Genéricos foi um importante passo na caminhada rumo à autonomia produtiva na Saúde e à garantia do acesso da população aos medicamentos de que precisa. Contudo, o grande déficit comercial representado pela dependência da importação de IFAs sinaliza a necessidade de complementos a essa política.

Ao país, cabe agora a ousadia de tomar os passos mais difíceis, pois mais ousados, que representam as demais medidas essenciais para que o direito à Saúde seja assegurado a todos.

Leia Também: