Como romper os muros da ciência do Norte Global?
Solução para o desafio de integrar o Brasil ao debate acadêmico internacional não deve ser mais subalternidade aos grandes centros de pesquisa. Como estimular as necessárias trocas entre países da periferia do capitalismo? BRICS podem ter papel de liderança nesse cenário
Publicado 12/05/2025 às 06:00 - Atualizado 12/05/2025 às 06:34

Por Marilia Sá Carvalho, Luciana Dias de Lima e Luciana Correia Alves, da Cadernos de Saúde Pública
Título original: Internacionalização da publicação científica em um mundo multipolar
A internacionalização dos periódicos brasileiros vem sendo debatida amplamente e se apresenta como um elemento importante para o fortalecimento da ciência nacional e sua integração ao debate acadêmico em todo o mundo. De forma geral, a internacionalização refere-se ao processo de inserção de revistas, pesquisadores e instituições em circuitos globais de produção, disseminação e avaliação científica. Isso envolve a colaboração entre autores de diferentes países, a presença em bases de dados internacionais e o cumprimento de critérios de qualidade estabelecidos por organismos globais.
Entretanto, frequentemente apresentada como um caminho para promover visibilidade e trocas necessárias, o debate da internacionalização carrega uma série de contradições, especialmente quando observada a partir da perspectiva dos países com menor inserção nos circuitos tradicionais da ciência internacional. Não sem razão, apesar do avanço substancial do Brasil nos últimos anos, ainda é um desafio para o país posicionar suas revistas e respectivas publicações no conjunto dos principais periódicos do mundo.
Em uma vertente mais pragmática, alguns autores apontam os entraves e as estratégias possíveis para ampliação do impacto internacional das publicações brasileiras¹,². Entre as limitações, está a barreira linguística enfrentada por pesquisadores de países não-anglófonos³. SciELO, a grande biblioteca digital de acesso aberto que reúne periódicos científicos de diversos países, sustenta a publicação de artigos em inglês como indispensável ao aumento de citações e dos indicadores de impacto, de forma a ampliar o reconhecimento e a visibilidade das pesquisas e autores à comunidade internacional⁴. Também a baixa diversidade geográfica da composição dos conselhos editoriais, de autores e de revisores é um aspecto que desafia as revistas brasileiras. O corpo editorial de muitas revistas é majoritariamente restrito ao país, o que limita a inserção internacional e o reconhecimento externo. Por sua vez, autores de países centrais somente publicam no Brasil artigos feitos em parceria com autores nativos ou da América Latina.
Outra vertente desse debate questiona o que se entende por internacionalização da ciência e das revistas científicas⁵. Cadernos de Saúde Pública já abordou essa questão em outros fóruns⁶, mas é bom lembrar que apenas seis conglomerados controlam o mercado editorial científico, com margens de lucro espantosas⁷. O acesso aberto, associado à internacionalização, é viabilizado por meio de taxas cobradas dos autores, agências de financiamento e instituições. Estima-se que cientistas tenham desembolsado mais de US$ 1 bilhão em quatro anos para publicar em acesso aberto nesses veículos. Essa concentração e o alto custo dificultam a inserção de periódicos e pesquisadores de países com menos recursos, comprometendo uma internacionalização mais equitativa e inclusiva.
O Portal de Periódicos CAPES, criado em 2000, trouxe acesso aos artigos de mais de 50 mil revistas científicas para cerca de 500 instituições brasileiras, garantindo o acesso ao conhecimento que é produzido no exterior, nos países centrais principalmente. Recentemente, a CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) assinou acordos transformativos com editoras comerciais, garantindo o pagamento das taxas de processamento de artigos (article processing charges – APC). O objetivo é facilitar a transição do acesso por assinatura ao modelo de acesso aberto, o que se justifica por dar maior visibilidade à produção científica e tecnológica nacional. Além disso, a publicação nessas revistas deixará de ser possível somente para os pesquisadores que têm bons financiamentos de projetos, democratizando a publicação. Entretanto, a estratégia de pagar APC para publicar no exterior busca internacionalizar a ciência brasileira e, simultaneamente, transfere volumes expressivos de recursos do país para fora. Em 2025, o contrato da CAPES com a editora Wiley custou US$ 8,3 milhões (dado obtido via Lei de Acesso à Informação, protocolo 23546.018379/2025-17). Em comparação, o edital CNPq/CAPES de 2024 destinou apenas R$ 6 milhões para apoiar 272 periódicos nacionais, o que corresponde a uma média de R$ 22.000 por revista.
Os acordos transformativos combinam internacionalização receptiva, na qual se lê o que está sendo produzido no exterior, e exportadora, que busca divulgar a ciência produzida localmente. Ambos os processos são inerentes a um mundo unipolar, no qual o Sul Global está, por definição, em posição subalterna⁸. O chamado Sul Global é composto por países tão diversos como Brasil, Índia, África do Sul, México, Nigéria, Argentina, Indonésia e outros da América Latina, África e partes da Ásia. Trata-se de uma categoria geopolítica e epistemológica que abrange nações historicamente marginalizadas nos fluxos internacionais de ciência, tecnologia e inovação. Em contraposição, o Norte Global inclui países como Estados Unidos, Reino Unido, Alemanha, França, Canadá, Japão, entre outros, que concentram os principais centros de pesquisa, editam a maior parte dos periódicos de alto fator de impacto e definem os parâmetros de excelência científica em escala mundial.
Nesse contexto, a internacionalização muitas vezes se configura como uma via de mão única, marcada pela subalternidade do conhecimento produzido no Sul Global. Essa subalternidade não é apenas econômica ou tecnológica. Ela se manifesta na validação desigual de saberes, na imposição de normas de publicação, e na ideia implícita de que a ciência feita nos países centrais é universal, enquanto a produzida na periferia é local, contextual e, por vezes, irrelevante para os grandes debates científicos. Isso cria uma hierarquia de conhecimentos, na qual as experiências, problemas e soluções originadas no Sul são invisibilizadas ou consideradas menos legítimas, a menos que sejam filtradas, traduzidas (inclusive simbolicamente) e aceitas por instituições do Norte.
Na Saúde Coletiva/Saúde Pública essa dinâmica tem consequências graves. Práticas e políticas exitosas, como a Estratégia Saúde da Família, muitas vezes não ganham a devida visibilidade global porque são vistas como respostas locais a problemas “regionais”, e não como inovações com potencial de contribuição universal. O resultado é que saberes produzidos em diálogo com realidades complexas, deixam de circular amplamente, enquanto se reforça um modelo de ciência unidirecional, centrado nos países mais ricos e nas grandes editoras internacionais.
Por isso, argumentamos que é necessário rever o sentido da palavra “internacionalização” no campo da publicação científica. Certamente as revistas do Norte Global são internacionalizadas, ou podemos dizer internacionais, mesmo quando no seu nome levam a palavra American. Nesse caso, a revista é internacional por seu papel de concentração de submissões de artigos de todo o mundo, com hegemonia científica desses países e drenagem de recursos que poderiam ser aplicados na produção do conhecimento em si.
Mas queremos uma internacionalização ou múltiplas internacionalizações⁶,⁹? Neste Editorial, procuramos problematizar a internacionalização entendendo-a como um processo com perspectivas distintas. Levar o conhecimento produzido em um país para outros, seja publicando ou incorporando-o às pesquisas desenvolvidas em diversos países, é desejável e necessário. Entendemos a ciência, nas diversas áreas do conhecimento, como um bem público universal. Mas para quem e como levar artigos sobre temas certamente relevantes no cenário nacional para outras realidades que também se beneficiariam desse conhecimento? Pagando APCs? Publicando em inglês¹⁰?
Internacionalização assim, não é uma via de mão dupla, com espaço nos dois sentidos. À medida em que emergem novos polos científicos, a internacionalização não é mais sinônimo da relação com países do hemisfério Norte. O próprio SciELO, pioneiro no acesso aberto, reúne periódicos de 15 países (informação atualizada em 23 de fevereiro de 2025), com 127 revistas no campo das Ciências da Saúde. O acesso à publicação científica, no qual nem autor nem leitor pagam, denominado “acesso aberto diamante”, é essencial para a democratização da ciência, garantindo o acesso livre a leitores e autores de qualquer parte do mundo, e deve ser sustentado por instituições e associações sem finalidade lucrativa, como afirmamos em editorial anterior³.
O papel dos BRICS na liderança de um mundo multipolar pode ser um grande estímulo para a comunicação da ciência produzida em países periféricos, para além da antiga participação como local de coleta de dados. O que é possível para ampliar a internacionalização da publicação científica em contexto de multipolaridade? Analisar a forma como se dá esse processo de internacionalização, tanto considerando as redes de colaboração quanto o local de publicação, é a tarefa que está colocada para construir um modelo multipolar da publicação científica. Mais do que ocupar rankings, trata-se de garantir que o conhecimento produzido no Brasil possa circular, ser reconhecido e contribuir efetivamente para a ciência global.
A ciência é um patrimônio coletivo de todos os povos, culturas e territórios. Assim, os caminhos da internacionalização devem servir para ampliar o acesso, a diversidade e a relevância do conhecimento, e não para reproduzir assimetrias geopolíticas ou epistemológicas. Nem uma única história¹¹, como fala Chimamanda Ngozi Adichie, nem uma ciência limitada a uma só visão de mundo.
1. Pereira DB, Lobão ISL, Lucas ERO. Internacionalização de periódicos científicos brasileiros: exigências requeridas. In: Anais do 28o Congresso Brasileiro de Biblioteconomia, Documentação e Ciência da Informação. https://portal.febab.org.br/cbbd2019/article/view/1948 (accessed on 18/Mar/2025).
2. Santin DM, Vanz SAS, Stumpf IRC. Internacionalização da produção científica brasileira: políticas, estratégias e medidas de avaliação. Revista Brasileira de Pós-Graduação 2016; 13:81-100.
3. Amano T, González-Varo JP, Sutherland WJ. Languages are still a major barrier to global science. PLoS Biol 2016; 14:e2000933.
4. Meneghini R, Packer A. Is there science beyond English? Initiatives to increase the quality and visibility of non-English publications might help to break down language barriers in scientific communication. EMBO Rep 2007; 8:112-6.
5. Robinson-Garcia N, Ràfols I. The differing meanings of indicators under different policy contexts. The case of internationalisation. In: Daraio C, Glänzel W, editors. Evaluative informetrics: the art of metrics-based research assessment. Cham: Springer; 2020. p. 213-32.
6. Fórum de Editores Científicos da Fundação Oswaldo Cruz. A internacionalização dos periódicos científicos brasileiros. http://periodicos.fiocruz.br/sites/default/files/anexos/carta%20forum%20editores%20fiocruz.pdf (accessed on 12/Apr/2015).
7. Ansede M. Scientists paid large publishers over $1 billion in four years to have their studies published with open access. El País 2023; 21 nov. https://english.elpais.com/science-tech/2023-11-21/scientists-paid-large-publishers-over-1-billion-in-four-years-to-have-their-studies-published-with-open-access.html.
8. Bataille P, Dumont L, Wang S. Injonctions à l’internationalisation. Socio-logos 2022; (17). http://journals.openedition.org/socio-logos/6065.
9. Salager-Meyer F. Scientific publishing in developing countries: challenges for the future. J Engl Acad Purp 2008; 7:121-32.
10. Amano T, Ramírez-Castañeda V, Berdejo-Espinola V, Borokini I, Chowdhury S, Golivets M, et al. The manifold costs of being a non-native English speaker in science. PLoS Biol 2023; 21:e3002184.
11. Adichie CN, Romeu J, Carvalho CE. O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia das Letras; 2019.
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