Gaza: 80 dias sem comida e medicamentos

Embora Israel tenha permitido abertura parcial à entrada de ajuda humanitária, caminhões ainda não conseguiram chegar aos locais onde há mais escassez. 57 crianças morreram de fome desde março e o estoque de medicamentos essenciais está próximo do fim

Ahmed el-Sheikh Eid, de sete anos, que apresenta sinais de desnutrição, senta-se em sua tenda familiar em um acampamento para palestinos deslocados em al-Mawasi. Créditos: Abdel Kareem Hana/AP Photo/Al Jazeera
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Por Elaine Ruth Fletcher, no Health Policy Watch | Tradução: Gabriela Leite

O caos no território de Gaza – em meio a uma guerra em expansão imposta por Israel e uma retomada hesitante de algumas entregas de ajuda humanitária – contrasta de forma intensa com a votação meramente simbólica da Assembleia Mundial da Saúde (AMS), na segunda-feira (26), autorizando a OMS a “hastear a bandeira” da Palestina ao lado da de outros estados-membros.

A decisão de “hastear a bandeira”, aprovada por 95 votos a 4, foi a quarta medida a respeito da crise em Gaza a ser apresentada à AMS, em sua sessão de 2025. Apenas a República Tcheca, Alemanha, Hungria e Israel votaram contra a medida, enquanto 27 estados membros se abstiveram.

“O endosso desta decisão pela AMS enviaria (…) uma mensagem importante aos palestinos, de que eles não foram abandonados. Demonstraria que o direito dos palestinos à autodeterminação é inalienável e, como tal, não pode ser sujeito a veto, nem apagado”, defendeu o delegado da África do Sul, durante o debate na AMS.

Enquanto isso, em Gaza, nenhum caminhão da OMS com suprimentos médicos foi autorizado a entrar no enclave sitiado desde que Israel começou a permitir a retomada de algumas entregas de ajuda na semana passada, aliviando um bloqueio de 80 dias. Hanan Balkhy, diretora da OMS para a Região do Mediterrâneo Oriental, disse que 51 caminhões da OMS estavam prontos e esperando para entrar pela passagem de El Arish, no Egito.

Até sexta-feira, embora 415 caminhões de ajuda humanitária tivessem sido liberados para cruzar para Gaza, apenas 115 haviam sido “coletados”, e nenhum tinha permissão para entrar na parte norte do enclave, que está vivendo combates mais intensos agora, acrescentou Balkhy, citando um briefing do Secretário-Geral da ONU, Antonio Guterres.

Os números da ONU correspondem aproximadamente aos do braço de coordenação militar de Israel, COGAT, que relata que 388 caminhões entraram no enclave desde o início de maio. Mas muitos deles foram saqueados por habitantes famintos de Gaza antes que as agências da ONU pudessem coletar e entregar a ajuda de forma mais sistemática. 

Balkhy disse que 43% dos medicamentos essenciais estão com “estoque zero”, além de 64% dos suprimentos médicos e 42% das vacinas, citando dados do Ministério da Saúde de Gaza. Pacientes com condições crônicas e potencialmente fatais – incluindo insuficiência renal, câncer, doenças do sangue e doenças cardiovasculares – estão entre os mais afetados, acrescentou ela. Segundo a diretora, “Os estoques da OMS em Gaza estão perigosamente baixos e acabarão em breve”, e há problemas com dezenas de produtos, desde antibióticos comuns até kits para parto cirúrgico.

Desde 2 de março, 57 crianças morreram devido aos efeitos da desnutrição, acrescentou Balkhy, também citando dados do Ministério da Saúde de Gaza. E estima-se que 71 mil crianças menores de cinco anos sofrerão de desnutrição aguda nos próximos onze meses, se as condições não mudarem radicalmente.

Entidade privada aprovada pelos EUA atrasa entrega

Seus comentários ocorreram no dia em que a abertura de pontos de distribuição de ajuda privada para Gaza, destinada a contornar as agências da ONU e o Hamas, foi adiada por Israel pela segunda vez.

Isso se seguiu à renúncia, no domingo, de Jake Wood, chefe da Fundação Humanitária de Gaza (GHF, na sigla em inglês), entidade privada que havia recebido uma licitação de Israel para entregar a ajuda, com aprovação dos EUA.

Em um comunicado distribuído pela Fundação, Wood foi citado dizendo que os planos para os centros de distribuição não atendem aos “princípios de humanidade, neutralidade, imparcialidade e independência, dos quais não abrirei mão”.

Várias organizações da ONU também declararam que não cooperarão com a GHF, sediada em Genebra, que havia dito anteriormente que distribuiria cerca de 300 milhões de refeições em seus primeiros 90 dias de operação. Em entrevista à CNN, James Elder, da UNICEF, descreveu o plano como “inviável” – com apenas um “punhado” de pontos de distribuição.

“Pense em uma mãe que tem alguns filhos e seu marido foi morto. E ela tem que andar cinco ou seis quilômetros em uma zona militarizada para pegar os suprimentos e depois voltar”, refletiu Elder. Ele observou que o plano também forçaria a maioria dos habitantes de Gaza a se mudar para a parte sul do pequeno enclave para ter acesso a qualquer ajuda.

Em uma reunião da AMS na semana passada, o Diretor Executivo de Emergências em Saúde da OMS, Mike Ryan, afirmou que “trabalharemos com o que quer que seja que funcione” – mas acrescentou que as agências da ONU já tinham um histórico comprovado de entrega de ajuda, demonstrado durante o último cessar-fogo.

Sudão, outro ponto crítico ignorado

Outra crise devastadora que não está recebendo a atenção que merece é o Sudão, afirmou Balkhy em sua reunião com jornalistas da ONU na segunda-feira.

“Surtos simultâneos – cólera, pólio, sarampo, dengue, malária – estão sobrecarregando um sistema de saúde destruído pelo conflito. O acesso aos cuidados está desaparecendo, à medida que a violência desloca milhões e bloqueia a ajuda vital. A fome e a desnutrição afetam 25 milhões – incluindo 770 mil crianças que enfrentam desnutrição aguda grave este ano. As taxas de imunização caíram para menos de 50%, de 85% antes da guerra”, disse a diretora.

“Ataques à saúde e à infraestrutura vital estão cada vez mais frequentes”, disse ela, observando que drones também atingiram Porto Sudão e outros pontos de entrada de ajuda.

Ao longo do conflito, a OMS entregou mais de 2.500 toneladas métricas de suprimentos e apoiou hospitais que trataram mais de 1 milhão de pessoas, incluindo 75 mil crianças com desnutrição aguda grave. Cerca de 30 milhões de pessoas receberam vacinas contra cólera, sarampo ou pólio. E, em novembro de 2024, o Sudão introduziu a vacina contra a malária, alcançando 35mil crianças até agora.

“Mas os cortes na ajuda humanitária estão ameaçando o progresso”, acrescentou ela. “O pilar de saúde do Plano de Resposta Humanitária do Sudão está financiado em apenas 9,7%. A resposta da OMS tem um déficit de financiamento de 67%”, destacou, pedindo “apoio sustentado para salvar vidas e reconstruir o sistema de saúde do Sudão; acesso irrestrito e apoio internacional para operações humanitárias transfronteiriças; e um fim imediato aos ataques a civis, infraestrutura civil e cuidados de saúde”.

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