Hora de outra política econômica para o SUS
Políticas de austeridade já se provaram falhas e agora há espaço para repensar a racionalidade neoliberal na saúde. A economista Mariana Alves Melo defende: Brasil pode dar um passo no sentido de elevar o gasto público no setor para 6% do PIB
Publicado 14/07/2025 às 13:02 - Atualizado 14/07/2025 às 17:46
Em mais uma entrevista da série SUS 35 anos, o Outra Saúde conversou com Mariana Alves Melo, economista da saúde, que acabou de apresentar tese de doutorado na Faculdade de Saúde Pública da USP na qual analisa o Previne Brasil, política de Bolsonaro de financiamento da Atenção Primária à Saúde.
Neste vídeo, Mariana Melo falou de saúde, mas também de política e economia. Isso porque o SUS e qualquer outra política de bem-estar social são diretamente dependentes de uma conjuntura que desde sua implementação vive sob o espectro da “austeridade” fiscal, radicalizada no Brasil nos últimos anos.
“Devemos evitar o fetiche da eficiência. Sem recursos não é possível aprimorar a gestão. Isso abre caminho para adoção de práticas gerencialistas e instrumentos que intensificam a apropriação privada das políticas e reduzem o SUS a um sistema cada vez mais operacional”, avaliou.
Na conversa, Mariana reconhece a conquista histórica do movimento sanitarista brasileiro, mas destaca que o caráter capitalista do Estado brasileiro, em cujo funcionamento cotidiano se adota uma racionalidade neoliberal, sempre tensionará o direito à saúde tal como instituído na Constituição.
Isso significa que se deve lutar pelo SUS também por fora da institucionalidade, daí a necessidade de uma abordagem política e econômica do SUS, do direito à saúde e da própria natureza do Estado.
“É possível reverter a leitura da população sobre a atuação do Estado, no caso, como uma forma da própria lógica capitalista de acumulação. O Estado não é o guardião da igualdade de direitos ou um poder neutro. O direito universal à saúde sempre esteve em disputa”, formulou.
Em sua tese de doutorado, Mariana Melo analisa como Previne Brasil não só desfinanciou o SUS como de certa forma tentou reimplantar o modelo de saúde anterior à redemocratização. Ao centrar o financiamento da Atenção Primária no atendimento médico, desmantelou a Estratégia da Saúde da Família, que atua nos territórios e presta atendimentos para além deste profissional específico.
Tal política corrobora sua noção de um Estado a serviço da acumulação de capital, uma vez que o modelo retira recursos da ponta e os deixa reservados para objetivos alheios. Talvez o maior deles seja simbolizado na pujante financeirização da economia, em especial através do crescente pagamento de juros da dívida pública.
“O Previne Brasil priorizou o cuidado médico centrado, que impôs perdas a mais de 60% dos 5.570 municípios, além de enfraquecer o nosso modelo prioritário de cuidado, que é a Estratégia de Saúde da Família”, resumiu Melo.
De forma concomitante, este arranjo tornou tais cidades realmente dependentes do financiamento via emendas parlamentares, que chegaram a consumir 20% das despesas relativas ao setor. Tema sensível de disputas políticas, as emendas se tornaram objeto central na tensão entre poder executivo e legislativo.
“Isso se autoalimenta porque o território usa o recurso para manter as redes de atenção através dessa relação político-partidária, uma lógica que vem produzindo iniquidades, como a gente já observou em inúmeros estudos”, pontuou Mariana Melo.
Com a virada momentânea da opinião pública em favor do governo Lula, produzida pela sanha do Congresso em amarrar o governo por meio do controle cada vez mais sufocante do orçamento, abriu-se oportunidade para uma ação política mais ousada.
Somado o contexto interno ao recente embate do governo dos EUA, em razão da taxação de 50% de nossas exportações anunciada pelo presidente Donald Trump, parece ter chegado a hora de se aplicar tal ousadia aos debates econômicos, como defende a entrevistada, também membro da Associação Brasileira de Economia da Saúde (ABrES).
“Publicamos em 2022 um documento com o objetivo de avançar na elevação do gasto público para 6% do PIB. Elaboramos marcos regulatórios que protegem o sistema das próprias oscilações da economia, pautado por variáveis que reflitam a dinâmica da saúde, especialmente o crescimento da população mais idosa, e que atacasse diretamente o crescimento do gasto privado em frente ao gasto público”.
A entrevista com Mariana Alves Melo integra a série SUS 35 anos. Nos dias 18 e 19 de setembro, o Outra Saúde promoverá o Seminário SUS 35 anos em São Paulo, com inscrições abertas. O evento toma como referência a lei 8.080, de 1990, que estabeleceu as bases do Sistema Único de Saúde, e será realizado em parceria com a Fundação Escola de Sociologia e Política, o Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de SP, o Instituto Walter Leser e a Fundacentro.
Créditos da imagem: Arte Giovana Abreu/ Intercept Brasil
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