Censo das UBSs traz raio-x inédito do SUS

Membro da coordenação do levantamento que reuniu dados de todas as Unidades Básicas de Saúde do Brasil fala sobre seus resultados. Os dados são um retrato da atenção primária no país, que mostram desde o acesso a médicos às fragilidades e necessidades do sistema

Créditos: Prefeitura Municipal de Maringá
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Foi concluído o Censo das Unidades Básicas de Saúde, iniciativa do Ministério da Saúde que significa um exame de profundidade inédita das condições de cada estabelecimento da Atenção Primária à Saúde. Pilar fundamental do SUS, as UBSs são o braço mais capilarizado do sistema de saúde nacional e alcançam, virtualmente, toda a população.

Em entrevista ao Outra Saúde, Aylene Bousquat, professora da Faculdade de Saúde Pública (USP) e membro da equipe de coordenação do Censo, analisou em detalhes os dados compilados pela pesquisa. “O Censo traz elementos que contribuem para a formulação de políticas mais customizadas, que considerem a diversidade brasileira, os muitos Brasis”, sintetizou.

Como explicado em reportagem anterior, o Censo foi realizado a partir da própria adesão dos municípios brasileiros, cuja participação foi considerada total, e cada unidade de saúde indicava um responsável pelo preenchimento de um longo questionário.

Com isso, tem-se em mãos informações que vão de pequenas a grandes necessidades, como pequenas reformas na estrutura ou aquisição de novos equipamentos. Além disso, o Censo compila dados sobre o próprio corpo de profissionais do SUS, em esforço que ainda será ampliado no recém-lançado Censo da Força de Trabalho do SUS. A este respeito, a pesquisa já realizada traz dados preciosos sobre a efetividade e alcance do sistema de saúde nacional.

“Uma coisa que repercutiu na mídia foi a informação de que 47% das UBSs têm um médico só, como se isso fosse um problema. Na verdade, é uma conquista, porque nós temos cerca de 96% das UBSs brasileiras com médicos e enfermeiros. O alcance das equipes de saúde bucal é um pouco menor chegando a cerca de 74% das UBSs, mas vale lembrar que o Brasil é um dos únicos países do mundo onde existe saúde bucal na atenção primária de forma gratuita e universal.”

Na análise de Bousquat, autora do livro Atenção Primária à Saúde em Municípios Rurais Remotos no Brasil, tais números não poderiam ter sido alcançados sem a retomada do programa Mais Médicos, que voltou a espalhar profissionais pelo território nacional, após o flagrante desmonte do governo Bolsonaro.

No entanto, não são apenas médicos que fazem o SUS no Brasil. Para Bousquat, o Censo também comprova a importância da Estratégia de Saúde da Família (ESF), que lança mão de outros profissionais na oferta do serviço de saúde — inclusive fora das unidades, a exemplo dos Agentes Comunitários de Saúde.

“Estamos comemorando 30 anos da ESF e o censo identificou que ela voltou a ser uma prioridade na política de saúde brasileira. A ESF está presente em 88,4% das UBSs e no Nordeste chega a 93,4%. Diversos estudos demonstram o impacto da ESF nos indicadores de saúde, bem como sua capacidade de diminuir as iniquidades em saúde. A dimensão comunitária e territorial é um dos elementos centrais na explicação destes resultados”, explicou.

Outro aspecto chave do Censo é a ascensão da saúde digital. Trata-se de um avanço tecnológico inerente à atualidade, que não só pode ampliar a eficiência da abordagem ao paciente como também promover uma universalização definitiva do SUS, considerando que algumas condições específicas ainda isolam parte dos brasileiros de uma unidade de saúde.

“A partir de conexões de internet, pode-se diminuir o deslocamento das pessoas, especialmente nos municípios e áreas onde as pessoas moram longe e a distribuição de médicos especialistas e de outros profissionais é desigual”, pontuou ela.

Leia a entrevista completa com Aylene Bousquat.

Qual a importância de realização do Censo das UBS, que colheu informações de cerca de 49.738 unidades básicas de saúde no Brasil? O que o Ministério da Saúde pode fazer com este manancial de informações?

A última análise da estrutura de todas as UBSs brasileiras foi em 2012, mas pela primeira vez foi realizada a avaliação da estrutura e das atividades de todas as UBSs. Foi um processo absolutamente ímpar no mundo, e o mais interessante é que foi por adesão. Ao aderirem, os municípios deveriam identificar quais das suas unidades eram de atenção primária e depois indicar quem responderia ao questionário. Foi um processo que incluiu os estados e os municípios, e chegou às quase 50 mil unidades básicas de saúde brasileiras em tempo recorde.

O questionário, elaborado a muitas mãos, foi construído a partir da uma concepção de atenção primária não limitada à dimensão individual do cuidado das pessoas, mas que incluía também a promoção da saúde, a abordagem comunitária e territorial, bem como a integração da APS à rede de serviços. Consideramos a necessidade das pessoas, que algumas vezes, precisam circular por todo o sistema de saúde para ter suas necessidades atendidas.

O Censo é um retrato da APS brasileira que permite identificar lacunas e avanços. As lacunas podem orientar investimentos, tanto na estrutura quanto na formação das trabalhadoras e trabalhadoras do SUS, bem como na melhoria da integração com o sistema de saúde como um todo.

Os resultados estarão disponíveis para os municípios e estados, poderão orientar políticas e contribuir para diminuir as desigualdades no acesso aos serviços de saúde.  O Censo traz elementos que contribuem para a formulação de políticas mais customizadas, que considerem a diversidade brasileira, os muitos Brasis.

Em sua visão, quais os dados mais relevantes colhidos no Censo?

Muitos elementos. Uma coisa que repercutiu na mídia foi a informação de que 47% das UBSs têm um médico só, como se isso fosse um problema. Na verdade, é uma conquista, porque nós temos cerca de 96% das UBSs brasileiras com médicos e enfermeiros. O alcance das equipes de Saúde bucal é um pouco menor chegando a cerca de 74% das UBS, mas vale lembrar que o Brasil é um dos únicos países do mundo onde existe saúde bucal na atenção primária de forma gratuita e universal.

Identificamos também que diversas ações são realizadas por praticamente todas as UBS, como por exemplo, pré-natal, coleta de exame preventivo de câncer de colo de útero, acompanhamento de usuários com hipertensão e diabetes. Precisamos aumentar algumas ações como por exemplo a busca ativa de mulheres com mamografia atrasada e a avaliação multidimensional da pessoa idosa.

Em municípios com maior densidade populacional seria interessante que tivéssemos duas Equipes de Saúde da Família por UBS, garantindo uma maior atuação tanto na própria UBS quanto na comunidade, no território, mas isso significa mais investimentos.

Identificamos também a ausência de equipamentos importantes em parte das UBSs, que podem ser revertidos rapidamente com políticas direcionadas, o que certamente contribuirá para a melhoria do cuidado.

A partir dos dados do Censo, o ministério elaborou um kit com uma série de equipamentos que vão ser fornecidos para 10 mil UBS brasileiras. Só isso já é um resultado fantástico.

Como analisa o Mais Médicos neste contexto? O programa é suficiente para fixar profissionais em áreas onde o número de médicos é baixo ou até inexistente?

É preciso dizer que o número de médicos e médicas em UBS só foi atingido por conta dos Mais Médicos, um programa cuja estratégia foi fundamental para garantir a presença de tais profissionais em praticamente todas as UBSs brasileiras. O desafio que o Censo identificou foi a necessidade de aumentar a formação das médicas e médicos, enfermeiras e dentistas na saúde da família.

O Censo também atesta o avanço da Estratégia de Saúde Família como método de abordagem do SUS na atenção primária. Qual o significado disso, em sua visão?

Estamos comemorando 30 anos da ESF e o censo identificou que ela voltou a ser uma prioridade na política de saúde brasileira. A ESF está presente em 88,4% das UBSs e no Nordeste chega a 93,4%. Diversos estudos demonstram o impacto da ESF nos indicadores de saúde, bem como sua capacidade de diminuir as iniquidades em saúde. A dimensão comunitária e territorial é um dos elementos centrais na explicação destes resultados.

Aqui, a figura do agente comunitário é central, realmente faz diferença na qualidade da APS. É um sucesso tão grande que hoje vários países têm vindo se inspirar na nossa experiência. O custo-benefício é excelente.

O Censo mostra que deve se investir na ampliação da mão de obra do SUS, nas mais diversas especialidades?

É importante reforçar as Equipes de Saúde da Família. Observamos também que 41,9% das UBSs contam com equipes de apoio multiprofissional, as categorias mais frequentes neste apoio são psicólogos, nutricionistas e fisioterapeutas. Este apoio contribui muito, em especial, no cuidado das pessoas com doenças crônicas, como hipertensão e diabetes.

Seria importante ampliar a cobertura do apoio multiprofissional, bem como das equipes de saúde bucal, e é claro fortalecendo a formação destes trabalhadores. Vale lembrar, que mudanças no financiamento no governo passado levaram à diminuição do número de profissionais das equipes multi, mas que, felizmente, este quadro já está em reversão.

Como analisa o PAC em relação ao seu programa de investimento na reforma e construção de novas UBS? O que poderia inovar em relação ao que se tem hoje?

É fundamental. No Censo, 60% das UBSs indicaram que precisam de algum grau de reforma. Isso pode ser desde reformas pequenas, pinturas de parede, até praticamente uma unidade nova. É bastante variável. Soma-se a isso que, nos últimos 5 anos, 18% das UBSs foram afetadas por algum evento climático. É um número assustador. Tem ainda a questão da manutenção dos equipamentos. São diversos pontos da estrutura física que um pacote de investimentos como o PAC auxilia.

Devemos pensar numa política que possa responder tais necessidades de uma forma mais rápida. O PAC é essencial, mas o Censo também trouxe informações específicas que permitem políticas mais direcionadas. Há unidades, por exemplo na região norte, que tem intermitência no fornecimento de luz elétrica, precisam de geradores, energia solar, formas de captação para funcionar. E sem luz, não tem internet, não funciona a sala de vacina entre tantas outras coisas.

O que o Censo revelou da integração digital e conectividade das UBSs dentro do contexto social brasileiro? Seria o pulo do gato para tornar universalizar de vez o SUS?

É superimportante. A partir de conexões de internet, pode-se diminuir o deslocamento das pessoas, especialmente nos municípios e áreas onde as pessoas moram longe e a distribuição de médicos especialistas e de outros profissionais é desigual. O Censo identificou que quase todas as UBS têm acesso à internet, mas a qualidade da conexão varia muito e evidentemente as unidades da região Norte são as que têm maiores dificuldades.

O telessaúde tem muito a ajudar, é possível fazer exames e analisá-los a distância, sem que a pessoa precise se deslocar. É possível fazer teleconsulta com médico(a) e/ou enfermeiro discutindo com o usuário, entre tantas outras possibilidades. Hoje já se faz exames com um profissional orientando e observando a distância, o que pode agilizar processos ou até evitar que pessoas sejam encaminhadas desnecessariamente para ambulatoriais especializados.

A atenção secundária é, hoje, outro tema objeto de discussão e de novas políticas como o “Agora Tem Especialistas”. O ideal é encaminhar as pessoas que realmente precisam desse cuidado, enquanto a maior parte permaneça sendo cuidada na atenção primária, com qualidade e efetividade, ou seja, uma boa e necessária atenção especializada está imbricada com uma APS de qualidade e efetiva.

Portanto, realmente a saúde digital será fundamental para o avanço do SUS. É uma fronteira que exige futuros investimentos e ocupará lugar central. Eu não tenho a menor dúvida.

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