Governo pede arrego à China e aos “globalistas”

Diante das mortes e da perda de popularidade, ministério implora por vacinas a quem detratou. Mas Brasil mantém aliança com Big Pharma, que impede produção ampla de imunizantes. E mais: lockdown funciona em Araraquara

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PEDINDO FAVORES

O Ministério da Saúde precisou passar por cima de todas as besteiras que Jair Bolsonaro já falou sobre as “vachinas” e bater à porta do país asiático pedindo ajuda. O secretário-executivo da pasta, Elcio Franco, enviou à embaixada chinesa uma carta solicitando 30 milhões de doses do imunizante da Sinopharm, de preferência ainda neste semestre, com possibilidade de compra de mais ao longo do ano.

“A principal estratégia brasileira para conter a pandemia e, em particular, essa variante P.1 é intensificar a vacinação. (…) A campanha nacional de imunização, contudo, corre risco de ser interrompida por falta de doses, dada a escassez da oferta internacional”, diz ele. Não chamaríamos exatamente de “principal estratégia”, já que o plano é todo furado e, ainda por cima, não há nenhuma outra além dessa “principal”. 

A vacina da Sinopharm ainda não tem dados de fase 3 publicados, mas um comunicado à imprensa do fim do mês passado relatou uma eficácia global de 72,51%. A segurança foi demonstrada na fase 2. Seu uso foi autorizado na China, Emirados Árabes Unidos, Iraque, Argentina e Peru, entre outros. 

Em paralelo, o general Eduardo Pazuello se reuniu com representantes da GAVI Alliance (que lidera o consórcio Covax Facility junto com a OMS) para pedir “atenção” ao Brasil na distribuição dos imunizantes. Vários países de média e até alta renda entraram no consórcio, mas ficou claro que, num primeiro momento, a iniciativa deveria priorizar o envio de vacinas para as nações mais pobres. O presidente da aliança, José Manuel Barroso, disse que fará “o que for possível” para atender ao pedido, mas não deu detalhes. Pelo acordo com a Covax, o Brasil vai ter direito a 42,5 milhões de doses ao todo, mas só 2,9 milhões devem chegar este mês, e mais 6,1 milhões em abril.

Os governadores do Nordeste também pretendem conversar com a OMS para ver se antecipam as entregas da Covax, diz a colunista da Folha Monica Bergamo. Ainda de acordo com ela, esses gestores querem pedir aos Estados Unidos que liberem 10 milhões de doses da vacina de Oxford/AstraZeneca que estariam estocadas no país (uma informação ainda não confirmada). Bergamo escreve que “as doses não estariam sendo ainda aplicadas porque os EUA ainda não teriam treinado profissionais para aplicar especificamente a vacina de Oxford”, mas na verdade esse imunizante ainda não foi autorizado pela FDA.

Enfim, pode ser que os governadores tenham sorte, mas Joe Biden já avisou recentemente que não mandará vacinas para ninguém antes de ter coberto toda a sua população.

SEM PERSPECTIVAS

Pazuello e Bolsonaro têm mil motivos para atirar para todos os lados: já está claro que, como o Brasil escolheu não fazer nada para deter o vírus, a única coisa capaz de acabar com o caos (permitindo alguma normalidade econômica e, quiçá, resgatando um pouco a popularidade do presidente) é vacinar a população muito rapidamente. O governo Bolsonaro não foi o único a deixar toda a salvação por conta dos imunizantes, só que até nisso errou. Donald Trump, seu ídolo negacionista, também fez de tudo para encrencar com as medidas de prevenção, mas pelo menos investiu rios de dinheiro em vacina. 

Os presidentes do Senado e da Câmara, Rodrigo Pacheco (DEM-MG) e Arthur Lira (PP-AL), cobraram que Pazuello informe em 24 horas sobre o calendário de vacinação – que, como temos visto, está mais bagunçado do que nunca, com mudanças quase diárias no cronograma. Do jeito que as previsões estão, com cerca de 25 milhões de doses em março, este mês só vai haver vacina suficiente para 15% das pessoas nos grupos prioritários tomarem as duas doses. 

O NÓ MUNDIAL

Por mais responsabilidade que o governo Bolsonaro tenha na lenta vacinação brasileira – não ter feito antecipadamente tantos acordos bilaterais quanto poderia foi um problema gravíssimo –, a escassez mundial é mesmo verdadeira.

Quando se olha para a tabela dos países segundo suas taxas de vacinação por 100 mil pessoas, o Brasil fica muito lá embaixo, para lá da quadragésima posição. Mas, pelos números do Our World In Data, só 27 países conseguiram administrar a primeira dose a mais de 10% da sua população e, entre eles, apenas 13 têm mais de 100 mil habitantes. Quando olhamos para os que têm mais de 10 milhões de pessoas, o número de nações cai para quatro. No mundo todo, foram até agora 313 milhões de doses administradas para um universo de quase oito bilhões de pessoas. 

Contrariando alguns dos seus maiores financiadores, a OMS tem se posicionado cada vez fortemente de modo a destacar as barreiras à produção: na semana passada, mais uma vez, o diretor-geral Tedros Ghebreyesus tocou no espinhoso tema das patentes. “Muitos países com capacidade de fabricação de vacinas podem começar a produzir suas próprias vacinas renunciando aos direitos de propriedade intelectual, conforme previsto no acordo TRIPS [da Organização Mundial do Comércio]. Essas disposições existem para uso em emergências. Se agora não é hora de usá-los, então quando? Este é um momento sem precedentes, e a OMS acredita que é a hora de acionar essa disposição e renunciar aos direitos de patente”, disse ele à imprensa. 

Esta semana a OMC volta a discutirpela sexta vez, a proposta de suspensão temporária de patentes. Parece que nunca vai se chegar a uma solução, porque a decisão precisa ser unânime, aceita por todos os 164 países-membros. E as nações ricas (assim como o Brasil) não dão mostras de que pretendem apoiar a ideia. Mas, segundo a matéria do Globo, há esperança de que se chegue pelo menos a uma “terceira via”. A nova diretora-geral da entidade, Ngozi Okonjo-Iweala – ex-presidente da GAVI Alliance – propõe que governos e empresas farmacêuticas cheguem a um entendimento entre si, sem necessariamente passar pelo licenciamento compulsório. 

Uma solução paralela às discussões da OMC também tem sido defendida por Ghebreyesus. No mesmo discurso da semana passada, ele sugeriu que a OMS poderia intermediar e coordenar um processo de transferência de tecnologia voluntário entre desenvolvedores de vacinas e outros fabricantes farmacêuticos. Se isso vai adiante, não sabemos.

Mas algumas indicações foram dadas ontem, quando terminou uma reunião de dois dias entre representantes de farmacêuticas e instituições de saúde. A conversa foi a partir de um documento chamado “Rumo à vacinação do mundo“, mas, segundo o site Health Policy Watch, não se chegou a nenhuma conclusão muito concreta. De acordo com os participantes, a indústria tem hoje dificuldade para conseguir insumos e equipamentos, e argumenta que a transferência de tecnologia para vacinas é mais complexa do que para substâncias químicas.

“A capacidade de uma empresa individual de absorver tecnologia e ter mão de obra treinada para realmente entender o que são complexidades e como levá-las adiante serão os principais desafios”, disse disse Rajinder Suri, CEO da Rede de Fabricantes de Vacinas para Países em Desenvolvimento. Apesar disso, Thomas Cueni, diretor-geral da Federação Internacional de Fabricantes de Produtos Farmacêuticos, se disse otimista sobre a perspectiva de ver mais parcerias para esse tipo de transferência. A ver.

RISCO GERAL

O Brasil foi o país com mais mortes registradas no mundo ontem, ultrapassando os Estados Unidos, e atingiu um novo recorde com 1.972 mortes. (Devido a diferenças no horário de recolhimento das informações, o consórcio de veículos de imprensa registrou um número ligeiramente diferente – 1.954 –, mas igualmente um recorde). 

Segundo um levantamento do Estadão, pelo menos 4.352 pessoas aguardavam ontem por um leito em hospitais do país – 2.257 delas estavam na fila da UTI. E o número deve ser maior, já que sete estados não responderam o jornal, ou afirmaram que não têm dados consolidados sobre a fila.

Vinte e cinco das 27 capitais do país apresentam taxas de ocupação de leitos de UTI para adultos dedicadas à covid-19 iguais ou superiores a 80%. As informações fazem parte de mais um boletim extraordinário do Observatório Fiocruz Covid-19, divulgado ontem. 

A situação é de colapso total no sistema de saúde em Campo Grande (106%), Porto Alegre (102%) e Porto Velho (100%). Outras capitais à beira do colapso são: Rio Branco (99%), Macapá (90%), Palmas (95%), São Luís (94%), Teresina (98%), Fortaleza (96%), Natal (96%), Rio de Janeiro (93%), Curitiba (96%), Florianópolis (97%), Cuiabá (96%), Goiânia (98%) e Brasília (97%). Em São Paulo a ocupação é de 82%. As duas capitais com índices de ocupação abaixo de 80% são Belém (75%) e Maceió (73%).

“Nos municípios e estados que já se encontram próximos ou em situação de colapso, a análise destaca a necessidade de adoção de medidas de supressão mais rigorosas de restrição da circulação e das atividades não essenciais. Além disso, é necessário o reforço da atenção primária e das ações de vigilância, que incluem a testagem oportuna de casos suspeitos e seus contatos”, defendem os pesquisadores. 

A maior parte das mortes registradas ontem aconteceu em São Paulo: 517. Com os casos subindo, o governador do estado, João Doria (PSDB) deve anunciar hoje mais medidas de isolamento. Coisas sem sentido devem cair, como a autorização para que atividades religiosas presenciais continuem acontecendo, e também os jogos do Campeonato Paulista. Mas estão sendo estudadas medidas que caminham para o que aconteceu em Araraquara, com restrições aos comércios essenciais como supermercados. No estado, esses estabelecimentos teriam o horário de funcionamento reduzido. 

Em Araraquara, durante uma semana supermercados só puderam atender por delivery. A fase mais rígida da quarentena decretada na cidade no dia 21 de fevereiro durou uma semana, quando só farmácias e unidades de saúde puderam abrir. As restrições ao funcionamento do transporte coletivo duraram duas semanas. Até ontem, a circulação de veículos e pessoas sem justificativa gerava multa. Tudo isso fez com que o número de novas infecções caísse por lá. Nos quatro dias anteriores ao lockdown o percentual de casos positivos variava entre 37% a 49%. Segundo o último balanço da prefeitura, divulgado ontem, entre 4 e 7 de março esse número girava em torno de 19% a 26%. “Ainda não há resultado no número de mortes porque os pacientes que vieram a óbito estavam internados há mais tempo, foram contaminados no período de maior transmissibilidade”, explicou Eliana Honain, secretária municipal da Saúde ao G1.  

QUASE

A Câmara aprovou ontem, em primeiro turno, o texto principal da PEC Emergencial, que estabelece gatilhos de ajuste fiscal e define um teto de R$ 44 bilhões para custear o auxílio emergencial. Foram 341 votos a favor (o mínimo era 308). Ainda falta analisar sugestões de mudanças, o que deve acontecer hoje. A proposta também precisa ser votada em segundo turno e, se não for alterado o mérito, não precisa mais voltar ao Senado. 

Jair Bolsonaro pressionou para blindar policiais e militares do ajuste fiscal que a PEC promove, mas perdeu. Vários deputados, incluindo o presidente da Casa, Arthur Lira, se alinharam à equipe econômica. 

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