Por que a reação à Copa América precisa crescer

Conchavo entre governo Bolsonaro e cartolas de futebol ameaça ampliar as aglomerações e a difusão de novas variantes do coronavírus. E mais: Nestlé reconhece, em documento vazado, que seus produtos fazem mal à saúde

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A COPA AMÉRICA

São 28 partidas. Nove seleções estrangeiras. Quase um mês de torneio. Depois que a Argentina, recém-saída de um lockdown, e a Colômbia, mergulhada em uma crise política, desistiram de sediar a Copa América, a Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) surpreendeu os brasileiros ontem com um tuíte em que anunciou que o país receberia a competição. Na mensagem, agradeceu ao “presidente Jair Bolsonaro e sua equipe”

A notícia caiu como uma bomba nas redes sociais, principalmente porque o torneio está marcado para começar… em duas semanas, no dia 13 de junho. Para leigos e especialistas, a rápida concordância do Brasil diante da negativa argentina em sediar a competição sozinha neste momento é prova de que não houve análise epidemiológica. 

“Claro que não existe uma programação ou estratégia para evitar que o contágio aconteça”, afirma Diego Xavier, pesquisador da Fiocruz, em entrevista ao Globo. “Comparando a Libertadores com a Copa América é como pensar num feriado eventual, em que poucas pessoas se movimentam, e no feriadão de Natal e Ano Novo com muitas pessoas se movimentando ao mesmo tempo”, continua ele. Na Copa América, as seleções ficarão hospedadas por, pelo menos, 15 dias. “Nesse período, haverá deslocamentos para treinos, hotéis, jogos e, possivelmente, outras cidades. E quase tudo simultaneamente”, descreve o jornal. 

“A Conmebol se valeu do negacionismo do Brasil para trazer a competição para cá”, resumiu Robson Morelli, no Estadão. “”Como assim? Por que sediar um evento internacional neste momento e com apenas duas semanas para planejar qualquer ação de saúde e prevenção. Não há tempo nem de vacinar os envolvidos”, criticou, por sua vez, a apresentadora Fátima Bernardes.

Sim. A história piora porque embora a Conmebol tenha recebido do governo uruguaio uma doação de 50 mil doses de vacinas, até o momento, apenas Uruguai, Paraguai, Equador, Chile e Venezuela estão vacinando seus jogadores e membros das comissões técnicas. Como o imunizante é a CoronaVac, são necessárias duas doses, que deve ser aplicada com intervalo que varia entre 14 e 28 dias. Não é difícil fazer as contas e ver que a competição pode acontecer com muita gente sem proteção completa. 

No ritmo do improviso, a CBF estuda burlar a lei brasileira que prevê a doação de 50% de qualquer vacina conseguida fora do Programa Nacional de Imunizações para o SUS. Um total de cinco mil doses caberia à CBF. Segundo o Estadão, uma partida no Paraguai no dia 8 de junho seria a deixa para que jogadores e equipe técnica se vacinassem naquele país. A questão continua sendo, é claro, como eles vão tomar a segunda dose em pleno torneio.

A repercussão continuou ao longo do dia. Os governadores de Pernambuco, Rio Grande do Norte e Minas Gerais anunciaram que não querem jogos da Copa América em seus estados. O PT e deputados entraram com ações no Supremo Tribunal Federal para barrar a competição. Membros da CPI da Pandemia protocolaram um pedido para o presidente da CBF, Rogério Caboclo, comparecer ao Senado para justificar a decisão de realizar o torneio aqui. 

Diante de tudo isso, o governo federal começou a ensaiar um recuo. Coube ao ministro da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos, se manifestar sobre o assunto, apenas à noite. “Não tem nada certo, quero manifestar de forma clara. Estamos no meio do processo, mas não vamos nos furtar a uma demanda, caso seja possível atender”, afirmou. “Estamos verificando detalhes. Se Deus quiser, amanhã teremos uma posição final”.

O SINCERICÍDIO DA NESTLÉ

A maior empresa de alimentos do mundo foi flagrada admitindo que vende produtos que fazem mal à saúde. Uma apresentação da Nestlé que circulou entre os principais executivos da companhia este ano foi obtida pelo jornal britânico Financial Times. Nela, a gigante afirma que 63% dos seus produtos não alcançam a definição mínima de alimento saudável (3,5 pontos) da Austrália, uma das escalas mais usadas por cientistas no mundo. Esse naco representa nada menos do que metade da receita da multinacional, equivalendo R$ 537 bilhões.

Se os produtos são separados por tipo, a coisa é ainda pior: 96% das bebidas (com exceção do café puro) e 99% dos sorvetes e doces da companhia não são minimamente saudáveis. 

Na apresentação, há um sincericídio que as autoridades sanitárias em todo o mundo – inclusive a OMS – deveriam ser obrigadas a ler várias vezes antes de apostar em acordos de reformulação em que a indústria promete reduzir certos ingredientes: “algumas de nossas categorias e produtos nunca serão ‘saudáveis’, não importa o quanto reformulemos”.

“Fizemos melhorias significativas em nossos produtos [mas] nosso portfólio ainda apresenta desempenho inferior em relação às definições externas de saúde em um cenário onde a pressão regulatória e as demandas do consumidor estão disparando”, também reconhece a apresentação da Nestlé.

Há bons exemplos da distância entre realidade e marketing no documento. “Perfeito no café da manhã para preparar as crianças para o dia”. É o que se lê na embalagem do Nesquik com sabor de morango, um produto que contém 14 gramas de açúcar em… cada porção de 14 gramas (na formulação dos EUA).

O Brasil é o quinto maior mercado para vendas da Nestlé, só atrás dos Estados Unidos, da China, França e Reino Unido.

ESTAMOS PIORES

Ontem foi o Dia Mundial de Combate ao Tabaco. E, para variar, o Brasil andou para trás também nessa seara. Quando o assunto é o lobby da indústria nas políticas públicas e estruturas de governo, passamos da 5ª posição num ranking de 33 países em 2019 para a 14ª posição entre os 57 países analisados em 2020 pelo Índice para a interferência da indústria do tabaco. Se as empresas avançam, quem paga a conta somos nós. Em 2020, chegamos a R$ 50,28 bilhões desembolsados com custos diretos do fumo, como atendimento médico e hospitalar aos doentes, e R$ 42,45 bi em custos indiretos, como perda de produtividade no trabalho. A soma representa 1,8% do PIB brasileiro. Esses e outros dados podem ser conferidos na infografia preparada pelo pessoal de O Joio e O Trigo.

HABITUÉ 

O depoimento da cloroquiner Nise Yamaguchi à CPI está marcado para esta manhã. Apontada como “conselheira paralela” de Jair Bolsonaro, ela vai ter mais coisas para explicar: uma reportagem do Intercept mostra que a médica esteve pelo menos quatro vezes no Ministério da Saúde num espaço de seis meses, justamente na gestão Eduardo Pazuello. Detalhe: nada disso aparece na agenda oficial do ex-ministro e de seus subordinados. O repórter Paulo Motoryn descobriu as agendas ao pedir os registros de entrada na portaria do prédio da pasta em Brasília via Lei de Acesso à Informação. De acordo com esses documentos, Yamaguchi teve reuniões de dia inteiro com o general da ativa e “estava tão à vontade que escalou até os irmãos para encontros com a área responsável pela indicação de medicamentos ao SUS”. 

MAIS AVALIAÇÕES

A Anvisa recebeu novos documentos para votar novamente os pedidos de importação da Sputnik V e da Covaxin. No caso do imunizante do laboratório indiano, havia pendências para que fosse concedido o certificado de boas práticas farmacêuticas mas, segundo o Valor, elas já foram resolvidas. Já com relação à Sputnik V, parece que ainda existem problemas. Os desenvolvedores enviaram à agência reguladora um relatório técnico atestando segurança e eficácia, mas esse documento ainda não teria respondido todas as dúvidas do órgão. 

Há uma diferença em relação a abril, quando os técnicos foram unânimes em não recomendar a compra. Agora, segundo a apuração do jornal, não há consenso. A reunião da diretoria colegiada aconteceria hoje, com um resultado ainda imprevisível. Mas uma ação do STF acabou dando mais tempo: a pedido do governo do Maranhão, o ministro Ricardo Lewandovski concedeu uma liminar estipulando cinco dias úteis para a Anvisa se manifestar sobre o pedido de importação do estado. 

DEPOIS DA COLETIVA

Ontem os pesquisadores do Instituto Butantan envolvidos no Projeto S – de vacinação em massa no município paulista de Serrana – apresentaram o estudo em coletiva de imprensa. Falamos um pouco sobre os dados preliminares na edição de ontem.

A maior novidade trazida por eles foram informações sobre a situação dos idosos durante o projeto: quando 95% dos adultos da cidade estavam vacinados, o número de hospitalizações e mortes de maiores de 70 anos vacinados foi reduzido a zero. Houve uma morte e uma internação, mas de pessoas não vacinadas. Segundo o diretor de pesquisa clínica do Instituto, Ricardo Palacios, isso confirma que a CoronaVac protege bem essa faixa etária.

Foram reafirmados os dados que haviam sido publicizados pelo Fantástico no domingo: redução de 95% nas mortes, 86% nas internações e 80% nos casos sintomáticos. No entanto, esses números não foram detalhados. 

MESES DE ATRASO

Era para ter acontecido no ano passado, mas será hoje a assinatura do acordo de transferência de tecnologia entre a AstraZeneca e a Fiocruz. Com isso, a institução brasileira vai poder produzir o IFA (ingrediente farmacêutico ativo) do zero, sem depender de importá-lo. 

Ainda não se sabe o quanto esse atraso na assinatura vai impactar o cronograma original de distribução de doses. Antes, a previsão era de que houvesse 110 milhões de doses com IFA nacional até o fim deste ano.

FUNGO PRETO

Já falamos aqui sobre a mucormicose, uma infecção fúngica rara que tem se tornado um problema entre pacientes com covid-19 ou recuperados da doença na Índia. O problema andou gerando apreensão no resto do mundo e no Brasil. Um caso está sendo investigado em um paciente que morreu em Manaus – mas não estava com covid-19. Há outro caso suspeito em Santa Catarina.

Por ora, especialistas dizem que não há razões para alarde. No Brasil, infecções relacionadas a ele são consideradas raras, mas já existiam. E, assim como outras infecções fúngicas, não são incomuns em UTIs. A matéria da BBC explica que a mucormicose afeta mais pessoas com o sistema imunológico debilitado, chamados de imunossuprimidos, diabéticos e pacientes internados. “Temos visto faz tempo infecções fúngicas em pacientes da covid, desde o ano passado. Por aqui, temos visto mais casos de outro fungo, o aspergilose, enquanto que na Índia ocorre o surto de mucormicose. Mas essas infecções em UTI Covid não são de agora”, diz o infectologista Marcelo Otsuka.

TRÊS VEZES MAIS

O Peru reviu seu número de óbitos por covid-19 e o número oficial saltou de 69 mil para 180 mil – quase o triplo. Com isso, deixou a 13ª posição entre os países com a maior taxa de mortalidade do mundo e assumiu a liderança. São 5.484 mortes por milhão de habitantes. Em segundo lugar está a Hungria, com 3.077.

A mudança foi feita por recomendação de um grupo técnico do governo que sugeriu mudar os critérios de registro de óbitos, após detectar limitações na metodologia anterior. Agora, em vez de incluir infecções confirmadas, o número vai abranger também todo “caso provável” que “apresente vínculo epidemiológico com um caso confirmado”.

FALANDO GREGO

A OMS decidiu rebatizar as variantes de interesse e de preocupação do coronavírus com o nome das letras do alfabeto grego, para acabar com aquela confusa sopa de letras números e, ao mesmo tempo, diminuir o estigma sobre as nações. É muito ruim chamar as variantes pelo país de origem: se referir a “variante britânica”, “africana”, “brasileira e “indiana” é tão complicado quanto dizer “vírus chinês”. Agora, elas são Alpha, Beta, Gamma e Delta, respectivamente. 

Novas variantes vão sempre ser nomeadas segundo a ordem do alfabeto. No momento há mais seis variantes de interesse: Epsilon (a B.1.427/B.1.429, identificada nos EUA); Zeta (a P.2, identificada no Rio de Janeiro); Eta (B.1.525, identificada em vários países ao mesmo tempo); Theta (P.3, identificada nas Filipinas); Iota (B.1.526, identificada nos EUA); e Kappa (B.1.617.1, identificada na Índia. Não confundir com a Delta, que é a B.1.1617.2).

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