O dia em que Bolsonaro entregou-se ao Centrão

Acossado por queda de popularidade e escândalos, presidente tenta blindar-se cedendo ao bloco mais fisiológico do Congresso. Ao fazê-lo, reúne força parlamentar considerável. Mas envereda na trilha em que sucumbiram seus antecessores

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Por Leila Salim e Maíra Mathias

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NO CORAÇÃO DO PODER

Numa das mais importantes manobras de seu governo, Jair Bolsonaro selou ontem o ingresso do Centrão no coração do poder. O presidente nacional do Progressistas, Ciro Nogueira, vai assumir a Casa Civil, dando fim ao ciclo de generais no comando da principal pasta da Esplanada. Caberá a ele, que é senador pelo Piauí, nada menos do que a coordenação entre os ministérios e a nomeação dos principais cargos do governo.    

Parar abrir espaço para o Centrão e manter canetas na mão dos correligionários mais próximos, Bolsonaro promoveu nova dança das cadeiras. Onyx Lorenzoni, inventor do célebre “lockdown dos insetos”, mudará de pasta pela quarta vez. O presidente resolveu recriar o Ministério do Trabalho para abrigá-lo. Já o atual chefe da Casa Civil, general da reserva Luiz Eduardo Ramos, vai ocupar a Secretaria-Geral da Presidência no lugar de Onyx. 

“Eu não sabia, estou em choque. Fui atropelado por um trem, mas passo bem”, desabafou Ramos em entrevista ao Estadão. Mas nem todo mundo foi pego de surpresa pela movimentação. De acordo com O Globo, Nogueira já vinha sendo sondado pelo senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ) e o ministro das Comunicações, Fábio Faria. Segundo Mônica Bergamo, Nogueira recebeu uma ligação para tratar do assunto ainda na segunda-feira

De modo que, terça à tarde, Bolsonaro e Paulo Guedes começaram a acertar o desmembramento do superministério da Economia, liberando as áreas de Trabalho e Previdência para a reforma ministerial.

Na mesma tarde, durante uma reunião com três ministros, o presidente ligou para fazer o convite oficial. Deve ter sido um momento e tanto para Ciro Nogueira: de férias em uma praia no México, ele topou assumir o posto-chave da Esplanada. 

Só depois disso, Ramos e Onyx foram chamados ao gabinete presidencial e comunicados de que precisariam deixar seus cargos. E, então, começaram os vazamentos para a imprensa. Ainda na noite de terça, a pedra foi cantada para a jornalista Natuza Nery

Na quarta de manhã, foi a hora de testar as redes. “Estamos trabalhando uma pequena mudança ministerial”, disse Bolsonaro em entrevista à rádio Jovem Pan de Itapetininga.

PRÓS E CONTRAS

O resultado disso tudo pode ser muito bom ou muito ruim para o presidente. Ao escolher Ciro Nogueira para a Casa Civil e criar mais um ministério, Bolsonaro se distancia ainda mais da imagem anti toma lá, dá cá que conseguiu construir na campanha eleitoral de 2018. A quantidade de escândalos de corrupção cercando sua família e seu governo, porém, já tinha tornado isso bastante difícil. 

Ciro Nogueira responde a inquéritos por suspeita de receber propina da Odebrecht e da JBS, e tentativa de atrapalhar a Lava Jato. Num longínquo 2017, já chamou Bolsonaro de “fascista”. E preside o PP, que está no centro das atenções da CPI – Ricardo Barros, líder do governo na Câmara, dragado para o centro do caso Covaxin e orbitando em outras maracutaias levadas a cabo por Roberto Dias no Ministério da Saúde, é do partido.

O bloco de partidos fisiológicos que reúne cerca de 150 parlamentares no Congresso já havia fincado bandeira em três ministérios: Secretaria de Governo (Flávia Arruda – PL), Comunicações (Fábio Faria –PSD) e Cidadania (João Roma – Republicanos).

Entre os bolsonaristas-raiz no Congresso, a ida de Nogueira para a Casa Civil foi recebida com silêncio. A coluna Painel tentou falar com gente como Carla Zambelli (PSL-SP) e Major Vitor Hugo (PSL-GO), que preferiram não comentar. “Nas redes sociais, o assunto não existiu”.

Ramos foi mesmo o único a colocar um pouquinho a boca no trombone. Na mesma entrevista ao Estadão falou: “Se eu estivesse sendo trocado por alguém formado em Oxford ou Harvard, tudo bem, poderiam dizer que falhei. Mas é por um político aliado do presidente, é assim que funciona”. Ontem de noite, porém, já estava fazendo post em que aparece sorridente ao lado de Bolsonaro no jogo do Flamengo. Na foto, ele é o único sem máscara.

Na avaliação de Lauro Jardim, “a alteração é uma indicação inequívoca de fragilidade do governo”. O colunista especializado em política continua: “O governo capitulou. Antes da posse, o bolsonarismo desdenhava o Centrão, hoje precisa dele para sobreviver. Cada palavra do célebre ‘Se gritar pega Centrão, não fica um meu irmão’, cantarolado em tom de superioridade pelo general Augusto Heleno na campanha de 2018, teve que ser engolida goela abaixo.”

Por outro lado, a ida de Ciro Nogueira para o “miolo do poder”, como descreve Lauro, parece apresentar um conjunto de vantagens para Bolsonaro no curto prazo e no prazo que importa: a campanha eleitoral de 2022

Em um primeiro momento, Bolsonaro agrada a base aliada, que estava insatisfeita com a performance de Ramos na Casa Civil. Ao nomear pela primeira vez em seu governo um senador para a Esplanada, o presidente risca da lista esse déficit que tinha com a Casa, difícil de entender.

Segundo o Estadãonos próximos meses Bolsonaro aposta em um tripé para elevar sua combalida popularidade: vacinação mais rápida, novo Bolsa Família – a ser anunciado em breve – e retomada do emprego, tudo isso num cenário sem variantes-surpresa do novo coronavírus e em que a economia se recupera. A base aliada feliz também aumenta as chances de aprovação das reformas liberais de Guedes, perspectiva que deve continuar a impedir que a Faria Lima pule para o barco do impeachment.

Há ainda dois elementos que ganham destaque nas reportagens sobre a movimentação de ontem. Número 1: haveria no Planalto o temor de que Ciro Nogueira se distanciasse do governo Bolsonaro. Nogueira seria candidato ao governo de seu estado, o Piauí, comandado por Wellington Dias, do PT. Ele estava particularmente irritado na semana passada depois que Dias conseguiu a liberação de R$ 800 milhões do Banco do Brasil, operação autorizada pelo Ministério da Economia. Agora, Nogueira já admite a pessoas próximas que deve abrir mão de entrar na disputa.

O rearranjo também pode impactar o destino partidário de Bolsonaro. “Sem legenda, o presidente demonstrou interesse em se filiar a uma sigla menor, como o Patriota, onde não há consenso para receber o chefe do Executivo. Os principais aliados de Bolsonaro, porém, sempre defenderam que ele buscasse um partido estruturado e com musculatura para fazer frente a um duelo com o PT nas próximas eleições”, escreve Jussara Soares, n´O Globo.

E A CPI?

Os senadores do G7 afirmam que a ida de Ciro Nogueira para o governo não vai minar a oposição que o grupo majoritário na CPI tem feito ao governo. “Não muda nada porque nós sete mais os cinco suplentes temos uma unidade muito sólida. Não vamos recuar em absolutamente nada”, disse Otto Alencar (PSD-BA) à coluna Painel. 

E quem vai substituir Nogueira, que é titular na comissão? Tudo indica que o cloroquiner Luis Carlos Heinze (PP-RS). Se já ouvíamos muito, agora vamos ouvir falar antes de Rancho Queimado…

VOLTA REBAIXADA

A extinção do Ministério do Trabalho foi um dos símbolos mais fortes das promessas ultraliberais que sopravam no início do governo Bolsonaro. Sua recriação para abrigar um aliado, no entanto, não deixa de ser menos simbólica do entendimento que o bolsonarismo tem da coisa pública.

A pasta deve ser recriada por medida provisória com novo nome (também altamente simbólico): Ministério do Emprego e Previdência. 

Nesse cenário, as centrais sindicais não receberam com otimismo a recriação do ministério. “É uma medida com fins eleitorais, voltada às eleições de 2022, com a qual Bolsonaro, desesperado ante as pesquisas e a CPI, busca alocar mais apoiadores no governo”, diz Sérgio Nobre, da CUT.

Guedes quer manter alguma influência no novo ministério e tenta emplacar a indicação do secretário especial de Previdência e Trabalho, Bruno Bianco, para o cargo de secretário-executivo, o número 2 da pasta.

ENQUANTO ISSO…

Bolsonaro aproveita a renovação dos votos com a base aliada para radicalizar. Ontem ele encaminhou ao Congresso um projeto de lei para criar o Dia Nacional do Nascituro e de Conscientização sobre os Riscos do Aborto. Sim. A manobra resgatou a desaparecida Damares Alves, que aparece em um vídeo ao lado do presidente.  

Falando em radicalização, vem à tona um fato de 14 dias atrás, mas que demarca muito bem onde os planos do núcleo duro do governo: Braga Netto teria enviado o seguinte recardo a Arthur Lira (PP-AL) por meio de um interlocutor: “O general pediu para comunicar, a quem interessasse, que não haveria eleições em 2022, se não houvesse voto impresso e auditável”, revela o Estadão. Só não vê onde tudo isso vai dar quem não quer.

RECURSOS LIBERADOS

No mesmo dia em que anunciou sua “pequena reforma ministerial”, Bolsonaro afirmou que as pastas terão recursos desbloqueados. As mudanças no primeiro escalão do governo virão acompanhadas do descontingenciamento integral das verbas previstas no Orçamento para os ministérios. Segundo o presidente, o aumento recorde da arrecadação federal no primeiro semestre possibilitará a liberação de R$ 4,5 bilhões. 

O Ministério da Educação é hoje o maior afetado pelo bloqueio de recursos (com R$ 1,6 bilhão contingenciado), mas a situação é generalizada e afeta até a Saúde (R$ 26 milhões).

A Receita Federal divulgou ontem que a arrecadação chegou a R$ 137,2 bilhões em junho. O valor, que representa a soma de impostos e contribuições federais, é o maior para meses de junho desde 2011. O aumento real em comparação ao mesmo período no ano passado é de 46,8%. Já o total arrecadado no primeiro semestre deste ano passa de R$ 880 bilhões. 

Bolsonaro classificou o aumento como “assustador” e se disse “positivamente preocupado” com a subida na arrecadação. Paulo Guedes comemorou os resultados e os atribuiu à recuperação da economia, indicando que os números permitirão a aprovação da fatia da reforma tributária enviada no mês passado ao Congresso. A intenção é alterar o Imposto de Renda reduzindo o valor cobrado de empresas e ampliando a faixa de isenção para pessoas físicas. 

Como perguntar não ofende, resta saber se o recorde bilionário na arrecadação do fundo público irá reverberar em medidas de “austeridade” como o teto dos gastos e impactará de alguma forma o financiamento de políticas públicas em tempos de recorde de desemprego e volta da fome. 

JUSTA CAUSA 

Recusar-se à vacinação contra a covid-19 pode gerar demissão por justa causa. O Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo decidiu na última segunda-feira sobre o caso de uma auxiliar de limpeza que se negou a ser vacinada e foi demitida pela empresa terceirizada que a empregava, que atribuiu justa causa à demissão por caracterizar o ato como “indisciplina”. 

A trabalhadora fazia parte do grupo prioritário para vacinação, por atuar em ambiente hospitalar. O advogado da trabalhadora argumentou que a demissão seria abusiva, mas a Justiça entendeu que, ao deixar de se imunizar, ela colocaria em risco a saúde de colegas e pacientes. A decisão foi tomada em segunda instância, e por unanimidade. 

O Ministério Público do Trabalho já havia sinalizado, em fevereiro, que quem se recusasse a se vacinar sem apresentar razões médicas comprovadas poderia estar sujeito à demissão por justa causa.  O MPT reforça, ainda, que as empresas precisam atuar para conscientização e informação de seus funcionários sobre a vacinação. 

SEGUE O FURA-FILA MILITAR

O esquema de vacinação secreta dos militares  da ativa do Exército, da Aeronáutica e da Marinha no Distrito Federal foi além do que já se sabia: entraram também no jogo 130 servidores da Abin, a Agência Brasileira de Inteligência, que contaram com a atuação direta do Exército para furar a fila. 

A constatação é do Ministério Público Federal em Brasília. Segundo o MPF, uma lista secreta de nomes foi enviada ao Exército que, por sua vez, moveu as peças para que os servidores da Abin fossem imunizados junto aos militares da ativa que estão furando a fila no DF. De acordo com nota técnica editada pelo Ministério da Saúde, só teriam direito à vacinação como grupo prioritário os militares diretamente envolvidos nas ações de combate à pandemia. 

VOLTOU ATRÁS

Nomeada em um dia, suspensa no outro. Mara Regina Carvalho, a médica pró-cloroquina e antimáscara que havia sido nomeada por Queiroga como diretora-geral do Hospital de Ipanema, não deve mais assumir a função. Ontem comentamos sobre o currículo negacionista da ex-futura diretora do hospital federal. Mas ontem mesmo o ministro da Saúde parece ter voltado atrás. Logo após suspender a nomeação, no entanto, Queiroga negou que a desistência tenha sido motivada pela defesa pública da cloroquina e demais declarações da médica. Segundo ele, todos os diretores de hospitais federais do Rio de Janeiro serão avaliados para a função, inclusive Carvalho. 

ACORDO BILIONÁRIO

A crise dos opióides nos Estados Unidos ganhou um novo capítulo. Três dos maiores atacadistas e um grande fabricante da indústria farmacêutica chegaram a um acordo no valor de US$ 26 bilhões para buscar finalizar cerca de três mil ações judiciais movidas por governos estaduais, condados e municípios. As empresas são acusadas de fomentar o vício em opióides, detonando a crise que, em quase 20 anos, causou a morte de 500 mil pessoas no país. 

Os atacadistas McKesson, AmerisourceBergen e Cardinal Health pagarão cerca de US$ 21 bilhões ao longo dos próximos 18 anos. Já a Johnson & Johnson concordou em pagar US$ 5 bilhões em nove anos e, também, deixar o mercado de opióides. Além de terem falhado no monitoramento das remessas dos medicamentos, os gigantes da indústria são acusados de minimizar o risco do vício em analgésicos e, também, atuar fortemente em lobbies para que médicos os prescrevessem massivamente. 

Os governos têm, agora, 30 dias para assinar o acordo. A expectativa é que mais de 40 estados aceitem, de acordo com o procurador-geral da Carolina do Norte, Josh Stein. No entanto, ontem mesmo o procurador-geral de Washington, Bob Ferguson, rejeitou o acordo e considerou o valor insuficiente. Movimentos e grupos de saúde pública dos Estados Unidos defendem que os fundos sejam investidos em programas de saúde locais, políticas de prevenção e ações que levem em conta a igualdade racial.

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