Brasil traça novas diretrizes para o tratamento do câncer

Ex-presidente do Inca analisa a fundo a recém-aprovada Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer. Inovadora, garante a integralidade dos cuidados – com prevenção e tratamento para além do hospital. Mas traz desafios em sua implementação

Créditos: Prefeitura de Cariacica/ES
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Luiz Santini em entrevista a Gabriel Brito

Conforme se dá o envelhecimento da população, medidas importantes precisam ser tomadas para que se garanta acesso à saúde. No que diz respeito ao câncer, o governo parece estar tomando um bom rumo. Em dezembro de 2023, Lula sancionou a lei 14.758, instituindo a Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer (PNPCC), que visa aprofundar o acesso a cuidados oncológicos no Brasil.

Luiz Santini, ex-presidente do Instituto Nacional do Câncer (Inca), acredita que se trata de “um grande avanço”. Em entrevista ao Outra Saúde, ele destacou os pontos mais importantes da PNPCC, no que ela inova e quais são seus desafios. De maneira geral, sua principal vantagem é cobrir todas as etapas para os cuidados com o câncer, pois considera o antes, o durante e o depois do diagnóstico e tratamento da doença. “Portanto, de fato tem essa abrangência mais moderna”, comemora.

Na visão do médico, a nova norma atualiza a noção de integralidade em saúde, conforme os conceitos mais desejáveis, e agora terá pela frente os desafios de realmente alcançar a população. Para ele, o financiamento é de fato um desafio para que seja posta em prática, tendo em vista que o SUS historicamente nunca recebeu os recursos que necessita de fato. Mas há outros obstáculos mais delicados, em especial na coordenação das ações entre a atenção primária e na especializada, mas também entre Ministério da Saúde, estados e municípios.

Santini destaca que o Brasil tem boa experiência em coordenação de políticas de prevenção e rastreamento. A questão agora é avançar no caminho do aprofundamento desta capacidade. Ele destaca o papel fundamental do Inca, que pode contribuir nesse sentido. “É muito importante ter um órgão coordenador e o Inca é a instituição adequada”, afirmou.

Além disso, é necessário um mapeamento eficaz dos diferentes perfis da população, espalhada no vasto território brasileiro – boa parte dela em municípios de baixa densidade demográfica. “O número de casos distribuídos pela população requer planejamento para fatias de uma população de, no mínimo, 500 mil pessoas. A maior parte dos nossos municípios tem menos de 10 mil habitantes. A organização regional é fundamental para a estratégia de implementação”, analisou.

A ideia na nova Política é otimizar recursos, tratar do câncer pela ótica do cuidado para além do hospital e aproveitar novas tecnologias para rastrear e monitorar pacientes. Entram em cena os agentes comunitários, psicólogos, nutricionistas, fisioterapeutas. Trata-se de avançar, sobretudo, do tratamento médico a uma política ampliada de cuidado e bem-estar, que se associa inclusive pela ação intersetorial.

“Estamos falando de quatro componentes para a implementação da política: regionalização, financiamento, conhecimento/capacitação das pessoas em todo o sistema para fazer o diagnóstico e, por fim, tecnologia”, sintetiza. “Sobre este último, sobretudo hoje, há oportunidades de se utilizar as ferramentas de telemedicina, teleconsulta e várias oportunidades para apoio ao diagnóstico e à navegação do paciente (…) A articulação da saúde com as áreas de educação, desenvolvimento social, previdência são outro universo de relações e de importância que nós vamos ter de conectar para realmente implementar políticas de prevenção.”

Ao final da entrevista, Santini aproveita para comentar o livro que acabou de lançar, cujo nome é explicativo da abordagem: SUS, uma biografia: lutas e conquistas da sociedade brasileira. “Fiz um esforço de reconstituir um pouco essa história a partir da minha própria participação ao longo de todos esses anos e também das pessoas com quem eu convivi, com quem eu participei e que foram entrevistadas. O SUS não é uma obra acabada, é uma obra em construção e isso é uma coisa muito importante para as pessoas entenderem os desafios permanentes que nós temos, a exemplo da Política Nacional de Cuidado e Prevenção do Câncer, um novo desafio que se coloca”.

Leia a seguir a entrevista completa.

Como analisou a sanção da Lei 14.758/23, que estabeleceu a Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer? Que avanços ela coloca em relação ao arcabouço político e jurídico anterior?

A lei é um grande avanço. Talvez o Brasil seja um dos poucos países do mundo, se não o único, que possui uma lei abrangente sobre controle de câncer como esta. E não é por acaso, é resultado de uma política que vem sendo desenvolvida há muitos anos, com algumas características muito importantes. Uma delas é a abrangência. É uma lei que abrange ações desde prevenção primária, como, por exemplo, as campanhas ou as ações de controle do tabagismo, as ações dirigidas a problemas que são muito atuais na população, como obesidade, alimentação inadequada, sobretudo com comidas ultraprocessadas.

A política trata desde aspectos de prevenção primária e fatores de risco por câncer, inclusive ambientais, até o tratamento de pacientes que, pelo estado avançado da doença, necessitam de um tipo de cuidado diferenciado, que é o cuidado paliativo. É uma lei extremamente abrangente e adota uma terminologia muito adequada e muito moderna. O controle de câncer é uma compreensão diferente do combate ao câncer. O controle de câncer entende a doença como de longa evolução e pode, inclusive, ser uma doença crônica. O sistema de saúde como um todo precisa estar adequado para controlar a doença.

A lei é um grande avanço.

Seria, portanto, um avanço na noção de integralidade da saúde, no sentido de não se tratar apenas de uma política curativa?

Exatamente. É uma lei que está perfeitamente de acordo com a determinação constitucional do atendimento integral em saúde, isto é, antes, durante e depois do diagnóstico da doença e seu tratamento. Portanto, de fato tem essa abrangência mais moderna. Dito isso, ela introduz um grande desafio: a implementação. Porque hoje o nosso maior problema no controle do câncer no Brasil não é mais conceitual, porque a lei define muito bem, assim como as necessidades de intervenção. O que está faltando é a definição de uma estratégia de implementação.

O Brasil tem várias experiências ao longo dos anos de implementação de várias ações, mas elas são ainda fragmentadas. Ainda não tem uma estratégia ampla de implementação. E isso não é fácil mesmo, é um desafio muito grande. Nenhum país do mundo tem, nem mesmo os europeus, que possuem uma legislação tão adequada como essa.

Eu quero dizer e insistir que a legislação é muito avançada. Alguns países têm o objetivo e estratégias de implementação que nunca tivemos, e agora precisamos aperfeiçoar a implementação.

E essa implementação passaria por uma integração entre a atenção primária e a atenção especializada, aquela conhecida como de “alta complexidade”, basicamente atendimento em hospitais? Isso também exigiria uma integração maior entre as secretarias de Atenção Primária e Especializada do Ministério?

Sim. A estratégia de implementação passa pela necessidade de articular os diferentes setores do ministério para que as ações, horizontalmente, atinjam todos os níveis de atenção, o que requer um tipo de tratamento e conhecimento. Nós temos a felicidade no Brasil de ter o Instituto Nacional do Câncer (Inca), um órgão que congrega tal conhecimento e tem experiência de implementação, embora, como eu disse, ainda de forma um pouco fragmentada.

O Inca tem experiência de implementação e coordenação de ações de prevenção primária, como, por exemplo, o programa do tabagismo, o mais exitoso programa de saúde pública do mundo, talvez. É assim como outras políticas de controle de câncer de colo de útero, de mamografia. Mas tais políticas ainda são um pouco fragmentadas. Com esta lei, havendo a disposição das diferentes áreas do Ministério da Saúde, é muito importante ter um órgão coordenador e o Inca é a instituição adequada.

Outra coisa muito importante é o envolvimento dos estados e municípios, porque o problema do câncer tem uma dimensão regional, uma importância econômica, social e epidemiológica muito grande. O número de casos distribuídos pela população requer planejamento para fatias de uma população, no mínimo, de 500 mil pessoas. A maior parte dos nossos municípios tem menos de 10 mil habitantes. A organização regional é fundamental para a estratégia de implementação. Se não houver uma regionalização, quer dizer, uma estruturação por regiões do país, dificilmente se conseguirá implementar a legislação.

Geralmente, quando se apresenta uma nova política questionamos se haverá financiamento real para sua implementação. Neste caso a estratégia precederia a questão orçamentária?

A estratégia é fundamental e sem uma estratégia adequada corre-se o risco deste pouco recurso ser desperdiçado. É preciso aumentar a quantidade de recursos, mas se essa quantidade não for adotada por uma estratégia adequada, corre-se o risco de o aumento de recursos ser em parte desperdiçado. Porque vão se alocar recursos em municípios que não terão condições de implementar. A regionalização da estratégia é tão importante quanto o financiamento.

Nós temos clareza absoluta de que o SUS é mal financiado em geral, a exemplo de ações de atenção oncológica. Mas se não houver esse passo estratégico da regionalização, seguramente teremos, mesmo aumentando o recurso, mais desperdício do que efetividade.

A ministra recentemente falou em esforços para reduzir o tempo de espera de consultas e procedimentos oncológicos. Como você analisa este aspecto? A situação atual é preocupante ou é possível dizer que o sistema de saúde tem funcionado neste âmbito?

A situação atual é muito preocupante na maioria dos estados e municípios. Alguns poucos conseguem cumprir a lei dos 60 dias para diagnóstico dos pacientes e encaminhamento de tratamento. Isso está expresso na análise dos dados de assistência que mostra que há um número muito elevado de pacientes tratados em graus avançados da doença. O que prejudica os pacientes? Obviamente, o paciente tratado com uma doença avançada tem menos chance de cura, menos chance de uma boa qualidade de vida. Esse é um elemento fundamental. A ministra tem toda a razão. Agora, para fazer isso mais uma vez, além do financiamento e da regionalização, nós precisamos de tecnologia.

A implementação de novas tecnologias de medicina à distância e de capacitação das pessoas no sistema de saúde, sobretudo para o diagnóstico precoce, é muito importante. Às vezes, as pessoas se preocupam muito com a detecção precoce, programas de rastreamento. É mais importante o diagnóstico precoce do que o rastreamento em uma situação como a que nós estamos no Brasil, onde o diagnóstico é muito atrasado. Nós precisamos preparar o sistema para o diagnóstico, em primeiro lugar. E, para isso, é preciso que os profissionais não oncologistas estejam alertados para os sinais e sintomas de câncer e as necessidades diagnósticas de câncer.

Se não, aparece o caso e não se identifica. Portanto, estamos falando de quatro componentes para a implementação da política: regionalização, financiamento, conhecimento/capacitação das pessoas em todo o sistema para fazer o diagnóstico e, por fim, tecnologia. Sobre este último, sobretudo hoje, há oportunidades de se utilizar as ferramentas de telemedicina, teleconsulta e várias oportunidades para apoio ao diagnóstico e à navegação do paciente. Aliás, a lei fala sobre isso também. É uma coisa muito importante. Acho que nenhuma lei no mundo fala sobre a importância da navegação do paciente.

O que é a navegação?

Uma vez diagnosticado, o paciente tem um fluxo no sistema para atender a essa necessidade de emergência do tratamento. Quer dizer, uma vez diagnosticado, o paciente tem de ter acesso rápido ao sistema de saúde, do atendimento primário, acesso a hospitais, acompanhamento etc. Isso é o que se chama de navegação.

E cada tipo de câncer tem uma navegação, digamos, distinta dentro do sistema. Para alguns você tem uma concentração maior de atenção, como, por exemplo, os transplantes de medula, sobretudo os transplantes de medula óssea, e em alguns a difusão é mais curta, mais próxima, como, por exemplo, câncer de colo do útero.

Destaco na lei o apoio à questão da prevenção primária, uma coisa muito importante que a lei prevê também, e pode se dar através de coisas como a vacinação. A vacinação do HPV, da hepatite B, da hepatite C, o tratamento da helicobacter pylori, que é uma doença inflamatória do estômago, faz parte de uma política de prevenção e controle.

Enfim, a lei contempla todos os componentes do controle de câncer que nós falamos aqui.

As novas tecnologias, como telemedicina e programas digitais, podem contribuir para a prevenção do câncer no país?

Com certeza tem um papel muito importante. Na verdade, como diz o doutor Chao Lung Wen, que é um especialista em telemedicina da USP, a telemedicina não é uma ferramenta, é uma estratégia. Portanto, tem de estar integrada à estratégia de controle de câncer. A telemedicina pode dar suporte a muitas necessidades que hoje não são atendidas porque falta acesso à informação ao paciente em níveis que podem ser decisórios do sistema.

Quando falamos da regionalização, muito possivelmente em cada região de saúde vai ter uma cabeça, uma inteligência para tratar desses dados e da navegação dos pacientes no sistema.

A lei também parece dialogar com uma certa mudança de perfil epidemiológico da população, que será mais velha nos próximos anos. Que desafio essa mudança coloca para o nosso sistema de saúde?

Com certeza. Essa é a tendência, nossos dados demográficos já mostram. Nós já temos mais pessoas acima dos 60 anos na população do que pessoas de 0 a 4 anos, o que significa um processo de envelhecimento e diminuição da taxa de fecundidade, de natalidade. É um problema. Seguramente, o grande desafio do sistema de saúde é tratar do câncer e também das doenças crônicas, sobretudo as doenças cardiovasculares, mas não só, as doenças respiratórias, as doenças osteoarticulares… Coisas que aparecem no processo de envelhecimento das pessoas.

Por exemplo, a dedicação de grande parte do esforço da sociedade, da saúde em particular, para as questões da prevenção vão ser cada vez mais importantes. A articulação da saúde com as áreas de educação, desenvolvimento social, previdência são outro universo de relações e de importância que nós vamos ter de conectar para realmente implementar políticas de prevenção.

O governo também formou um grupo de trabalho que tem a tarefa de elaborar uma Política Nacional de Cuidados. Você enxerga uma relação entre essa futura política de cuidados e o que debatemos aqui? Precisamos criar uma espécie de economia dos cuidados em saúde, até uma nova concepção do que é promoção da saúde?

Sim, isso dialoga com a ideia de articulação com outras áreas da política social, no sentido de buscar a articulação de diferentes setores para uma ação articulada. Por exemplo, na questão da prevenção, os dados do sistema previdenciário são fundamentais para definir prioridades estratégicas. Hoje, por exemplo, se sabe que a maior parte dos afastamentos por motivos de saúde na previdência são de pessoas com problemas emocionais, psicológicos, ligados ao sistema nervoso, ao estresse, ligados a esse tipo de coisa, e pessoas com problemas osteoarticulares.

Sabendo disso, as políticas e as estratégias de prevenção têm de ser dirigidas a esse tipo de paciente. Um problema de saúde mental, de acolhimento das pessoas, porque o afastamento do trabalho não pode ser a única medida para tratar de uma pessoa com um problema tanto mental quanto osteoarticular. Ou seja, o afastamento do trabalho não significa necessariamente atenção à pessoa, significa só que a pessoa não pode trabalhar. Perde-se produtividade no trabalho e não se melhora nada a situação das pessoas. Por isso é necessária e fundamental a integração.

Para encerrar a entrevistas, mudamos um pouco de assunto. Você lançou o livro SUS, uma biografia: Lutas e conquistas da sociedade brasileira. Quais suas motivações para escrevê-lo? Como o livro pode ser útil para o debate em torno dos avanços do sistema público de saúde?

O livro foi escrito em função de uma preocupação minha. Eu tenho 78 anos, sendo 40 anos de atuação na área de saúde pública, na construção e implementação do nosso Sistema Único de Saúde. A maioria das pessoas não tem muita ideia do que foi o processo de construção desse sistema. É importante conhecer para ter uma ideia das dificuldades, das limitações, dos obstáculos, mas também das oportunidades que foram encontradas ao longo desses últimos 40 anos na construção do sistema.

Além disso, fui buscar realmente as raízes históricas da saúde no Brasil e a importância que desde o início do século 20, a ciência teve na construção das ações de saúde no Brasil, por exemplo, com as medidas de saúde pública adotadas no Rio de Janeiro, que era o principal ponto de exportação do país, uma época na qual navios não podiam aportar por causa da febre amarela, da peste, das doenças que dominavam aqui a população. Na época, o trabalho político do governo do presidente Rodrigues Alves, coordenado por Oswaldo Cruz e o prefeito do Rio, Pereira Passos, foi um trabalho que já naquele momento mostrou uma percepção da importância de fenômenos urbanos e ambientais na produção do processo de saúde e de doença. Isso é uma característica importante do sistema de saúde do Brasil, uma concepção desde o início do século 20 da importância das questões ambientais e econômicas na produção da saúde.

De outro lado, mais adiante, nos anos 30, entrou a questão da previdência. A criação e a implementação da previdência social garantiu, de alguma forma, recursos para os trabalhadores e também recursos assistenciais através dos institutos. Posteriormente, a criação do Sistema Único de Saúde, que foi um projeto democrático, extremamente associado à construção da democracia do Brasil, o que culminou na 8ª Conferência Nacional de Saúde e depois na Lei do Sistema de Saúde na Constituição.

Fiz um esforço de reconstituir um pouco essa história a partir da minha própria participação ao longo de todos esses anos e também das pessoas com quem eu convivi, com quem eu participei e que foram entrevistadas. Eu entrevistei mais de 30 pessoas, companheiros dessa luta toda, que deram seus depoimentos. A partir daí, fui construindo uma compreensão e uma forma de expressar a importância do Sistema Único de Saúde no Brasil que dá uma dimensão de que tal construção realmente é um processo. O SUS não é uma obra acabada, é uma obra em construção e isso é uma coisa muito importante para as pessoas entenderem os desafios permanentes que nós temos, a exemplo da Política Nacional de Cuidado e Prevenção do Câncer, um novo desafio que se coloca diante de nós e do SUS.

Nós alcançamos um patamar elevado nessa questão, mas, ao mesmo tempo, tem um enorme desafio pela frente. Entender tudo isso é o objetivo do livro, que escrevi em parceria com o historiador Clóvis Bulcão. E a escolha de um parceiro historiador foi justamente para ter uma abordagem histórica não enviesada por uma visão pessoal minha, de não historiador, a fim de corrigir eventuais distorções no olhar de cada momento do processo histórico.

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