HIV: A trágica mas previsível crise mundial de recursos
Resposta global à aids passou por várias “ondas”, mas sempre dependeu de verba dos EUA – pública ou, cada vez mais, de fundações e empresas privadas. Após cortes de Trump, o “tsunami”: milhões podem perder acesso a tratamento, alerta relatório inédito da Abia
Publicado 24/06/2025 às 06:31 - Atualizado 24/06/2025 às 09:13

Por Jane Galvão, Veriano Terto Jr e Richard Parker, para a coluna Saúde não é mercadoria
O título de uma publicação de 2014 do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS, sigla em inglês) — The urgency of now: AIDS at a crossroads (A urgência do agora: a AIDS frente a uma encruzilhada) — bem ilustra o momento que atravessam a pandemia de HIV e o cenário global da saúde pública. Ele tornou-se ainda mais crítico a partir do primeiro semestre de 2025, com a instalação do governo de Donald Trump nos Estados Unidos (EUA). Trump assinou várias ordens executivas, que tiveram como consequência o cancelamento de uma boa parte do apoio que os Estados Unidos — o maior financiador da resposta global à pandemia de HIV — destinava a diversos países e entidades, como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o UNAIDS. Ainda estão sendo avaliadas as consequências plenas das ordens executivas, mas há um consenso de que serão catastróficas para o futuro do enfrentamento da pandemia de HIV e de outros agravos à saúde.
Dada esta situação caótica, vale a pena refletir sobre o “edifício” – para usar uma metáfora apropriada para a mentalidade do magnata imobiliário transformado no homem mais poderoso do mundo – que Trump decidiu, aparentemente sem preocupações sobre as consequências, destruir. Como foi que esse “edifício” foi construído? Por quem e para quem? E o que restará dos escombros que surgirão como consequência dessas decisões?
Pelo menos alguns elementos que podem ajudar a oferecer respostas estão presentes em um texto que recentemente escrevemos e será lançado pela Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA) em breve: Uma Análise Crítica das Tendências de Financiamento Internacional para Atividades em HIV e AIDS, 1981-2022. A partir do próximo dia 3 de julho, a publicação estará disponível no site da ABIA para download.
Nossa análise — que tem como foco a relevância do contexto internacional para o enfrentamento da AIDS no Brasil e que sumarizamos neste artigo — está dividida em cinco períodos, abarcando os anos de 1981 até 2022. Destacamos, em cada período, eventos, nacionais e internacionais, que avaliamos como marcantes; exemplos de financiamentos; e os principais pontos que definem as mudanças de prioridades dos doadores.
A pesquisa utilizou fontes variadas que buscaram consolidar e examinar os financiamentos destinados à AIDS e inclui análises acadêmicas, documentos publicados por instituições doadoras, e materiais de organizações como o Funders Concerned about AIDS (FCAA), a KFF, e o UNAIDS.
Um conceito que usamos no texto — e que nos ajudou a estruturar os períodos descritos abaixo — é o que autores, como Richard Parker, definem como as diferentes “ondas” que marcam a resposta à pandemia de HIV, sendo que Parker distingue cinco delas. Mas o que não poderíamos imaginar é que um “tsunami” seria gerado pelas medidas anunciadas por Trump logo após a sua posse.
1981-1990: Os primeiros anos da pandemia de HIV
Nessa época, o apoio internacional — tal como o apoio de fontes nacionais — ainda dependia, em grande medida, menos de políticas formais do que de ações baseadas na solidariedade de pessoas-chave nas comunidades diretamente afetadas pelo HIV. Um dos principais desafios para estes atores durante os últimos anos da década de 1980 foi o de firmar políticas institucionais capazes de garantir a continuidade programática do apoio — um objetivo importante que só seria realizado, de forma mais consistente, no próximo período. Mas esse foi o período em que doadores privados como fundações internacionais (como, por exemplo no Brasil, a Fundação Ford) e apoio governamental internacional para desenvolvimento (como, por exemplo, a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional, USAID, na sigla em inglês) iniciaram os primeiros apoios internacionais para o enfrentamento do HIV nos países do Sul Global.
1991-2000: Novas prioridades, novas iniciativas
Esse foi um período em que o compromisso para destinar mais recursos financeiros para a pandemia cresceu significativamente, tornando a resposta ao HIV uma questão importante no campo do desenvolvimento internacional. Inúmeras fundações privadas entraram no campo da AIDS (e atuaram no Brasil ao longo deste período, complementando o pioneirismo da Fundação Ford), e agências bilaterais como a USAID expandiram as suas contribuições. As mais importantes agências multilaterais de financiamento, a exemplo do Banco Mundial, entraram com peso no campo, com consequências decisivas para a estruturação do enfrentamento da epidemia de HIV no Brasil.
2001-2010: Expansão das respostas globais
O aumento significativo dos recursos disponíveis para o enfrentamento da pandemia de HIV no período anterior pode ser visto como precursor do aumento ainda mais expressivo que vai acontecer a partir de 2001, com a “ampliação” (“scale-up”) da resposta global. Esse período foi marcado por três tendências:
1. A expansão do campo da “saúde global”, tendo a resposta à pandemia de HIV como seu grande motor;
2. Uma intensificação da lógica do capitalismo neoliberal de investimento no campo, com a criação de novas instituições e iniciativas (tanto públicas quanto privadas) e modelos inovadores de grandes iniciativas de saúde global, além de um novo conceito/estrutura híbrido de “parcerias públicas-privadas” (PPPs), como no caso do Fundo Global de Luta contra a AIDS, Tuberculose e Malária;
3. O surgimento de novos atores no campo da filantropia privada, buscando novos modos de atuar para garantir maior impacto, com mais ênfase nos princípios de setor privado/comercial e uma nova modalidade de filantrocapitalismo, como por exemplo, a Fundação Bill & Melinda Gates. Até o final dos anos 2000, o Banco Mundial e a Fundação Ford tinham perdido a influência e protagonismo no enfrentamento da pandemia de HIV, e nos anos 2010 estavam planejando encerrar as suas ações de maior destaque. O “novo mundo” da saúde global tinha definitivamente chegado, e as suas principais tendências ficariam mais claras na próxima fase, que apresentamos a seguir.
2011-2019: O fim da AIDS?
O “fim da AIDS” é um conceito que marca esse período. O que havia começado uma década antes com a ênfase em “parcerias público-privadas” assumiu uma proeminência ainda maior ao longo da década de 2010, com um foco mais amplo no que estava sendo descrito como “financiamento misto” (blended financing), vinculando o investimento público ao investimento privado para desenvolvimento internacional. Mas, talvez porque o establishment da AIDS já tivesse declarado vitória na luta contra a pandemia, essas novas abordagens pareciam contornar ou ignorar o financiamento para HIV e AIDS, sendo priorizado o que era percebido como novas emergências que passaram a ter prioridade, como a crise climática, bem como para outras emergências globais de saúde no que que poderia ser visto como um anúncio das mudanças que viriam a acontecer na última fase, que mencionamos abaixo. Esse período termina com a notificação de casos de pneumonia, causada por um novo coronavírus, no que viria a ser a pandemia de COVID-19.
2020-2022: Uma nova pandemia, crescimento das desigualdades, e uma resposta em perigo
Trata-se de um período marcado por profundas mudanças e crises (no que vem sendo chamado polycrisis, multiple crises, ou overlapping crises), devido à interconexão de catástrofes, conflitos e crises humanitárias com agravos à saúde. Uma época que será lembrada pela pandemia de COVID-19.
Esse é um período em que o montante total de financiamento se tornou altamente concentrado, com 74% dos recursos do apoio de governos doadores para desenvolvimento sendo fornecidos pelo governo dos EUA em 2022. Também ficou mais dependente do filantrocapitalismo, com destaque para a indústria farmacêutica: com 65% dos recursos da filantropia privada em 2022 sendo doados por somente três fundações, ambas com sedes nos EUA: a Fundação Bill & Melinda Gates (32%), a Fundação Gilead (26%), e ViiV Healthcare (7%). Somam-se a esse ponto a geopolítica global, a emergência de novas crises de saúde (como a COVID-19 e a real possibilidade de uma nova pandemia) e a crise climática, que se tornou o principal foco da preocupação política global.
Conclusão
Os pontos para os quais chamamos a atenção ao analisar cada um dos cinco períodos, sobretudo o período final (2020-2022), ficam ainda mais prementes após a reeleição de Trump. As medidas anunciadas pela administração Trump estão afetando a ciência e a saúde pública e criando as condições ideais para o que chamamos, no quinto período, de “tempestade perfeita”. Tais medidas vão transformar as “ondas” em um “tsunami”, levando a perdas irreparáveis do que foi conseguido, com muito esforço, ao longo de mais de quatro décadas de enfrentamento da pandemia de HIV, tanto local quanto globalmente, pela comunidade de ativistas — incluindo as pessoas vivendo com HIV e AIDS — pesquisadores, governos, agências de saúde global, e doadores.
Não temos dúvida que os cortes radicais de recursos dos EUA terão consequências para o futuro da resposta global à AIDS. A consequência mais radical, e mais cruel, será o fim do acesso ao tratamento antirretroviral para milhões de pessoas nos países mais pobres do mundo e um aumento assustador de mortes evitáveis. Sem a USAID e o Plano de Emergência do Presidente dos Estados Unidos para o Alívio da AIDS (PEPFAR, sigla em inglês) e com a capacidade reduzida dos outros países doadores (forçados pelas políticas americanas de concentrar os seus recursos em defesa e outras finalidades semelhantes), é possível esperar uma redução drástica no apoio bilateral para outros elementos da resposta global à pandemia (prevenção, vigilância etc.). Já estamos vendo a desestruturação da arquitetura necessário para enfrentá-la: por exemplo, a reestruturação do UNAIDS, com uma redução de 680 para 280 funcionários, e outros processos ainda menos definidos, mas provavelmente semelhantes, no Fundo Global, na Unitaid e em outras agências chaves para a resposta global ao HIV.
As prováveis consequências imediatas destas mudanças para o Brasil podem ser menos drásticas pois o Brasil depende muito menos de recursos internacionais e tem mais capacidade de manter os elementos do seu programa nacional de AIDS. Aqui destacamos o modelo de apoio que beneficiou o Brasil — como os empréstimos do Banco Mundial, que foram reduzidos gradativamente ao longo de décadas antes de serem finalizados.
Mas seria ingênuo pensar que a desestruturação da resposta em nível global não será sentida no Brasil. Acima de tudo, esta desestruturação pode aumentar ainda mais o poder e a ganância da indústria farmacêutica internacional e reduzir a nossa capacidade de resistir a outros danos de um sistema de saúde global cada vez mais entregue às piores tendências do sistema capitalista. Desde meados dos anos 2000, as diversas administrações do governo federal brasileiro têm mostrado pouca vontade de defender o Sistema Único de Saúde (SUS) contra tais ameaças.
A perspectiva histórica que nosso estudo oferece sobre os modelos de financiamento e apoio internacional sugere que estas pressões podem aumentar significativamente no futuro. Por último, destacamos que nossa análise busca contribuir para o melhor entendimento do financiamento não somente para a sociedade civil, mas também visa chamar a atenção sobre a importância da resposta intersetorial aos diferentes agravos à saúde pública, como a AIDS.
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