Doenças evitáveis e o papel do racismo estrutural

Estudo que analisou a prevalência de tuberculose, HIV/aids e sífilis em Porto Alegre, constatou mais um enorme fosso entre brancos e negros. Também no tratamento de saúde há desigualdade. Mas Brasil tem o necessário para superar essa mazela

Centro de Diabetes e Endocrinologia do Estado da Bahia (Cedeba) Foto: Elói Corrêa/GOVBA
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Mauricio Polidoro em entrevista a Gabriel Brito

Algumas das desigualdades raciais em saúde podem ser enxergadas em uma cidade como Porto Alegre. A capital do Rio Grande do Sul, marcada pela segregação, foi objeto de estudo de Mauricio Polidoro, geógrafo e com pós-doutorado em Saúde Coletiva, cristalizado no artigo Geografia das disparidades em saúde entre brancos e negros em Porto Alegre. A pesquisa buscou identificar a predominância de três doenças – tuberculose, HIV/aids e sífilis – entre pessoas negras e brancas, e qual o risco de contraí-las para cada uma dessas populações de acordo com o bairro onde vivem. 

O que se observou foi um grande fosso entre a saúde de brancos e negros. No período analisado, que vai de 2010 a 2019, a taxa de HIV/aids para a população branca reduziu de 117 para 93 por 100 mil habitantes; já para a população negra houve um aumento de 224 para 248 por 100 mil habitantes. Os números da tuberculose também mostram um aprofundamento da disparidade: enquanto a variação entre brancos foi de +0,8%, a patologia teve aumento entre os negros de 28,6%. A sífilis, embora tenha tido crescimento mais acelerado entre os brancos, de 15 para 163 casos para 100 mil habitantes, também escalou vertiginosamente entre negros – eram 47,7 casos por 100 mil e chegaram a 435,6 por 100 mil em 2019.

A explicação do fenômeno é multifatorial. A primeira faceta é a da falta crônica de orçamento para o sistema público: “O financiamento do SUS tem sido gradativamente afetado nos últimos anos e, com isso, a atuação das estratégias de saúde da família e dos agentes comunitários de saúde tem sido comprometida”, explica Polidoro. “Isso resulta em diminuição da qualidade do serviço prestado para a população e tem um impacto ainda maior em comunidades mais vulnerabilizadas, que não têm acesso à medicina preventiva.” 

Há ainda um segundo problema, segundo o pesquisador, que é a falta de prevenção e o avanço do discurso reacionário no país: “Na última década, houve uma ausência de campanhas de sensibilização. Além disso, o recrudescimento de discursos moralistas e reacionários no Brasil tem causado constrangimento ou, em muitas situações, impedimentos e proibições de profissionais da saúde e da educação em abordarem temas considerados sensíveis que se relacionam ao HIV e sífilis”, sintetizou.

Como mencionado na entrevista que pode ser lida abaixo, não há dúvidas de que o exemplo porto-alegrense é um retrato do contexto nacional. Nesse sentido, Polidoro e outros pesquisadores estão perto de concluir artigo que trata das disparidades nas notificações de HIV/aids no país entre 2010 e 2018, período que antecede o desmonte da política de prevenção ao vírus promovido pelo governo Bolsonaro.

Apesar disso, o Brasil tem condições de sobra para resolver o problema, mostra o pesquisador: “Precisamos lembrar que, atualmente, temos um vasto corpo tecnológico farmacêutico e biomédico capaz de zerar as infecções por HIV e acabar com as mortes por aids. Possuímos estratégias de prevenção ao HIV como a profilaxia pré-exposição (PREP) e profilaxia pós-exposição (PEP) que estão disponíveis gratuitamente no SUS. O mesmo ocorre com medicamentos para a sífilis e a tuberculose”. 

Ao anunciar o Mais Médicos, num evento em que Lula também lembrou do retrocesso em equipes de saúde da família, suporte indispensável para a condução da política de atenção básica nos territórios, o governo sinaliza uma retomada de parâmetros mínimos de garantia do direito à saúde. Afinal, as três doenças observadas no estudo de Polidoro são apenas uma faceta de uma piora generalizada das condições de saúde da população.

As mudanças precisam ser consistentes. “Isso significa implementar as premissas e os objetivos constantes nas Políticas Nacionais de Saúde da População Negra e de Saúde Integral da População LGBTQIAP+; qualificar os serviços e os profissionais de saúde para acolherem as pessoas livres de estigma, preconceito e discriminação; ampliar geograficamente a dispensação de insumos farmacêuticos nas cidades e com horários compatíveis com a realidade da classe  trabalhadora; facilitar o acesso a consultas médicas por meio da telemedicina e também fornecer oportunidades de grupos de apoio para além daqueles que tradicionalmente o SUS oferta, mais ligados à saúde da mulher e de doenças crônicas como diabetes e hipertensão”, explica Polidoro.

O artigo deixa claro o papel do racismo estrutural na abertura do fosso entre a saúde de brancos e negros em Porto Alegre – e ele também precisa ser enfrentado. “Dirimir as disparidades raciais em saúde só é possível em aliança com a promoção do acesso ao trabalho e moradia digna, ao direito de circulação na cidade, ao acesso à educação e qualificação profissional, à alimentação adequada, ao saneamento básico, ao esporte e ao lazer. Estes são alguns dos determinantes sociais que percorrem os corpos imbricados com as questões de raça, etnia, classe social, gênero e origem geográfica e que acarretam na forma como as pessoas nascem, vivem, adoecem e morrem”.

Confira a entrevista de Mauricio Polidoro ao Outra Saúde.

Quais as linhas gerais do estudo Geografia das disparidades em saúde entre brancos e negros em Porto Alegre?

Em linhas gerais, nosso estudo utilizou uma base de dados aberta e disponibilizada na internet pela prefeitura municipal de Porto Alegre para investigar as notificações de HIV, sífilis e tuberculose entre grupos populacionais no período de 2017 a 2019. Para identificar a incidência dessas doenças utilizamos a divisão geográfica dos distritos sanitários, que é a referência territorial para a organização, planejamento e gestão dos serviços de saúde na cidade. Verificamos que existem discrepâncias importantes entre brancos e negros nos três agravos estudados, fruto do persistente processo histórico de exclusão social e racial que a população não-branca sofre na capital gaúcha.

Por que vocês selecionaram HIV, tuberculose e sífilis como parâmetros da medição da desigualdade?

Selecionamos esses agravos como parâmetros de medição da desigualdade, pois se constituem como doenças evitáveis e que se relacionam a contextos mais amplos de vulnerabilização. As condições precárias de habitação e alimentação podem tornar as pessoas mais vulneráveis a tuberculose e a sífilis, por exemplo. O estigma histórico em relação ao HIV e a sua associação aos gays (“a praga gay” como os jornais dos anos de 1980 afirmavam) produz ainda hoje barreiras de acesso na testagem e tratamento da população, afetando sobremaneira os homens que fazem sexo com homens e homens heterossexuais.

Além disso, são agravos que merecem atenção urgente. Como os dados do nosso artigo revelaram em Porto Alegre, a taxa de incidência de sífilis em pessoas negras saltou de 47,69 a cada 100 mil habitantes em 2010 para 435,56 em 2019 e em pessoas brancas de 14,96 para 162,98 por 100.000 habitantes no mesmo período. 

 O estudo ainda mostra que tais infecções se ampliaram tanto entre brancos como entre negros, com as devidas diferenças. A considerar o acúmulo de processos educativos de prevenção e incidência de variadas políticas públicas ao longo dos anos, por que isso ocorreu?

Estamos tratando, como havia colocado, de três agravos distintos mas que estão relacionados e interconectados com as múltiplas vulnerabilidades às quais os diferentes grupos populacionais estão sujeitos. Trata-se de um problema complexo e multidimensional que ultrapassa a seara da Saúde Pública e de atuação estritamente dos profissionais de saúde. Mas podemos pensar em alguns dos problemas que precisamos enfrentar, considerando o que foi feito, ou não foi feito, nos últimos anos.

O primeiro deles está relacionado ao acesso. O financiamento do SUS tem sido gradativamente afetado nos últimos anos e, com isso, a atuação das estratégias de saúde da família e dos agentes comunitários de saúde tem sido comprometida. Isso resulta em diminuição da qualidade do serviço prestado para a população e tem um impacto ainda maior em comunidades mais vulnerabilizadas, que não têm acesso à medicina preventiva e recorrem às unidades de saúde ou hospitais em situações de cuidado mais imediato. Essa falta de acompanhamento contínuo dificulta o diagnóstico e o acompanhamento das pessoas que necessitam de cuidados específicos, sobretudo relacionados ao HIV, sífilis e tuberculose.

Um segundo problema é a falta de prevenção. Na última década, a ausência de campanhas de sensibilização para a temática tem feito com que a população, sobretudo a mais jovem, não tenha conhecimento das estratégias de prevenção e também da história da epidemia de HIV e Aids e como isto afetou toda uma geração.

Além disso, o recrudescimento de discursos moralistas e reacionários no Brasil tem causado constrangimento ou, em muitas situações, impedimentos e proibições de profissionais da saúde e da educação em abordarem temas considerados sensíveis que se relacionam ao HIV e sífilis.

Acredito que precisamos enfrentar a realidade atual da sociedade em relação às práticas sexuais, que estão cada vez mais presentes em espaços públicos e privados, bem como na disseminação de conteúdos pornográficos pelas redes sociais. Não podemos ignorar o contingente crescente de profissionais do sexo dentro e fora das redes, e é necessário que a sociedade encontre formas de abordar a questão de forma consciente e empática. Como parte do enfrentamento, é importante retomar as discussões sobre sexo e sexualidade de maneira aberta e franca, a fim de cuidar de si mesmo e dos outros.

O terceiro ponto é o estigma e a discriminação. Muitas pessoas têm medo de buscar tratamento ou fazer testes para essas doenças devido ao estigma e à discriminação que possam ser associados a elas, muito enviesado pelo caráter histórico que mencionei anteriormente. Ainda persiste no imaginário popular a imagem propagada do Cazuza na capa da Revista Veja, a dizer que ele “agonizava em praça pública”.

Além disso, existe o receio de exposição no serviço de saúde ou em suas comunidades e isso faz com que as pessoas não procurem o serviço em busca de informação ou apoio. É importante lembrar que, desde 2022, a Lei Federal nº 14.289 obriga o sigilo sobre a condição de pessoas infectadas pelo vírus HIV e hepatites crônicas.

Tal desigualdade se expressaria na mesma intensidade no acesso aos serviços básicos de saúde e tratamento de outras doenças?

Eu não tenho os dados de outros agravos e doenças neste momento. Porém, precisamos lembrar que, atualmente, temos um vasto corpo tecnológico farmacêutico e biomédico capaz de zerar as infecções por HIV e acabar com as mortes por Aids. Possuímos estratégias de prevenção ao HIV como a profilaxia pré-exposição (PREP) e profilaxia pós-exposição (PEP) que estão disponíveis gratuitamente no SUS. O mesmo ocorre com medicamentos para a sífilis e a tuberculose.

Neste sentido, enfrentar a epidemia de HIV e o problema da sífilis e da tuberculose requer uma abordagem que ultrapasse um caráter biomédico e farmacêutico.

As conclusões do artigo podem ser compreendidas em escala nacional?

Sim, resguardadas as devidas características socioculturais locais e a trajetória do racismo e outras formas de violência.

O que o artigo revela, na realidade, é que as disparidades raciais em saúde são frutos do projeto histórico de construção de uma nação branca e eurocentrada que excluiu pessoas não-brancas, sobretudo negros e indígenas, das benesses da sociedade. Assim, as barreiras de acesso, o estigma e a discriminação são ainda mais contundentes para as pessoas não-brancas. Estes grupos populacionais ainda sofrem do fardo desigual de acesso ao trabalho e a moradia digna.

Quais as saídas para a redução dessas disparidades? Você vê movimento neste sentido no novo governo e seu ministério da Saúde?

Como todo problema complexo não existem respostas simples. Mas existe uma série de ações que podem ser feitas imediatamente para que possamos minimizar o cenário de disparidades encontrado.

Isso significa implementar as premissas e os objetivos constantes nas Políticas Nacionais de Saúde da População Negra e de Saúde Integral da População LGBTQIAP+; qualificar os serviços e os profissionais de saúde para acolherem as pessoas livres de estigma, preconceito e discriminação; ampliar geograficamente a dispensação de insumos farmacêuticos nas cidades e com horários compatíveis com a realidade da classe trabalhadora; facilitar o acesso a consultas médicas por meio da telemedicina e também fornecer oportunidades de grupos de apoio para além daqueles que tradicionalmente o SUS oferta, mais ligados à saúde da mulher e de doenças crônicas como diabetes e hipertensão.

Não podemos pensar qualquer movimento de redução das disparidades sem a participação dos grupos populacionais mais afetados no delineamento das políticas, ou seja, restaurar o controle social e garantir a representatividade dos grupos nos espaços de gestão são primordiais.

Não podemos esquecer que, no caso do atual cenário da epidemia de HIV, as mulheres trans e as travestis, os homens heterossexuais, os homens que fazem sexo com outros homens e homens gays são sobremaneira afetados segundo os dados epidemiológicos. Isso significa que precisamos pensar criticamente sobre o modelo de assistência à saúde no Brasil para direcionarmos novas e inovadoras estratégias de acolhimento desses grupos para os serviços de assistência à saúde, a levar em consideração as questões de gênero.

No tocante ao novo governo, a expectativa é promissora. Além da irretocável qualificação técnica da equipe do Ministério da Saúde e do retorno do HIV e Aids na agenda nacional, no dia 16 de março foi autorizada a prescrição da PREP, aquele comprimido que previne o HIV, também pelos profissionais farmacêuticos. Isso deve ampliar o acesso, sobretudo nos territórios que sofrem com a falta de médicos.

Entretanto, reforço a necessidade de repensar a territorialização das farmácias e serviços de saúde do SUS considerando as múltiplas e complexas realidades das metrópoles, sobretudo as questões de gênero, raça e sexualidade.  

Não é impossível dirimir as disparidades raciais em indicadores de saúde por si só?

É impossível. Como comentei anteriormente, a vulnerabilização dos grupos sociais faz parte de um contexto mais amplo que vai além do acesso à saúde. Dirimir as disparidades raciais em saúde só é possível em aliança com a promoção do acesso ao trabalho e moradia digna, ao direito de circulação na cidade, ao acesso à educação e qualificação profissional, à alimentação adequada, ao saneamento básico, ao esporte e ao lazer. Estes são alguns dos determinantes sociais que percorrem os corpos imbricados com as questões de raça, etnia, classe social, gênero e origem geográfica e que acarretam na forma como as pessoas nascem, vivem, adoecem e morrem.

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