Comunicação e Saúde: como jogar no terreno adversário
Redes misturam informação com entretenimento e rotulam tudo como “conteúdo”. O caminho estaria na luta contra as fake news? Ou na busca por engajamento na tentativa de furar bolhas em plataformas gerenciadas pelos arautos do capitalismo? Eis os debates de nossa nova coluna
Publicado 17/06/2025 às 11:05 - Atualizado 17/06/2025 às 12:02

Título original: A Comunicação e Saúde, suas caudas e pessoas
Hoje apresentamos, com orgulho, nosso novo colunista, Bruno Cesar Dias. Ele é jornalista com mais de 10 anos nas trincheiras da comunicação e saúde, com atuações em diversas entidades, ações e eventos do movimento sanitário. É doutorando pela Ensp/Fiocruz, pesquisador associado aos projetos OGE-SUS/RN (CEE/Fiocruz, Ensp/Fiocruz, DPS/UFPB, NESC/UFRN e Sesap/RN) e MapaMovSaúde (Fiocruz, ICICT/Fiocruz, CNS e MS), além de consultor do Centro Cultural do Ministério da Saúde (CCMS). Trará ao Outra Saúde um debate essencial e que diz respeito à natureza de nosso trabalho: qual o papel da comunicação na Saúde e quais os enormes desafios que se apresentam. Bruno escreverá mensalmente. Fique com seu primeiro artigo para a coluna Comunicação e Saúde nas Redes e nas Ruas.
Chris Anderson, físico computacional que fez carreira no jornalismo econômico e de tecnologia nos Estados Unidos, era editor-chefe da revista Wired quando, em 2004, publicou o artigo “A cauda longa”. O texto ganhou fôlego e virou um livro, alcançando grande circulação e vendagem, sendo incluído na lista dos best-sellers quando lançado, dois anos depois.
A premissa do artigo e do livro é que, com a internet e os processos de automação produtivos possibilitados pelo mundo digital, as formas de produção de mídia iriam passar da produção para as grandes audiências para os mercados de nicho.
Um olhar mais atento dá a perceber que, como boa parte desses autores de não-ficção incensados nas listas de mais vendidos, eles servem de arautos do capitalismo, sistematizando e dando forma palatável e bem-embrulhada das ações já em curso pelas corporações, normalizando os interesses do mercado. Basta olhar as grandes empresas às quais o autor agradece na apresentação: Netflix, Amazon, Google, Yahoo.
Outro aspecto dessa normalização que o livro se propôs foi a venda de uma imagem positiva e democratizante da tecnologia e do futuro do capitalismo. Ao discorrer sobre os modelos de negócios que tomou como exemplo, junto com a sinalização de ampliação das vendas e criação de novos mercados, é destacado como conquista societária o atendimento das demandas de grupos de consumidores que, ao expressar o poder econômico de seus nichos, ganharam produtos do entretenimento voltados para satisfazer seus desejos. E viva a democracia do mercado.
Passados quase vinte anos, a profecia autodeclarada se cumpriu e, junto com os produtos do entretenimento, carregou toda a produção de conhecimento informacional, seja escrito ou falado, com ou sem imagens. Sob o rótulo de conteúdo, tudo foi dragado pela internet para compor esse rabo feito de bytes e pixels.
A comunicação e saúde foi uma das áreas que mais se desenvolveu a partir da produção digital. Antes, centralmente impulsionada pelas ações do poder público e com distribuição concedida e restrita pelo mercado publicitário em rádios e tevês, a disseminação do que agora chamamos de conteúdos comunicativos/informativos de saúde ocupa a vasta cauda longa: são blogs, páginas institucionais de centros de ensino e pesquisa em saúde; sites das grandes empresas de mídia, de veículos de comunicação de nicho, como o nosso Outra Saúde; páginas de destino (landing pages) voltadas a ações de marketing em saúde de todo o tipo de empresa do setor, da Big Pharma às operadoras de saúde; páginas de associações de coletivos de pessoas com agravos e doenças…. e as redes sociais e, cada vez mais, os aplicativos ocupados por essas organizações.
Uma das sacadas dos arautos do capitalismo é saber jogar o foco no que interessa, mostrar como face humana do sistema e deixar passar incólumes as consequências daquilo que vendem e os grilhões que impõem. Ao valorizar a força dos pequenos nichos pelo poder comunicacional fragmentado numa cauda longa, Anderson não destacou (ou simplesmente silenciou) que nem mesmo a cabeça desse corpo corporativo digital, ou seja, as grandes empresas de comunicação, iriam sustentar sua primazia diante do volume de dados concentrados e manipulados por essas empresas que passaram a gerenciar suas produções a partir desse big data e de programações feitas para identificar padrões, cruzar informações e, assim, por meio dos algoritmos, impor seus interesses: as big techs.
Se é fato que nunca se falou e produziu tanto de comunicação e saúde, e sobre os mais diferentes aspectos do setor, do cuidado à gestão, passando pelo uso seguro de medicamentos e informações científicas em linguagem simples e acessível, duramente também descobrimos que, ao adentrar esse novo mundo, a cauda longa se voltaria justamente contra nós, como um chicote.
O que já foi visto como possibilidade de falas horizontais em multiplicidade, hoje é entendido como infodemia. Para detê-la, num mundo no qual essas milhões de mensagens são lidas e triadas por inteligências artificiais para produzir respostas a conceitos distorcidos que percorrem o globo na mesma velocidade das transações financeiras, instituições de pesquisa e organizações internacionais investem tempo, recursos e cérebros em pensar como responder a tantas fake news. Nisso, perde-se o mesmo tempo, recursos e cérebros em fazer ações de comunicação e saúde mais conectadas com as pessoas e os territórios, tanto físicos como digitais, nos quais se dão as dimensões de conexão entre as pessoas e a saúde. Não tem como não admitir que ficamos – nós e o planeta – reféns da miríade molecular digital que nos foi vendida.
Aproximando mais o debate dos pontos que nos unem, nesse cenário de milhões de mensagens por dia veiculadas pelas mais diversas plataformas, em que posição ficam as mensagens e os conteúdos que destacam o SUS e o programa político que edificou e até hoje sustenta a perspectiva de um sistema de saúde universal, baseado na equidade e na participação social? Ou, até mais além: ao se falar sobre SUS na internet, quem ganha: as good news que comunicam e educam sobre as ações e programas do Sistema e que valorizam seus aspectos mais inovadores, ou as fake news que fazem falsas ilações sobre os serviços, que dizem que o SUS, na verdade, tem problema é de gestão, e não de financiamento?
O mundo contemporâneo colocou os movimentos sociais e o pensamento social numa sinuca de pixel: se temos de continuar produzindo comunicação e saúde por meio de notícias e vídeos rápidos para gerar compartilhamento e engajamento na cauda longa, temos de admitir que estamos trabalhando no terreno adversário, e que vamos perder, inundados de fake news e sem os algoritmos para gerar o engajamento que faz bombar as redes.
Se precisamos, como sabemos que precisamos, trabalhar a comunicação e saúde em novos territórios, em novas e distantes linguagens das digitais, sabemos que precisaremos de uma outra relação com as pessoas, corpos e territórios as quais são cada vez mais difíceis de acessar e mobilizar, justamente pelo torpor e condição abissal como nossas vidas tornaram-se digitais, digitalizadas. Furar bolhas e produzir engajamentos cotidianos por uma comunicação e saúde aliada aos princípios do SUS nunca foi tão desafiante. Ao mesmo tempo, nunca foi algo dado. Convido a todos a ocuparmos mais esse espaço digital, a coluna Comunicação e Saúde nas Redes e nas Ruas, para juntarmos evidências, propostas e análises que ajudem nessa tarefa.
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