Escola e SUS diante da epidemia de transtornos mentais
Em dez anos, casos de ansiedade de crianças e adolescentes cresceram entre 15 e 44 vezes. Aos sinais de crise real, soma-se a cultura de hiperdiagóstico. Saúde Pública pode ser transformadora – mas ainda há muita indiferença diante do problema
Publicado 05/02/2025 às 10:47 - Atualizado 05/02/2025 às 10:51
Como os adultos, também as crianças e adolescentes enfrentam um mau momento no que diz respeito a sua saúde mental. Em levantamento realizado pelo Ministério da Saúde, divulgado na semana passada, constatou-se, em 10 anos, um aumento de 1.575% no atendimento, no SUS, de crianças entre 10 e 14 anos por sofrerem de ansiedade. Entre os adolescentes de 15 a 19 anos, o aumento foi de 4.423% – alcançando o número de 53.514 atendimentos em 2024, mais de seis por hora.
Mas o sistema de saúde está pronto para atender a essa demanda? Um grupo de pesquisadores foi atrás de respostas, e sintetizou suas conclusões em artigo recém-publicado na revista Cadernos de Saúde Pública (CSP), parceira editorial do Outra Saúde. Entrevistaram genitores de crianças de 3 a 16 anos que foram atendidos no serviço psicológico de uma policlínica ligada ao SUS, em uma cidade média sudestina, que carece de uma unidade de Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil (Caps-IJ).
Entre as conquistas e dificuldades enfrentadas pelas mães e pais, captadas pela pesquisa, chama a atenção o papel que a escola desempenha nesse processo de entendimento de transtornos mentais. Trata-se, segundo o artigo, de um “fenômeno contemporâneo”, que vem com “uma maior compreensão das relações entre possíveis problemas de aprendizagem e questões psicológicas, neurológicas e problemas no desenvolvimento”.
Em entrevista a este boletim, Iagor Brum Leitão, um dos pesquisadores responsáveis pelo artigo, da Universidade Federal do Espírito Santo, complementa: “A escola é um importante espaço social habitado pelas crianças e adolescentes. Por isso, além de ser um ambiente de aprendizado, também se torna um lugar onde não só sinais de sofrimento psíquico se expressam, mas também são percebidos”.
Escola e medicalização
Mas se a escola é um local importante para a descoberta de possíveis transtornos de crianças e adolescentes, ela também pode ser, em certos aspectos, disseminadora de uma perspectiva medicalizante. Ou seja, a compreensão de distúrbios que podem ter origens diversas, inclusive sociais e familiares, apenas do ponto de vista médico, “compreendidos através de uma estrutura médica e tratados exclusivamente com intervenções médicas”, nas palavras de Iagor.
O artigo ressalta a questão: “O crescente aumento do discurso neurocientífico na educação pode levar a uma interpretação rígida de comportamentos desviantes de normas como sinais de transtornos, incentivando a busca precoce por diagnósticos e intervenções médicas mesmo quando esses comportamentos poderiam ser parte de um desenvolvimento normal ou uma resposta contextual”.
Nesse contexto, há alguns diagnósticos que se sobrepõem e chamam a atenção dos pesquisadores, inclusive nas entrevistas feitas na saúde mental da policlínica. Prevalecem as suspeitas de Transtorno do Espectro Autista (TEA) e Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH). Embora seja uma tendência que se confirma em estudos de diversos países, os autores do artigo fazem questão de problematizar essa prevalência.
Segundo os pesquisadores, essa maior frequência de diagnósticos pode ser consequência da “ênfase na biologia como base para esses diagnósticos”, além da inclusão dos transtornos no mais recente Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5). Esses dois fatores “podem estar contribuindo para uma cultura de hiperdiagnóstico e levando a um aumento das demandas e dos encaminhamentos de crianças e adolescentes”. O artigo frisa: essa situação pode contribuir para aumentar o estigma de pessoas com os transtornos.
Iagor esclarece que a percepção puramente medicalizante é equivocada: tanto a escola quanto a sociedade podem ser causadoras dos sofrimentos psíquicos. “[Eles] não decorrem de problemas apenas no indivíduo, na criança, no adolescente. Questões como dinâmicas familiares conflituosas, vulnerabilidades socioeconômicas, racismo, homofobia, exposição à violência, maus-tratos e, inclusive, o próprio ambiente escolar – seus métodos pedagógicos, relações de poder, relações interpessoais e experiências de pertencimento social – também impactam diretamente”, reflete o pesquisador.
E a comunidade escolar, por vezes, encontra a saída da medicalização para esses problemas, reproduzindo lógicas de “enquadramento e normalização” – mas isso acontece por estar inserida em uma estrutura social mais ampla, que reforça essa tendência. É o que acrescenta Iagor: “Muitas escolas não se sentem preparadas para lidar com a diversidade e complexidade das questões de saúde mental, o que pode levar à percepção de que esse tipo de demanda está além de suas funções pedagógicas”. Apelar à psiquiatria, por vezes, é o caminho mais viável.
A Saúde deve tomar a dianteira
No entanto, o artigo recusa o caminho fácil de jogar a culpa no ensino básico. “A escola, por definição, tem o mandato da educação, não o da saúde ou da saúde mental […] ainda que não possa se furtar da responsabilidade de ser também espaço de [sua] promoção”, frisa Iagor. A questão é que o ambiente escolar não está preparado para lidar com essa onda de transtornos mentais, que gera uma grande demanda do sistema de saúde.
“O fortalecimento da relação entre escolas e serviços de saúde mental infantojuvenil requer um esforço conjunto”, discute o artigo. Mas, segundo seus autores, é responsabilidade da Saúde fazer esse movimento. Para Iagor, muitas vezes os serviços de atendimento também agem de forma reducionista, “sem se articular com a escola ou compreender melhor o seu contexto”, ou, em outras palavras, “sem fortalecer um laço de corresponsabilização”.
Na opinião do pesquisador, a escola não deve ser apenas um local de encaminhamento, mas que seja capaz de ela própria ser espaço para “acolhimento, reflexão, promoção de saúde, de pertencimento e reconhecimento social”. Para estreitar a relação entre o ambiente escolar e os serviços de saúde, estes precisam ter um papel proativo para, por exemplo, oferecer “espaços de diálogo e de qualificação não verticalizada para educadores”.
Iagor sugere ações baseadas na “intersetorialidade, corresponsabilização, fortalecimento de vínculos e aproveitamento dos recursos e características do território”. Ele exemplifica algumas possibilidades: promoção de fóruns sobre saúde mental infantojuvenil, rodas de conversas com estudantes ou familiares, projetos integrados entre UBSs e escolas e grupos terapêuticos. Mas construir um olhar ampliado sobre a saúde mental e buscar respostas para além da medicalização só será possível com investimento e articulação, alerta ele.
UBSs devem ser mais que centros de encaminhamento
Além da questão das escolas no atendimento de crianças e adolescentes que enfrentam sofrimento psíquico, também as Unidades Básicas de Saúde (UBS) precisam estar melhor preparadas. Este é um alerta que os pesquisadores fazem a partir das experiências recolhidas nas entrevistas que realizaram. Eles perceberam um papel “menos ativo” dos postos de saúde no cuidado direto dos jovens.
É inegável que haja uma escassez de profissionais diretamente ligados à saúde mental nas UBSs. Esse é um elemento que foi percebido também nas entrevistas feitas no estudo, e essa falta traz efeitos significativos. Mas os pesquisadores alertam: os postos de saúde precisam fazer muito mais do que o simples encaminhamento para especialistas.
Trata-se, segundo eles, de “uma falta de compreensão por parte das equipes sobre sua capacidade de conduzir atividades relacionadas ao cuidado em saúde mental infantojuvenil”. Iagor completa: “Como serviços da Atenção Básica, são projetados como uma porta de entrada preferencial do SUS, pois estão inseridas nos territórios e próximas às famílias”, ou seja, é possível ir além do tratamento por especialistas de forma individual.
O pesquisador dá exemplos de experiências que demonstram esse potencial, como o de uma UBS que realizou oficinas de massagens para bebês e rodas de conversa sobre saúde mental infantil. Uma outra unidade, que estabeleceu parceria com profissionais de educação física e lideranças comunitárias, “criou atividades esportivas para crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade”.
“Então o cuidado envolve, além das ações de ‘tratamento’, as de acolhimento, escuta ativa, promoção à saúde, atividades em grupo, orientação familiar, ações territoriais e intersetoriais, discussões em equipe sobre casos, bem como toda uma construção de pertencimento, de lugar social positivo”, completa Iagor. São ações, lembra ele, que não necessitam de profissionais de psicologia ou médicos para serem realizadas.