Hospitais federais do RJ: notas sobre as últimas mudanças

Especialista em direito sanitário, reflete sobre transferência das unidades, que devem ir para a prefeitura do Rio e a outros entes da esfera federal. Que mudanças isso trará para sua gestão? Como afastar os temores de privatização? Que será dos trabalhadores?

Hospital federal da Lagoa. Créditos: AGRJ
.

Novos passos começam a ser dados na tentativa de desatar um nó já antigo: a situação dos hospitais federais do Rio de Janeiro. Ontem (9/10), o jornal RJ2 da TV Globo teve acesso a um documento interno do Grupo Hospitalar Conceição (GHC), empresa pública do Rio Grande do Sul, que já incluiu o Hospital Federal de Bonsucesso em sua rede. Essa é uma das seis unidades em questão. Além dela, há os hospitais federais do Andaraí (HFA), dos Servidores do Estado (HSE), da Lagoa (HFL), de Ipanema (HFI) e o Cardoso Fontes (HFCF).

Começa a acontecer algo que o Globo havia antecipado em matéria de julho: os hospitais serão aos poucos redistribuídos. Quatro deles irão para outras entidades da esfera federal, como Fiocruz, Ebserh e GHC; dois serão transferidos para o município do Rio – o primeiro, do Andaraí, já está nesse processo há alguns meses. O caminho da municipalização é apoiado por quem defende o caráter descentralizado do SUS, previsto na lei que o instituiu. Mas não parece ser essa a principal iniciativa do Ministério da Saúde.

Lenir Santos. Créditos: Idisa

Lenir Santos, especialista em direito sanitário pela USP e presidente do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (Idisa), observa esse movimento. Ela detalha sua análise em uma entrevista que concedeu ao Observatório de Política e Gestão Hospitalar (OPGH) da Fiocruz, que vale a pena ler  na íntegra. Lenir ajuda a compreender que possíveis impactos essas mudanças provocarão.

Os hospitais enfrentam problemas que se prolongam por anos. Entre os principais, a falta de recursos financeiros para restaurar a sua infraestrutura, o que resulta em dezenas de leitos fechados; a pressão político-partidária para a ocupação de cargos diretivos; e a dificuldade de diálogo com os servidores, que veem seu trabalho desvalorizado. Na gestão de Nísia Trindade do MS, eclodiram  crises – como quando a tentativa de centralização de compras na pasta agitou os servidores e uma denúncia acabou derrubando o secretário de Atenção Especializada. Desde então, busca-se uma solução mais definitiva, e a transferência da gestão começou a ser feita.

Lenir vê com preocupação essa saída. Ao invés descentralização, ela implica desconcentração e mantém a maior parte dos hospitais na esfera federal. “Eu entendo que, na prática, esse processo é muito complexo. O município precisa estar preparado para assumir essa responsabilidade. Talvez alguns hospitais devessem ser transferidos para o estado, mas parece que essa possibilidade nem foi considerada. A descentralização da esfera federal para o estado e o município, conforme previsto pela legislação, ainda não foi realizada. Portanto, o problema persiste”, pondera.

Uma das soluções alternativas à que o governo está dando, sugere Lenir, é a criação de consórcios entre os três entes federativos, que funcionariam durante um período de transição. “Acredito que seria uma boa alternativa, já que os três entes — União, estado e município — seriam responsáveis e haveria uma pessoa jurídica distinta. Poderiam começar transferindo os hospitais mais importantes e, gradualmente, conforme o município fosse assumindo essa ou aquela unidade, o consórcio poderia ser reduzido até ser desmanchado”, sugere. 

Lenir se preocupa, nessa transferência de modelos de gestão, com a privatização dos serviços do SUS – e por isso sugere que há alternativas que podem agilizar os processos mantendo-os sob administração estatal. Empresas e fundações públicas podem ser boas soluções, segundo ela. “A realidade que temos agora é que a parceria com o setor privado não é mais uma exceção, mas sim uma regra. Essa inversão vai contra a ideia de que o setor privado deveria complementar menos de 50% dos serviços, como imaginávamos inicialmente. Atualmente, 85% dos serviços do SUS são prestados por entidades privadas. Isso inclui todos os regimes, como as parcerias com as Organizações Sociais (OS), a contratação de leitos, serviços de hemodiálise, entre outros pacotes que são terceirizados, ou seja, que não estão diretamente sob a gestão do poder público”, reflete.

A proposta de criação de consórcios, que garantiria uma transição mais suave, tem sido apontada como uma maneira de evitar que a gestão dos hospitais federais caia nas mãos de entidades privadas. Segundo Lenir, esses arranjos poderiam oferecer a flexibilidade necessária para reestruturar os serviços, ao mesmo tempo em que manteriam os princípios do SUS, como a universalidade e a integralidade, em vigor. “Precisamos de mais agilidade, mas sem abrir mão do controle público”, afirmou.

Outro ponto central da entrevista foi a situação dos trabalhadores dos hospitais. Lenir explica que, em processos de transição como esse, os funcionários federais são cedidos, mantendo seus direitos, mas novos contratados seriam regidos pelas regras das novas entidades gestoras. Isso pode gerar incertezas, especialmente sobre a carreira dos servidores cedidos, alerta. Lenir também comenta sobre a influência política na gestão hospitalar, que muitas vezes compromete a eficiência das unidades. Para ela, é fundamental reduzir o número de cargos de confiança e aumentar a presença de gestores técnicos, uma medida que pode garantir mais estabilidade na administração das unidades.

Leia Também: