Gaza: a vida sob cerco total
Há dois meses, nem um saco de farinha entra no enclave. Milhares de pessoas morrem por falta de medicamentos básicos. Israel tenta forçar rendição dos palestinos e já prepara nova invasão por terra, marcada para coincidir com chegada de Trump à região
Publicado 05/05/2025 às 10:02 - Atualizado 05/05/2025 às 10:32

Gaza entrou em maio sob um cerco total imposto por Israel, que agravou-se nos últimos dois meses. Desde 1º de março, alimentos, água, energia e medicamentos estão impedidos de entrar no território palestino. A nova fase da ofensiva israelense, menos visível que os bombardeios anteriores, mas igualmente brutal, tem recebido pouca atenção internacional.
O bloqueio intensificado teve início após uma mudança de postura dos Estados Unidos. Embora o governo Biden tenha apoiado as ações militares israelenses, inclusive com o envio de bombas de duas toneladas, havia até então uma exigência para que Israel permitisse a entrada de ajuda humanitária. Com a retomada do comando de Donald Trump sobre a política externa norte-americana, essa exigência foi abandonada. O cerco absoluto começou com a expulsão da UNRWA, agência da ONU responsável por fornecer alimentos, água e medicamentos a 90% da população de Gaza.
Desde então, a situação humanitária se agravou drasticamente. Nenhum quilo de farinha entra em Gaza. As 25 padarias que ainda funcionavam fecharam por falta de insumos. Sem combustível e sem eletricidade, as usinas de dessalinização de água também pararam de operar. Segundo a UNRWA, 91% da população está em situação de insegurança hídrica total.

O governo de Israel também tem promovido ataques sistemáticos à infraestrutura de sobrevivência. Em declarações públicas, ministros do gabinete de Benjamin Netanyahu defenderam o bombardeio de estoques de alimentos e redes de energia ainda ativas em Gaza. “Precisamos ampliar a intensidade e prosseguir até a vitória total”, afirmou o ministro Itamar Ben-Gvir – aquele que já havia prometido “abrir as portas do inferno” contra os palestinos.
A fome se espalha. Reportagem recente do New York Times, jornal norte-americano sem histórico de simpatia pelos palestinos, descreve filas de crianças com panelas nas mãos em cozinhas comunitárias, hoje os únicos pontos de acesso a alimentos. O jornal entrevistou Arimed Morsen, trabalhador palestino que passa ao menos duas horas por dia na fila para conseguir comida. “Imagine não ter provado carne, um ovo cozido ou uma maçã durante meses”, disse.
Na área da saúde, o colapso é completo. Com hospitais bombardeados e sem medicamentos, médicos recorrem ao Ministério da Saúde de Gaza em busca de orientação. Munir Alburich, diretor-geral da pasta, relatou ao New York Times que recebe ligações de profissionais e familiares em busca de medicamentos para problemas cardíacos, hepáticos ou renais. “Na maior parte dos casos, os pacientes vão morrer. Não há o que fazer”, afirmou.
O cerco tem gerado repercussões internacionais. Dois tribunais da ONU já abriram processos contra Israel. A Corte Internacional de Justiça analisa uma queixa da África do Sul, que acusa o governo israelense de genocídio, com base nas próprias declarações de autoridades do país. Já o Tribunal Penal Internacional, conhecido como ICC, abriu processo específico por uso da fome como arma de guerra. O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e o ex-ministro da Defesa Yoav Galant são alvos de pedidos de prisão.
Esse processo coloca países do chamado Ocidente em posição delicada. Estados que tradicionalmente apoiaram o Tribunal Penal Internacional — como Alemanha, França, Canadá, Austrália e Japão — agora enfrentam o dilema de manter a coerência jurídica ou seguir alinhados a Israel. Se Netanyahu ou Galant viajarem a esses países, teoricamente deveriam ser presos.
Já o governo dos Estados Unidos tem agido de modo cínico. Ao invés de colaborar com o tribunal, aplica sanções contra juízes e bloqueou o financiamento da corte. Atualmente, os magistrados enfrentam restrições de circulação internacional e o próprio tribunal corre risco de colapso por falta de recursos. “Dentro de alguns meses, o dinheiro vai acabar e o tribunal terá que fechar as portas, deixando os criminosos impunes”, afirmou o presidente do ICC em sessão recente no Parlamento Europeu.

O uso da fome como arma de guerra é considerado crime internacional desde 1977. Segundo reportagem do site independente norte-americano ZNet, o motivo da demora em tipificar essa prática é o fato de que o cerco foi, historicamente, um método recorrente dos países ocidentais em suas guerras. A matéria menciona, por exemplo, o bloqueio naval imposto pela Inglaterra contra a Alemanha durante a Primeira Guerra Mundial, a “Operação Fome” dos EUA contra o Japão na Segunda Guerra, e o uso de desfolhantes químicos como o agente laranja para destruir colheitas no Vietnã.
Nas últimas semanas, o risco de uma nova ofensiva terrestre aumentou. O gabinete de Netanyahu se reuniu em Tel Aviv e convocou dezenas de milhares de reservistas. Ministros indicam que uma nova fase dos ataques deve começar entre 13 e 16 de maio, coincidentemente no mesmo período em que Donald Trump planeja visitar o Oriente Médio.
Em resposta ao cerco, o grupo Houthi, do Iêmen, lançou um míssil que chegou a cair próximo ao aeroporto Ben Gurion, em Tel Aviv. A ação, simbólica, driblou os sistemas de defesa aérea de Israel e dos Estados Unidos. Como represália, os EUA lançaram cerca de mil bombardeios contra o território iemenita em um único dia. Os Houthis afirmaram que não vão desistir de defender os palestinos.
A escalada militar preocupa. Mas a omissão diante do cerco, da fome e da sede impostos à população de Gaza segue sendo, segundo especialistas e organizações internacionais, uma violação manifesta do direito internacional. Enquanto isso, dois milhões de pessoas permanecem sob bloqueio absoluto.
Esta matéria foi produzida a partir da transcrição e adaptação de um vídeo publicado em 5 de maio de 2025 no programa Outra Manhã. A fala original foi reorganizada e editada para o formato escrito, mantendo o conteúdo e o sentido da exposição.
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