Como digitalizar o SUS sem rendição às Big Techs?
Em debate do Seminário SUS 35 Anos, um dilema: num mundo tomado por tecnologias controladas por megacorporações, como garantir soberania sanitária e digital? Há avanços importantes, mas é preciso mais regulação do Estado e mais poder nas mãos da população
Publicado 29/09/2025 às 11:07 - Atualizado 29/09/2025 às 11:20
Aos 35 anos da lei que regulamentou o Sistema Único de Saúde, grandes desafios se impõem: como as novas tecnologias digitais podem contribuir para ampliar o acesso à saúde? E quais os riscos que estão colocados, em especial a respeito do controle dessas tecnologias pelas Big Techs?
Esse foi um dos debates propostos pelo Seminário SUS 35 anos, organizado pelo Outra Saúde em parceria com o Instituto Walter Leser (IWL/FESPSP), a Fundacentro (MTE) e Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da FCMSCSP.
Na mesa, na manhã da sexta-feira (19), estavam presentes a secretária de Informação e Saúde Digital (Seidigi) do Ministério da Saúde Ana Estela Haddad, o professor titular do Departamento de Política, Gestão e Saúde da Faculdade de Saúde Pública da USP Fernando Aith, e Luiz Vianna Sobrinho, médico, pesquisador de bioética e pós-doutorando no Instituto de Saúde Coletiva da UFBA.
Fernando começou sua fala refletindo sobre o papel do Estado na incorporação de novas tecnologias na Saúde. Para ele, há três competências regulatórias: normatizar, por meio de leis, como deve se dar a transformação digital da saúde; fazer a mediação de conflitos entre os setores público e privado; e induzir o uso de tecnologias que seja benéfico à população em geral.
“Ou seja, já que a transformação digital do sistema de saúde no mundo todo é um fenômeno que vai ocorrer em intensidade e escala cada vez maiores, de que forma as sociedades, por meio do Estado, podem se organizar para induzir uma incorporação dessas tecnologias aos sistemas que seja útil e benéfica à sociedade e aos pacientes? Como evitar que o processo seja de simples incorporação de produtos que podem ser economicamente rentáveis aos seus donos, ou aos profissionais que estão utilizando?”
Segundo Fernando, na União Europeia todas as tecnologias de inteligência artificial que atuam sobre a saúde são consideradas de alto risco – fato bastante identificado na academia, explica. Isso pode ajudar a formatar legislações mais sólidas: “Há uma necessidade de condicionar essas tecnologias a critérios de segurança, qualidade e eficácia a serem supervisionados pelo Estado”.
Uma Reforma Sanitária Digital
Luiz Vianna Sobrinho (leia sua fala completa aqui) propõe dar um passo além da regulação: é preciso pensar em uma Reforma Sanitária Digital, para garantir o controle das tecnologias pelas pessoas que a utilizarão – uma democratização não só no acesso, mas na definição de seus rumos. O médico chega a essa conclusão após confrontar o seguinte dilema: “Como implementar essa transformação de uma potente tecnologia, fortemente desenvolvida e atrelada às forças econômicas do capital, sem acirrar ainda mais as iniquidades sociais e violar a coesão das relações humanas?”
Desenvolvendo essa questão, Luiz cita uma professora da Unifesp, Paola Cantarini, que propõe uma “nova comuna digital”, em que se criem “ferramentas que priorizam justiça social e equidade em detrimento do lucro e controle”. Assim, seria possível reverter a tendência crescente de uma Saúde Digital que expõe as pessoas que a utilizam à mercantilização, à colonização, à vigilância e à fragmentação. E isso se torna mais necessário à medida que percebemos que as máquinas não podem oferecer uma assistência melhor do que os seres humanos.

A Saúde Digital no governo Lula
Ambos debatedores celebram os novos passos dados pelo Ministério da Saúde a partir de 2023, quando foi criada a Seidigi e Ana Estela Haddad foi nomeada secretária. Fernando reconhece que, apesar dos entraves, o trabalho que tem sido feito no Ministério da Saúde está no caminho correto.
Para Luiz, foi um passo fundamental, que nestes anos fez avanços importantes na “integração do prontuário eletrônico interoperável, com sistemas de informação interconectados; com a rede de Telessaúde; a produção e análise de dados para a vigilância e formulação de políticas”.
Ana Estela, em sua fala, detalhou os projetos de sua gestão para integrar o SUS por meio das tecnologias digitais. Ela traçou um panorama de tudo que precisou ser feito para que se organizassem os dados produzidos pelo SUS, quando a sua secretaria foi criada, no início do terceiro mandato do governo Lula.
“Entendendo a diversidade do país, os diferentes estágios de transformação digital”, explica Ana Estela, “criamos um índice nacional de maturidade para a saúde digital para medir o cenário. Trabalhamos com estados e municípios para que fosse estabelecida uma análise do cenário para uma terceira etapa que é a do plano de ação em transformação digital”.
A secretária também detalhou um dos últimos anúncios da Seidigi: unificar os dados dos usuários do SUS por meio do número de seu CPF – um trabalho intrincado, mas que pode ser decisivo para integrar os diferentes níveis de atenção, essencial neste momento em que o Ministério da Saúde busca acelerar as filas de consultas, exames e cirurgias por meio do programa Agora Tem Especialistas.
Ana Estela reafirmou sua preocupação em pensar uma transformação digital que reafirme os princípios da Reforma Sanitária e do SUS. Trata-se de um desafio complexo, segundo ela, pois este “é um campo emergente, um campo em metamorfose. Ele começa de um jeito e, com o avanço das tecnologias, vai se reconfigurando”. Mas, ela reafirma, essas mudanças não podem acontecer sem pensar no contexto do sistema de saúde pública brasileiro.

Soberania digital
Em um mundo dominado pelas Big Techs, a questão da soberania é crucial para garantir a digitalização do SUS sem ampliar desigualdades. Ana Estela confessou que esse é um entrave que está no centro de suas preocupações. “Nós vamos construir uma saúde digital soberana, uma infraestrutura de dados soberana, mas competimos com as grandes empresas, com as Big Techs, numa imensa desvantagem. Eles já estão lá na frente nos mecanismos de arquitetura e de segurança que temos que correr atrás”. Mas, ela garante, uma das diretrizes do governo é a soberania digital.
Fernando Aith defende a regulamentação do setor pelo Estado, para que não haja risco à saúde dos brasileiros, mas também que a população se engaje nesses processos. Um dos aspectos estratégicos, para ele, “é a ideia de letramento em saúde digital, que é fundamental para que os benefícios da inteligência artificial sejam utilizados pela sociedade, visando proteção, segurança e um melhor controle democrático dessas tecnologias”.
Ainda reforçando a necessidade da Reforma Sanitária Digital, Luiz Vianna acredita que “nós talvez só tenhamos a garantia dessa soberania interna com o poder tecnológico ligado à participação popular”.
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