Defesa do SUS, (muito) além dos memes

O que está por trás de postagens nas redes sociais sobre a saúde brasileira? Como a lógica de mercado se camufla nas críticas ao sistema público? Pesquisadores sustentam: é possível qualificar o debate e disputar os sentidos de Comum por trás do #VivaoSUS

Créditos: Brusinhas
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Para além dos espaços institucionais, o SUS hoje também é debatido e disputado nas redes sociais, em posts, memes e compartilhamentos em massa. Pesquisadores da Unifesp mostram que as redes sociais digitais se tornaram território estratégico para a defesa da saúde como direito universal, revelando tanto elogios e mobilizações quanto críticas e discursos privatistas que colocam em jogo o destino da política pública mais ampla do país.

O retrato do SUS nesse ambiente é marcado por múltiplos sentidos. Ele surge exaltado como conquista civilizatória, patrimônio coletivo e motivo de admiração para estrangeiros, mas também aparece associado a críticas, ironias, frustrações e sarcasmo. É o que revelam os resultados coletados pelo Observatório de Políticas Públicas de Saúde/SUS, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que já coletou mais de 300 mil menções ligadas ao SUS na internet, entre setembro de 2024 e julho de 2025.

Circula nas redes uma dimensão de valorização do SUS sob as hashtags #DefendaoSUS ou #VivaoSUS a partir de experiências positivas, de bom atendimento, vínculo com os profissionais ou por meio do acesso garantido no serviço público que outrora havia sido negado no privado. Essa valorização contrasta com o discurso marcado pelo desencanto e revela como a imagem do sistema oscila dependendo de quem o observa e de onde se fala, sobretudo quando se coloca em análise o público em relação ao privado. Essa ambivalência se conecta a um movimento global: a crise do Estado de bem-estar social, o avanço de políticas de austeridade, a erosão do financiamento público e a pressão crescente das lógicas privatistas. O que se disputa, portanto, é parte de uma luta mais ampla sobre a defesa do comum contra a mercantilização da vida.

Essa disputa se expressa não apenas em elogios ou críticas, mas em narrativas que atravessam dimensões éticas. Cada postagem tensiona a ideia de saúde como direito universal contra a ideia de saúde como mercadoria. Ao instrumentalizar críticas legítimas, discursos privatistas corroem a legitimidade do SUS, abrindo espaço para soluções de mercado. O que está em jogo é a decisão coletiva sobre quais valores sustentam a vida em comum: a lógica do direito ou a lógica do consumo.

Os memes se destacam nas redes como linguagem privilegiada de engajamento. O problema é que esse riso, quando não mediado, fragiliza o sentido público do SUS, reduzindo uma política de Estado a anedotas do cotidiano do senso comum. A expressão por meio do sarcasmo precisa ser lida em uma chave ético-política: ignorar esse modo de engajamento seria recusar a dimensão afetiva da política. A questão é como transformar essa expressão em debate qualificado, e com capacidade de dimensionar as necessidades e saúde da população sem cair no vazio da deslegitimação.

Diante disso, emerge uma urgência: o SUS precisa de uma política de comunicação à altura do desafio digital. É necessário disputar sentidos nas linguagens das redes, dialogar com a cultura do meme, acolher relatos individuais e qualificá-los. As redes sociais são hoje território estratégico para o futuro do sistema. Se nelas circulam críticas, frustrações e ironias, também circulam solidariedades, defesas e mobilizações. Um exemplo disso foi o resultado do monitoramento do Observatório no mês de abril deste ano em que um vídeo da cantora Jojo Todynho alcançou cerca de 78,4 milhões de usuários ao fazer críticas sobre o SUS: “só elogia quem não usa”. Diante da repercussão, diferentes influenciadores, incluindo o próprio perfil do Ministério da Saúde, produziram conteúdos em defesa do SUS, sobretudo por ser uma política pública essencial e de acesso universal. 

De olho nas redes

O Observatório de Políticas Pública de Saúde/SUS, vinculado ao Departamento de Medicina Preventiva da Universidade Federal de São Paulo, nasceu em 2019, em um contexto em que o SUS completava três décadas e enfrentava intensas disputas no campo político-democrático para sua manutenção, a partir de estratégias de desmontes das políticas de saúde e desfinanciamento, após o golpe de 2016. Ele nasce com a proposta ampla de observar as políticas públicas de saúde em movimento, registrar seus avanços e retrocessos, acompanhar a arena institucional. 

A partir de 2024, o Observatório expandiu sua atuação para um novo território emergente: as redes sociais digitais. Essa mudança não foi aleatória. As redes têm se consolidado como espaços de participação popular: ainda que fragmentadas, difusas e sob uma lógica em que os algoritmos e as estratégias de alcance têm se mostrado dispositivos importantes para a produção de sentidos no cotidiano. São nas redes sociais digitais em que se travam batalhas simbólicas decisivas, onde o SUS é simultaneamente defendido e atacado, celebrado e ridicularizado. Assim, reconhecer esse território como campo de pesquisa é reconhecer que a disputa sobre o futuro da saúde pública não se dá apenas em conferências, gabinetes ou nas legislações: ela também acontece no feed, no meme e no comentário viral.

Para mergulhar nesse universo em disputa, o grupo de pesquisadores do Observatório vem estruturando uma análise do debate nas redes sociais digitais em torno de três palavras-chave centrais: fila, SUS e planos de saúde. Não se trata de escolhas arbitrárias: cada uma delas condensa experiências vividas pela população e carrega forte potência simbólica. A fila representa a espera, a frustração, o tempo perdido para conseguir atendimento. O SUS é a sigla que, ao mesmo tempo, sintetiza orgulho nacional e críticas cotidianas. Os planos de saúde surgem como promessa privatista de solução individual, ainda que, na prática, operem com a lógica excludente do mercado e precariedades técnico-assistências.

Além da frequência com que essas palavras aparecem, são monitorados os humores associados a elas (sentimentos positivos, negativos, ambivalentes) e o nível de engajamento das publicações. Isso significa olhar para os conteúdos mais compartilhados, curtidos ou comentados, interpretando como se constroem narrativas hegemônicas e contra-hegemônicas no espaço digital. 

O aniversário de 35 anos da Lei Orgânica do SUS nos lembra que sua história é feita de resistência, mas também de reinvenção constante. Se o sistema se fortaleceu nas ruas, nas conferências e nos conselhos, hoje ele também precisa se fortalecer no espaço digital. Porque o SUS não é apenas política pública: é projeto amplo de sociedade democrática e garantia de direitos. Nos próximos anos, não haverá como defendê-lo sem reconhecer que o futuro da saúde como direito também passa pelo feed.

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