Vacinas: o fura-fila geral dos militares no DF

Ministério Público investiga por que, enquanto o general Heleno e outros insistiam no negacionismo, quase 30 mil fardados foram imunizados antes de sua vez em Brasília. E mais: as novas vítimas do Pegasus, software espião de Israel

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Por Leila Salim Maíra Mathias

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ARAS LÁ

Jair Bolsonaro encaminhou ontem ao Senado a recondução de Augusto Aras ao único cargo capaz de investigá-lo. Se os senadores derem seu aval, Aras ficará por mais dois anos à frente da Procuradoria-Geral da República. Novamente, ele sequer faz parte da listra tríplice resultante das eleições promovidas pela categoria.

O presidente anunciou sua decisão pelo Twitter, bem antes do fim do atual mandato de Aras, que só acaba em setembro. Antecipar a indicação do PGR faz parte da estratégia de Bolsonaro para criar um ambiente favorável à aprovação do “terrivelmente evangélico” André Mendonça para o Supremo, na avaliação de aliados do presidente.

Mas, para Bolsonaro e seu governo, a manutenção de Aras no cargo é fundamental por si só. Assim como Geraldo Brindeiro fazia na era FHC, Aras engaveta – ou tenta engavetar – todas as ações contra o presidente. 

Se dependesse da PGR, a atual investigação de Bolsonaro por prevaricação no caso da Covaxin não teria saído agora; seria colocada de molho até o fim da CPI. 

O presidente também é alvo de um inquérito que apura se ele tentou interferir na Polícia Federal, como denunciou Sergio Moro ao sair do governo. O prazo deste inquérito foi prorrogado ontem por 90 dias pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF. 

De resto, Aras tem segurado todas – batendo de frente com muitos procuradores. O exemplo mais recente ajuda a entender por que Bolsonaro avança com desembaraço pela via do golpismo. Cabe ao PGR o papel de procurador-geral eleitoral, com atuação no TSE (Tribunal Superior Eleitoral).

No início de julho, cinco dos onze integrantes do Conselho Superior do Ministério Público Federal, dentre eles os subprocuradores que compõem a lista tríplice, encaminharam um pedido de investigação de Bolsonaro pelo crime de abuso de poder de autoridade nos recentes ataques ao sistema eleitoral. Até agora, Aras nada fez. Como tudo indica que Bolsonaro não aceitará o resultado das eleições, a recondução de Aras será uma peça importante no quebra-cabeças de 2022.

Um eventual segundo mandato também jogará no colo (ou na gaveta) de Aras o relatório final da CPI da Covid. O grupo majoritário da comissão deve pedir o indiciamento de Bolsonaro ao menos por crime sanitário. Caberá ao chefe da PGR acatar o pedido.

Por outro lado, cabe ao Senado decidir se Aras continua no cargo por mais dois anos. Ele passará por uma sabatina na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), mas a votação é secreta. Com 41 votos favoráveis ele leva. Não parece ser difícil. “Aras tem bom trânsito com o Congresso e era o preferido de senadores para a vaga na corte [STF]”, apurou a Folha. 

“A PGR montou uma força-tarefa para investigar os esquemas de corrupção de municípios e estados — o que deve ser investigado —, mas não moveu uma palha para investigar a roubalheira que estava instalada no Ministério da Saúde”, diz o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), ao UOL. Mas também para ele a recondução para ser favas contadas, porque na entrevista ele afirma que Aras tem a chance de se redimir ao receber o relatório da CPI. 

Diante do novo gesto de desprezo ao processo interno de escolha do PGR, a Associação Nacional dos Procuradores da República defendeu ontem uma mudança na Constituição para tornar obrigatória a escolha de um nome da lista tríplice. Neste ano, a subprocuradora-geral Luiza Frischeisen ficou em primeiro lugar, seguida de Mario Bonsaglia e Nicolao Dino, irmão do governador do Maranhão Flávio Dino (PSB). 

PNI ANULA PNI

Documentos e depoimentos apontam que o Ministério da Defesa agiu para que militares da ativa do Exército, da Aeronáutica e da Marinha lotados no Distrito Federal furassem a fila da vacinação. Ao todo, 29.671 fardados entraram como grupo prioritário, a contrapelo da orientação do Programa Nacional de Imunizações (PNI). 

O caso está sendo apurado pelo MPF em um inquérito civil aberto em junho. Os indícios reunidos nesse inquérito apontam que lotes de vacinas foram destinados com exclusividade às Forças Armadas. Os imunizantes foram enviados ao Quartel-General do Exército em Brasília, que executa a vacinação dos militares. Segundo documentos, as ordens partiram da Defesa para o Ministério da Saúde que, por sua vez, pediu a reserva de imunizantes para a Secretaria de Saúde do DF. 

Acontece que uma nota técnica do Ministério da Saúde publicada em março esclareceu que apenas membros das Forças Armadas envolvidos no atendimento de pacientes ou diretamente nas ações de vacinação deveriam ser considerados como parte do grupo prioritário. Mas a orientação da Defesa incluiu todos os militares, incluindo os administrativos. E, chegando ao Ministério da Saúde, não foi questionada. 

A procuradora da República Ana Carolina Roman, responsável pelo inquérito, se reuniu com integrantes do PNI para entender por que a nota técnica não foi seguida. Recebeu como resposta que “qualquer trabalhador dessa área de Forças Armadas” foi incluído porque nas “Forças Armadas, às vezes o trabalhador faz aquele serviço de gestor e está no campo”. Pois é. 

CENSURA POR CRENÇA

E num país em que as instituições dormem furiosamente, um juiz se sentiu à vontade para censurar parte de uma reportagem que denunciava a troca de vacinas por ouro sem fazer uma audiência sequer para ouvir os veículos responsáveis, os sites Amazônia Real Repórter Brasil.

Air Marin Junior, do 2º Juizado Cível de Boa Vista, concedeu liminar a pedido da defesa de Thatyana Almeida, fisioterapeuta que é funcionária da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde. Ela foi flagrada pela reportagem ao longo de três dias vendendo ouro de forma ilegal na Rua do Ouro na capital de Roraima.

O juiz embasou sua decisão na crença de que haveria “alta probabilidade” de que Almeida tivesse razão. E determinou a retirada de vários parágrafos da reportagem em que ela aparece, determinando multa em caso de descumprimento.

A matéria foi publicada em 24 de junho e faz parte de uma série de reportagens que investiga a aquisição ilegal de ouro extraído da Terra Indígena Yanomami – onde Thatyana Almeida atuou na vacinação das comunidades.

“A troca de vacina por ouro por funcionários da Sesai já foi alvo de denúncia pela Hutukara Associação Yanomami ao Ministério Público Federal. Em abril, lideranças no território informaram que doses de vacina estariam sendo vendidas a garimpeiros em troca de ouro. A Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Povos Indígenas também denunciou o caso para a CPI da Covid”, explica um trecho da reportagem que foi censurado.

Após a publicação da matéria, o Ministério Público Federal abriu investigação para apurar as possíveis ligações de Thatyana Almeida com o garimpo ilegal.

ATAQUES À ESQUERDA

A ex-deputada federal Manuela D’Ávila (PCdoB-RS) é a terceira figura política da esquerda a descobrir que teve seu cadastro alterado no SUS. Quando foi se vacinar ontem, descobriu que constava como morta. 

Na segunda-feira, Guilherme Boulos também informou que teve seus dados alterados na plataforma. No caso dele, o nome dos pais foi mudado para dar lugar a ofensas e xingamentos. E o sistema não registrou sua primeira dose da vacina contra a covid-19, tomada semana passada. 

O primeiro caso aconteceu no início de julho, com Gleisi Hoffmann, presidente nacional do PT e deputada federal pelo Paraná. Ela também foi tomar a vacina e descobriu que estava “morta”.  

O caso de Boulos foi respondido pelo Ministério da Saúde. Quer dizer, mais ou menos. Em nota, a pasta diz que “verificou uma alteração na base do CNS [Cartão Nacional de Saúde] realizada por uma pessoa credenciada para utilizar o sistema de cadastro de dados“. O ministro informou que pediu o bloqueio “da credencial usada nestas ações”. Mas não respondeu sobre a origem das mudanças, nem o que pretende fazer a respeito.

A lei 9.983 prevê prisão de até 12 anos para funcionários públicos que alterem bancos de dados sob sua responsabilidade para beneficiar ou causar danos a terceiros.

“Estas mudanças, evidentemente, não são acidentais. São, isto sim, fruto da cultura dos trolls digitais que chegaram ao Planalto junto a Jair Bolsonaro. Formada em fóruns da internet como o 4chan, essa cultura trabalha com a manipulação das ferramentas digitais para criar problemas para quem será alvo de ataques. A única diferença é que a manipulação digital, agora, está acontecendo em bancos de dados públicos”, escreveu Pedro Doria, n´O Globo. 

ATÉ O TEDROS

O escândalo de espionagem internacional do software Pegasus escalou ontem. O Guardian revelou que além de 180 jornalistas, também 13 presidentes e até o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde foram alvos do interesse de governos, clientes da NOS, empresa israelense que criou o programa. O celular de Tedros Ghebreyesus aparece nas listas a partir de 2019, a pedido do serviço secreto do Marrocos. O Marrocos também pediu a inclusão do número de Emmanuel Macron (França). 

AULAS PRESENCIAIS

Em pronunciamento em rede nacional, o pastor Milton Ribeiro, ministro da Educação, defendeu ontem o retorno às aulas presenciais em todo o país. Em rara aparição, Ribeiro – que na verdade está de férias até agosto e deixou um vídeo gravado – citou organismos internacionais como a Unesco e a Unicef para afirmar que “o fechamento das escolas traz consequências devastadoras” e que crianças e adolescentes não podem ser privados “do aprendizado necessário para a formação acadêmica e profissional deles”.  

Apesar do tom de urgência, a gestão do pastor à frente do MEC, que começou em julho de 2020, não tem se destacado exatamente pela ação e protagonismo na elaboração de soluções para as políticas de educação no contexto da crise sanitária . Por mais irônico que seja, a bandeira prioritária de Ribeiro desde que assumiu a pasta é a regulamentação do homeschooling no Brasil. A educação domiciliar é uma demanda de grupos religiosos conservadores que se baseia principalmente na ideia de que as escolas seriam espaços de “doutrinação”. 

Entre as prioridades e metas enviadas por Bolsonaro ao Congresso para o ano de 2021, a única relacionada à educação era justamente a regulamentação do homeschooling. No pronunciamento veiculado ontem, no entanto, o ministro foi enfático ao afirmar que, caso pudesse, já teria determinado o retorno às aulas presenciais. Ribeiro lembrou que essa decisão compete às redes de ensino dos estados e municípios e disse que o pronunciamento era uma forma de “conclamar” estudantes e profissionais de educação à retomada das aulas presenciais. 

Comparando a situação do Brasil com a de outros países, como Portugal e Chile , o ministro destacou que “vários retornaram às aulas presenciais ainda em 2020, quando sequer havia previsão de vacinação”. Faltou contar que muitas dessas instituições precisaram ser fechadas novamente após os casos de covid-19 voltarem a subir, como lembrou o El País

Ribeiro disse ainda que a abertura não ocorreria “a qualquer preço”, e sim respeitando um protocolo de biossegurança. Defendeu medidas abertamente criticadas por Bolsonaro, como o uso de máscaras e o distanciamento social, afirmando que são sucesso em todo o mundo. Como destacou a Folha, é obrigação constitucional do MEC o apoio a estados e municípios para a implementação das políticas de educação, mas o programa Dinheiro Direto na Escola (que direciona verbas da União para as unidades das redes de ensino da educação básica) vem sofrendo cortes orçamentários. Em 2020, os gastos com essa política pública foram os menores desde 2015. Já neste ano, a única iniciativa do MEC em relação à pandemia foi o aumento de aproximadamente R$ 600 milhões no (defasado) orçamento do programa.

A carência de investimentos em adaptação da estrutura física das escolas vem sendo apontada por pesquisadores e militantes do direito à educação como um dos principais entraves para a retomada das aulas presenciais. 

O Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde) defende que a decisão sobre o retorno às aulas presenciais seja feita de maneira descentralizada, a depender da situação epidemiológica e das condições específicas dos estados e municípios. A opinião é compartilhada pelo Consed (Conselho Nacional dos Secretários de Educação). As duas entidades estiveram reunidas ontem para discutir o assunto. Logo após o pronunciamento do ministro, o Consed divulgou um vídeo defendendo que os gestores regionais decidam sobre a volta às aulas. 

Em grande parte das redes de ensino do Brasil, há indicativo de retorno presencial das aulas a partir de agosto, em diferentes ritmos. Também ontem, Ricardo Nunes (MDB), prefeito de São Paulo, anunciou que as aulas presenciais de sua rede retornarão já no dia 2 de agosto. No estado de SP, apenas 5% da verba destinada à melhoria da estrutura física das instituições de ensino foi utilizada. 

PROTOCOLO NACIONAL

Quase 550 mil mortes depois, parece que há um protocolo nacional para tratamento da covid-19 no horizonte. Ontem, o Ministério da Saúde anunciou que em setembro pretende lançar um guia oficial sobre os cuidados a serem adotados em diferentes fases da doença. O documento chega após sucessivas orientações anticientíficas feitas pelo presidente e seus ministros, destacando-se, é claro, a insistência no denominado ‘tratamento precoce’.  

À frente da iniciativa, está Carlos Carvalho, médico e professor da USP. Ele lidera, desde março, o grupo que trabalha na elaboração do protocolo. O guia é voltado para a sistematização de práticas para cada um dos momentos de tratamento da covid-19, desde a fase pré-hospitalar até os cuidados de sequelas pós-covid. Dezenas de sociedades médicas e científicas estão envolvidas na redação do documento. 

A linha de cuidados nacional será composta por um conjunto de protocolos específicos. Quatro deles já foram aprovados e, entre agosto e setembro, outros cinco serão apresentados à Conitec, comissão responsável pela análise das tecnologias que são incorporadas ao SUS. Como contou a Folha, em maio, um parecer feito pelo grupo apontou que hidroxicloroquina, cloroquina, azitromicina, ivermectina e outros medicamentos não eram recomendados para o tratamento de pacientes hospitalizados. 

Ontem o ministériodeclarou que o uso de proxalutamida – a ‘nova cloroquina’ de Bolsonaro – ainda não está sendo considerada e que a decisão só será tomada após a análise dos resultados dos testes autorizados pela Anvisa. 

Mas as práticas anticientíficas na saúde parecem estar longe do fim. Marcelo Queiroga nomeou, recentemente, a médica bolsonarista Mara Regina Carvalho como nova diretora-geral do Hospital de Ipanema, no Rio. Para se ter uma ideia, ela já afirmou publicamente que defende os tais ‘tratamentos precoces’, questionou a eficácia de vacinas, do uso de máscaras e duvidou das estatísticas oficiais sobre o número de mortos durante a pandemia. O pacote completo do negacionismo à frente de um hospital federal

MAIS INDÍCIOS

E-mails entregues à CPI comprovam que Miguel Ragone de Mattos, secretário-executivo-adjunto do Ministério da Economia, acompanhou as discussões das minutas da MP das vacinas. As mensagens arrastam mais um pouquinho a pasta de Paulo Guedes para o centro das decisões que atrasaram a vacinação no Brasil. Como resumimos ontem, a MP está sob os holofotes das investigações porque um dispositivo que facilitava a compra de imunizantes da Pfizer e da Janssen simplesmente sumiu do texto publicado em janeiro. 

DEU UM PERDIDO

O deputado Luís Miranda não falou ontem à Polícia Federal sobre as denúncias envolvendo as negociações do imunizante Covaxin. A pedido do parlamentar, a oitiva foi adiada e só deve acontecer em agosto. Ele não chegou a explicar por que quis desmarcar o depoimento. A solicitação, no entanto, ocorreu no mesmo dia em que o irmão do deputado, o servidor Luis Ricardo Miranda, afirmou não ter mais as mensagens que comprovariam a pressão sofrida para favorecer a importação da Covaxin. 

Enquanto isso, a PF pediu à ministra Rosa Weber, do STF, que decida se Luis Miranda deve ser investigado por denunciação caluniosa. A solicitação foi feita pelo ministro da Justiça, Anderson Torres.

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