Covid: o pequeno passo do Congresso contra as patentes

Vai à sanção lei que libera produção de vacinas e medicamentos contra a doença. Por não promover transferência de tecnologia, medida não terá efeito prático imediato. E mais: Anvisa aprova droga hospitalar que ajuda a evitar intubações e mortes

24/5: Manifestantes protestam em Boston (EUA) diante da sede da Moderna, uma das corporações farmacẽuticas que bloqueiam, por meio de patentes, a produção ampla de vacinas contra a covid. Movimento para quebrar restrições e exigir a transferẽncia de tecnologia tornou-se mundial
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TARDOU, MAS PASSOU

Tramitando desde o início do ano, foi finalmente aprovado ontem pelo Senado o PL 12/21, que prevê a concessão de licença compulsória para produção, no país, de vacinas e outros insumos que sejam protegidos por patentes, enquanto durar a pandemia. Falta, agora, a sanção de Bolsonaro.

Chamada sem muita precisão de “quebra” de patentes, a medida na verdade não anula os direitos de propriedade. O licenciamento compulsório suspende temporariamente, em situações emergenciais, alguns efeitos da propriedade intelectual e, na prática, permite que o objeto protegido por uma patente – nesse caso, as vacinas e outros medicamentos e insumos usados no combate á covid-19 – possam ser produzidos por outros. 

Cai, assim, o direito de exclusividade dos laboratórios sobre a produção de vacinas. Ou seja: as farmacêuticas não podem mais impedir que entrem concorrentes na produção dos imunizantes. Os donos das patentes, no entanto, continuam podendo produzir e vender a tecnologia, além de receberem royalties de quem utilizar o licenciamento compulsório. 

A medida, que, como se pode imaginar, não agrada em nada às grandes farmacêuticas, é prevista no próprio Acordo Trips, tratado internacional instituído em 1994 e que deve ser obedecido por todos os países membros da Organização Mundial do Comércio (OMC).  A proposta conta com apoio de militantes pelo direito à saúde e acesso a medicamentos, como a organização Médicos sem Fronteiras, que consideram a medida fundamental para combater a desigualdade na distribuição e acesso a vacinas na pandemia. 

No contexto internacional, a OMS tem sido firme defensora da suspensão de alguns dos efeitos do Acordo Trips para garantir a equidade de cobertura vacinal. O diretor-geral da entidade, Tedros Ghebreyesus, caracteriza o cenário como um “apartheid de vacinas”. Ele tem sistematicamente denunciado a desigualdade no acesso a imunizantes e chegou a dizer que a decisão sobre “compartilhar ou não” é um teste de caráter

Desde o ano passado,temos falado bastante por aqui sobre a iniciativa protagonizada por Índia e África do Sul na OMC, que conta com a adesão de mais de 100 países. Os novos termos permitiriam que mais laboratórios, universidades e atores diversos se somassem à produção de vacinas e insumos. Mas, em função das férias de agosto do órgão, só deve voltar a ser discutida na segunda semana de setembro. Um curioso senso de urgência…

ENQUANTO ISSO…

Mesmo os maiores defensores do licenciamento compulsório de patentes farmacêuticas na pandemia – como nós – concordam que medidas como essa não resolverão de uma hora para a outra o problema de países que não estão conseguindo vacinar minimamente suas populações. Também sabemos que, mesmo no longo prazo, a coisa não é tão simples como pode parecer.

Nesse cenário, é difícil sentir outra coisa que não revolta ao ler reportagens como a do Washington Post (republicada no Estadão) afirmando que milhões de doses de imunizantes em países de alta renda estão em vias de expirar, sem que os governos se disponham a enviar as caixas para o exterior. 

É preciso lembrar, claro, que perdas são comuns e esperadas em qualquer campanha de vacinação, e acontecem pelos mais variados motivos – desde frascos que se quebram no manuseio até panes em refrigeradores. Mas vacinas vencidas nessa longa e desigual pandemia são um problema bem grave. E não há dados exatos – a matéria traz apenas estimativas, com base no que já se sabe sobre algumas cidades ou países. “Não há ninguém que monitore as doses expiradas sistematicamente”, diz Prashant Yadav, especialista em cadeias de suprimentos de saúde do Center for Global Development.

Além das perdas em nações ricas – estima-se que só a Carolina do Norte, nos Estados Unidos, tenha 800 mil doses a vencer em breve –, há outra questão: segundo a OMS, quase meio milhão de doses já venceu no na África na semana passada. O motivo: a maior parte dos imunizantes chega ao continente com uma data de validade já muito curta, devido a atrasos nos embarques. A Libéria, por exemplo, teve apenas duas semanas para distribuir dezenas de milhares de doses da vacina de Oxford/AstraZeneca. Não deu. “Simplesmente não tínhamos tempo suficiente”, disse a ministra da Saúde do país, Wilhemina Jallah. Isso reforça que, se as doações são feitas em cima do laço, há pouca chance de aproveitá-las.

PIOR NOS JOVENS

Uma análise de pesquisadores britânicos sobre coágulos sanguíneos após o uso da vacina de Oxford/AstraZeneca o confirmou que o problema é muito raro, mas acontece com mais frequência entre jovens e traz alto risco de morte. O artigo, publicado ontem no New England Journal of Medicine, examina sintomas e desfechos de 220 casos confirmados e prováveis detectados no Reino Unido. Para para maiores de 50 anos, os coágulos aparecem mais ou menos em uma pessoa a cada 100 mil vacinadas; para os mais jovens a frequência é o dobro – uma em 50 mil. Segundo os autores, nenhum caso foi identificado nas últimas quatro semanas do estudo, depois que o Reino Unido restringiu a aplicação desse imunizante a pessoas com mais de 40 anos.

Vale ressaltar que bulas de medicamentos listam seus eventos adversos muito raros como aqueles que ocorrem com uma frequência menor que 1 em 10 mil. Ou seja, os coágulos estão bem abaixo desse limite e são mesmo muito, muito raros.

Voltando ao estudo: os cientistas viram que, apesar de a maior parte da população idosa ter recebido a vacina, 85% dos coágulos apareceram em menores de 60 anos, sem que houvesse nenhum fator de risco individual anterior. Como se sabe, a síndrome associada ao imunizante, a trombocitopenia e trombose imunológica induzida por vacina (VITT), tem na baixa contagem de plaquetas um de seus sinais. A taxa geral de letalidade foi de 23%, mas, quanto mais baixa a contagem de plaquetas, pior o prognóstico: nos piores casos, a taxa chegou a 73%. Não está claro, porém, se essas mortes se distribuíram igualmente no tempo ou se concentraram no início da vacinação, quando se sabia muito pouco sobre a VITT.

A equipe bolou critérios baseados em cinco pontos para ajudar médicos a identificar a VITT e manejá-la. O tratamento precoce, incluindo troca de plasma sanguíneo, pode aumentar a taxa de sobrevivência em até 90% em alguns casos. “Se os médicos puderem reconhecer essa condição precocemente, administrá-la rápida e corretamente, então isso permitirá a continuidade da distribuição da vacina nos países”, disse Sue Pavord, consultora hematologista dos Hospitais da Universidade de Oxford, que liderou a equipe.

Ela ressalta que os achados não devem inibir o uso do imunizante nos mais jovens onde há ampla circulação do coronavírus, porque, como já está bem estabelecido, nesse caso os benefícios superam largamente os riscos: “Se houver alta prevalência de covid-19, é provável que mais pessoas acabem infectadas e recebam cuidados intensivos e, se tiverem mais de 60 anos, terão maior probabilidade de morrer. Nesse caso, faz sentido dar Oxford/AstraZeneca a todos. Mas quando há uma prevalência mais baixa de covid, um limite de idade seria apropriado. O que é absolutamente crucial considerar é o panorama geral”, pontuou.

MELHOR CENÁRIO OU NOVO COMEÇO?

Pela primeira vez desde outubro de 2020, nenhum estado brasileiro está com mais de 80% das UTIs para covid-19 ocupadas. Comparando com aquela época, há o menor número de estados na zona de alerta intermediário, ou seja, com 60% a 80% de ocupação: são cinco. E, finalmente, 14 estados têm taxas inferiores a 50%. As informações são da edição extraordinária do Boletim Observatório Covid-19 Fiocruz, divulgada ontem. É o melhor cenário do país desde que o grupo começou a acompanhar regularmente a situação, em julho do ano passado. A diminuição nas taxas acontece apesar de vários estados estarem reduzindo os leitos disponíveis, o que é uma notícia melhor ainda. Para os autores, a situação reflete os ganhos da vacinação.

Mas há capitais que despertam bastante preocupação: Goiânia (92%) e Rio de Janeiro (97%) estão há semanas com taxas acima de 90%. Quanto aos estados, os piores são Mato Grosso (79%) e Goiás (787%).

E outro boletim da mesma instituição, o Infogripe, indica que os casos de SRAG (Síndrome Respiratória Aguda Grave) voltaram a subir no país. Projetando a situação atual a partir de dados das últimas três semanas, os pesquisadores viram que há tendência de alta. “Isso é evidência forte de interrupção de queda e sugestivo de retomada do crescimento, que devemos reavaliar nas próximas semanas para confirmar”, diz à Folha Marcelo Gomes, coordenador do InfoGripe. De acordo com ele, o mesmo movimento nas internações e nos óbitos deve ser percebido em breve. A ver.

NOVA TEMPORADA

A OMS informou ontem que vai começar a testar o uso de três anti-inflamatórios em busca de drogas eficazes para pacientes hospitalizados com covid-19. É verdade que já existem alguns tratamentos, incluindo esteróides (baratos) e anticorpos monoclonais (caríssimos), mas a entidade quer ter mais opções para diferentes estágios da doença.

O grande ensaio global, a ser realizado em mais de 600 hospitais em 52 países, se chama Solidarity PLUS. É uma nova fase do Solidarity – que testou quatro remédios no ano passado, incluindo a hidroxicloroquina e remdesivir, e frustrou expectativas ao verificar pouco ou nenhum benefício para os pacientes. 

Os anti-inflamatórios em jogo agora são artesunato, imatinibe e infliximabe. Todos já são aprovados para outros usos: o primeiro é um antimalárico produzido pelo laboratório indiano Ipca; o segundo (da Novartis) trata certos tipos de câncer; e o terceiro (da Johnson & Johnson) é usado o tratamento de doenças autoimunes. Segundo o El Paísnenhum deles vai atacar diretamente o coronavírus; espera-se que suavizem a resposta excessiva do sistema imunológico. As drogas foram selecionadas por um painel de especialistas independentes, e doadas pelos fabricantes para a pesquisa.

UM PASSO

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou ontem o uso emergencial, restrito ao ambiente hospitalar, do medicamento regdanvimabe para o tratamento da Covid-19. O medicamento será usado apenas para casos leves e moderados da doença, no período inicial das infecções e em pacientes que não precisem de uso de oxigênio. Os testes até agora apontaram que o regdanvimabe reduz em 72% o risco de evolução da doença para casos graves. 

A droga é um anticorpo monoclonal de dose única, que auxilia na reprodução de anticorpos que combatem a doença. Importante: esse tipo de anticorpo, produzido em laboratório, não previne infecções e contágios. A orientação da Anvisa é que o remédio seja administrado assim que possível após o teste viral positivo para o novo coronavírus e dentro de sete dias após o aparecimento dos sintomas. 

As instruções sobre o período de tempo e as condições de administração precisam ser seguidas à risca: é que remédios desse tipo podem produzir efeito contrário e agravar o quadro de pacientes que necessitem suplementação de oxigênio ou ventilação mecânica.  

A Anvisa já aprovou o registro do antiviral experimental remdesivir e o uso emergencial de mais dois medicamentos: o Regn-CoV2, da Roche, e a associação dos anticorpos banlanivimabe e etesevimabe, da Eli Lilly.

KIT LUCRATIVO

De um lado, R$ 717 mil gastos em anúncios publicitários para promover o tratamento com ivermectina. Do outro, zero reais para realização de estudos que pudessem comprovar a eficácia do medicamento para o tratamento contra a covid. Essa foi a conta apresentada ontem por Jailton Batista em seu depoimento à CPI da Covid.  Segundo Batista, o dinheiro patrocinou o manifesto assinado por médicos em defesa do “tratamento precoce” publicado em diversos jornais do país em fevereiro. Além disso, a agressiva estratégia de marketing contou com promoção de eventos e participação em lives. 

O empresário, que é diretor do Vitamedic – laboratório cujo carro-chefe é o famigerado medicamento incluído no “kit covid” – contou também que os lucros da empresa dispararam durante a pandemia. De R$ 15,7 milhões em 2019, os números chegaram a R$ 470 milhões no ano passado. Com tanto lucro, eficácia pra quê?

Falando em CPI, o depoente de hoje será Ricardo Barros. O líder do governo na Câmara e ex-ministro da Saúde será ouvido sobre as suspeitas de irregularidades no caso Covaxin. Como se sabe, as acusações feitas pelo deputado Luís Miranda dão conta de que Bolsonaro, ao ser informado sobre os estranhos procedimentos adotados nas negociações para compra do imunizante indiano, teria dito que “isso é rolo do Barros”. 

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