Carta de Antonio Andrioli sobre CTNBio

.

Senhor Presidente e demais membros da CTNBio (Comissão Técnica Nacional de Biossegurança), estou nessa comissão desde 03/11/2011, como especialista em Agricultura Familiar, completando no dia 04/11/2017 seis anos de mandato, com duas renovações, o prazo ininterrupto máximo para participar dessa comissão de acordo com nosso Regimento Interno (Art. 10 da Portaria MCT nº 146, de 06.03.2006).

Ao longo desse período, tive a oportunidade de analisar processos das empresas proponentes, discutir e votar pareceres, o que me exigiu considerável tempo para estudar os eventos em questão, tendo por base estudos constantes em bibliografias nacionais e internacionais, bem como a legislação em vigor para a tomada de decisões. Sempre pautei minhas ações na necessidade de compreender cientificamente os processos em curso, seus efeitos para a saúde humana e animal, o meio ambiente e a sociedade, em especial para a agricultura familiar, que aqui represento na vaga de especialista.

Reconheço, também, a grande oportunidade de poder conhecer detalhadamente todos os eventos aqui apresentados e de poder interagir com os demais colegas membros, a quem agradeço profundamente.

Entretanto, é necessário afirmar que, com base na minha experiência de participação na CTNBio, a realidade de aprovação generalizada de eventos transgênicos no Brasil está muito distante daquilo que a sociedade pode imaginar ao consumir produtos deles derivados, nos quais deve constar em rótulo a informação que passaram pela análise técnica dessa comissão. Inicio dizendo que, diferente do que estabelece o Art. 225 da Constituição Federal de 1988 em seu Inciso IV, não são apresentados estudos prévios de impacto ambiental, atestando a inexistência de riscos ao meio ambiente. As Liberações Planejadas no Meio Ambiente (LPMAs) se restringem a avaliar a eficácia das tecnologias e são pobres em detalhes até sobre esta questão.

Além disso, a decisão técnica que assegura inexistência ou irrelevância daqueles riscos se baseia, quase exclusivamente, em estudos realizados pelas próprias empresas interessadas na aprovação dos seus eventos. Poucos têm sido os casos em que os estudos produzidos pelas empresas são minuciosamente confrontados com estudos independentes, apesar destes últimos estarem cada vez mais disponíveis, especialmente em nível internacional. Nas oportunidades que presenciei a apresentação de estudos independentes, inclusive através dos meus pareceres, foi muito recorrente o comportamento de recusa e rejeição por parte da maioria dos membros que se manifestam nesta

comissão, tentando desqualificá-los cientificamente, mas sem levar o debate adiante ou simplesmente desconsiderando sua importância. Esse tipo de atitude, somada ao fato da maioria dos membros que

participa da CTNBio serem pesquisadores da área de transgenia, portanto, potencialmente interessados na aprovação desse tipo de tecnologia para suas próprias pesquisas, revela o caráter ideológico, sugestivo de fortes possibilidades de conflito de interesses e claramente pouco científico das aprovações realizadas no âmbito do trabalho dessa comissão.

Nesse contexto, é de esperar que análises críticas dos efeitos da transgenia à saúde e ao meio ambiente, que deveriam ser o foco de uma comissão de biossegurança, sejam tendencialmente colocadas em segundo plano, dando espaço à euforia com as novas biotecnologias, seu potencial agronômico e supostas vantagens econômicas. Também por isso, as análises técnicas que deveriam se basear no Princípio da Precaução, que orienta a legislação brasileira desde a adesão do Brasil ao Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança, o primeiro acordo internacional firmado por países no âmbito da Convenção sobre Diversidade Biológica para proteger direitos humanos fundamentais como

a saúde, a biodiversidade e equilíbrio ecológico do meio ambiente, tende a ser substituído pela ideia ambígua de equivalência substancial, não prevista na legislação brasileira sobre o tema. O Protocolo de Cartagena está em vigor no Brasil desde 22/02/2004 e foi promulgado pelo Decreto 5.705 de 16/02/2006 na véspera da Portaria do Ministério da Ciência e Tecnologia que institui o Regimento Interno da CTNBio, sendo também anterior a todas as nossas Instruções Normativas.

Cabe ressaltar, também, que, analisando o currículo da maioria dos membros da CTNBio, em todos os

mandatos posteriores a 2006, portanto no âmbito da Lei de Biossegurança em vigor, não se verifica uma efetiva competência técnica em biossegurança e sim em biotecnologia. Mas isso não seria relevante não fosse o desprezo que revela, para com outros campos da ciência, tão ou mais relevantes para análises de biossegurança, na perspectiva integrada e sistêmica com que esta deve ser tratada. E além deste viés, há o fato de que essa comissão, que deveria funcionar como órgão de assessoramento técnico ao governo, passou a ser instância deliberativa, final e definitiva como revela a prática, tendo em vista que o Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS) não tem mais se reunido.

Assim, aspectos políticos relacionados à oportunidade e conveniência socioeconômica de colocar em uso determinada tecnologia, são ignorados e as recomendações apresentadas por grupo de técnicos escolhidos de forma pouco clara e nada democrática passam a ser decisões conclusivas. Ora, em se tratando de liberações comerciais, a opinião daqueles técnicos assume um poder político maior que o próprio governo exerce neste tema, afrontando a Constituição Federal.

Do ponto de vista jurídico, podemos afirmar que a maioria das decisões tomadas no âmbito da CTNBio, na forma como ela tem funcionado, fere, no mínimo três princípios do Direito Ambiental: a precaução, a sustentabilidade e a indenização, restando fortes dúvidas em relação à transparência. Considerando que não há coexistência possível entre cultivos transgênicos e não transgênicos, se instituiu a possibilidade de contaminar a natureza desde as liberações planejadas no meio ambiente, fazendo valer uma normativa que, no caso das plantas de polinização aberta, como o milho, não é menos do que ridícula, em sua inadequação e insuficiência para conter o fluxo gênico. Com isso, aos poucos, se extingue o direito de agricultores poderem produzir de outra forma, conforme o direito

assegurado desde 1948 na Declaração dos Direitos Humanos da ONU, em especial o direito à alimentação e a um meio ambiente saudável. O direito ao trabalho, neste caso, não é menos ofendido porque um agricultor que deseje produzir milho não transgênico está impossibilitado de fazê-lo. Poder  plantar, grãos limpos da contaminação, mas não saberá o que que vai colher, e não há o que possa fazer, de modo próprio, para impedir este fato. E são milhões os agricultores familiares nesta situação. E isso, sem qualquer perspectiva de indenização dos atingidos pela contaminação, plenamente constatável do ponto de vista científico. Ao extinguir o direito de produzir de outra forma, também se extingue outro direito: a possibilidade dos consumidores poderem optar por outros produtos. E é

sabido que não há nenhum movimento de consumidores reivindicando produtos transgênicos. O que se verifica é o oposto, ou seja, a ampla maioria da população é contrária a esses produtos, por uma diversidade de razões. Uma vez instituída a contaminação, como uma espécie de direito de pesquisador, se assume na regulação de transgênicos no Brasil o que o sociólogo alemão Ulrich Beck, internacionalmente famoso pelo seu conceito de sociedade de risco, denomina de “irresponsabilidade organizada”. E isso, com a contribuição de cientistas, em defesa de um tipo de ciência reducionista, acrítica e decidida por voto de maioria!

A redução da biodiversidade decorrente desse processo de contaminação torna suas consequências irreversíveis, externalizando riscos sociais e ambientais para a sociedade. É preciso dizer, também, que ninguém nessa comissão foi eleito, não havendo, portanto, legitimidade democrática para a tomada de decisões dessa envergadura. Não bastasse isso, verifica-se um claro desrespeito às próprias instruções normativas. Esses problemas formais iniciam desde a não adequação dos processos enviados pelas empresas às normas internas aprovadas e se estendem até os

procedimentos envolvendo a discussão dos pareceres e o encaminhamento de votações. Constatei e deixei registrado em atas, que nessa comissão não há ambiente para discussão científica, pois não se aceita a divergência e as críticas não são bem vindas. O “resultado das votações” já está praticamente pré-definido pela escolha dos membros, tendencialmente a favor de liberações de transgênicos no meio ambiente. Constatamos uma pressa desnecessária em encaminhar os processos logo para votação, reduzindo o tempo de discussão de riscos. Mas, independente das breves e eventuais discussões, quando elas acontecem, constatamos que o resultado das votações não se altera. E a

escolha dos relatores para os processos de liberação comercial, como ocorre? Registro aqui que, em eis anos de participação nessa comissão, nunca fui designado relator de processo de liberação comercial. Mesmo que fosse numa lógica de sorteio, não seria provável tanta “falta de sorte”. Mesmo assim, participei como relator de processos de liberação comercial, ao pedir vistas, recurso que regimentalmente me restou para poder participar do debate na condição de relator. Entretanto, o pouco tempo destinado à leitura dos pareceres e a falta de predisposição em discutir os argumentos apresentados quando divergentes, me permite concluir que, essa contribuição não teve influência sobre as liberações comerciais, ficando os registros para a posteridade avaliar sua pertinência histórica

e espero que pesquisadores de diferentes áreas possam se dedicar a estudar isso no futuro.

Resumimos aqui a forma como, infelizmente, a CTNBio tem agido historicamente, liberando organismos transgênicos a pedido das empresas, de forma facilitada, submetendo a população brasileira e o meio ambiente a enormes riscos ao: a) utilizar como base para a aprovação os estudos das empresas, geralmente mal feitos; b) indicar para a relatoria somente os membros que tendem a ser favoráveis à aprovação; c) ignorar estudos independentes disponíveis na literatura científica internacional; d) evitar a discussão científica sobre os pareceres apresentados, em especial quando são contrários a uma liberação; e) instituir a ideia de que a maioria de votos é sinônimo de legitimidade científica; f) impedir o acesso de outros membros às informações adicionais, quando estes,

insatisfeitos com os dados constantes nos processos, solicitam sua devolução à empresa para complementação de informações, na figura dos pedidos de diligencia. Fato especialmente grave quando as informações faltantes são previstas no próprio regulamento da CTNBio. Vivenciei e acompanhei muitos casos desta natureza que, a meu ver, mais do que ameaçam a credibilidade do método cientifico dominante neste espaço.

Cabe, ainda, concluir que, no momento atual, sete dos mitos que marcam o debate sobre a liberação de transgênicos já foram superados: 1) a fome não diminuiu e sim aumentou após a introdução dessa tecnologia na agricultura; 2) ao invés de seguros e controláveis, os efeitos desses organismos são irreversíveis após liberados no meio ambiente; 3) a esperança numa coexistência possível entre cultivos transgênicos e não transgênicos não é verificável do ponto de vista científico, pois o que se constata é a ameaça de contaminação para a agricultura convencional e ecológica; 4) diferente da ideia de não haver riscos, já conhecemos os efeitos dos transgênicos à saúde e ao meio ambiente; 5)

a natureza não fica mais preservada com a introdução de transgênicos, o que constatamos é o aumento do uso de agrotóxicos, a destruição da biodiversidade e o aumento dos problemas técnicos na agricultura.

Por estes e outros motivos que posso expressar se houver interesse, mas que não detalharei agora para não me alongar, afirmo, como especialista em agricultura familiar nessa comissão, que os agricultores não são beneficiados com essa tecnologia. Pelo contrário, eles se tornam cada vez mais dependentes e ameaçados na condição de produtores, o que aumenta o êxodo rural, a concentração de terra, a pobreza e a fome. Com isso, os territórios rurais e, portanto, o país está sendo prejudicado, o que ameaça o futuro desta nação que pretendemos soberana.

Solicito, senhor presidente, que essa minha manifestação conste em ata, para que ali reste como registro de uma experiência empírica de seis anos, por parte de um membro que fará da sua participação nessa comissão, objeto de pesquisa na área da epistemologia da ciência e da sociologia rural, na expectativa de contribuir com o progresso da ciência cidadã, em benefício da sociedade brasileira e da melhoria da qualidade de vida da sua população.

Estou seguro de que outros membros e ex-membros desta Comissão compreendem o espírito que me move, nesta manifestação, assim como entenderei o silêncio de praxe, de parte de outros. Agradeço a todos a oportunidade de convívio ao longo destes anos.

Brasília, 05/10/2017.

Antônio Inácio Andrioli

Membro Titular da CTNBio

Especialista em Agricultura Familiar

Leia Também:

2 comentários para "Carta de Antonio Andrioli sobre CTNBio"

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *