A medicina de negócios abandona seus “clientes”

Além de negar tratamentos, seguros e planos de saúde agora cancelam contratos – em especial da população mais vulnerável. Rescisões atingem milhares de pessoas e agência estatal é conivente. Deputada paulista quer investigar crise a fundo

Créditos: EBC
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As empresas que vendem seguros de saúde esforçam-se para dar mais uma volta no parafuso e restringir os seus clientes apenas àqueles que não “dão prejuízo”. A ANS – agência reguladora que deveria defender os direitos da população – dá aval. Em abril, famílias de pessoas que precisam de terapias intensivas começaram a receber notificações de cancelamento de seus planos Amil. São sobretudo crianças e adolescentes autistas, mas também outras pessoas com deficiências, doenças raras, em tratamento oncológico, pacientes que fizeram tratamento cardíaco recente, transplantados.

O pesadelo é acompanhado de perto há anos pela deputada estadual de São Paulo, Andrea Werner (PSB). Inclusive porque ela mesma é mãe de um adolescente autista e também sofre com os abusos dos seguros. Por ser reconhecida como uma peça importante na defesa das pessoas com deficiência, seu mandato na Assembleia Legislativa de SP recebe denúncias de cancelamento unilateral dos planos. No último ano, foram 950 queixas diversas, 340 por quebra de contrato por parte das operadoras – sendo 244 só da Amil. 

A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) registra que, nos últimos dois anos, as reclamações contra a empresa aumentaram 50%. Apenas entre janeiro e abril de 2024, foram 5.888 rescisões. Para tentar conter a crise, a Senacon (Secretaria Nacional do Consumidor), vinculada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, deu um prazo de dez dias para as operadoras se explicarem, valendo a partir de sexta passada (24/5). As corporações deverão informar o número real de cancelamentos, o motivo, se os usuários estavam em tratamento, se eram portadores de transtornos e qual sua faixa etária.

As empresas aproveitam-se de uma regulamentação frouxa do mercado. A Agência Nacional de Saúde (ANS) é vista como amiga das corporações, segundo especialistas como Lígia Bahia (UERJ). “A ANS seria um órgão público, deveria ser um órgão público – e como órgão público de país que tem na sua Constituição direito à saúde. Entretanto, a ANS se coloca descaradamente ao lado das empresas de planos de saúde”, criticou a pesquisadora em entrevista ao podcast O Assunto. A agência seguirá virando o rosto para os abusos, mesmo com esse aumento de cancelamentos unilaterais de seguros de pessoas com deficiência?

Andrea Werner não espera pela resposta sentada. Seu mandato conseguiu, na semana passada, 56 assinaturas na Alesp para abertura de uma CPI dos Planos de Saúde, mais que o suficiente para início de uma investigação. Em entrevista ao Outra Saúde, ela afirma que deputados de todo o espectro político percebem a urgência de interromper esse processo. Ela reforça a urgência de se investigar esses procedimentos ilegais dos planos de saúde. Segundo a deputada, as operadoras estão contrariando até o Judiciário: “Recebemos denúncias de pessoas que conseguiram liminar para receber um tratamento, uma cirurgia, até para tratamento oncológico, e o plano não cumpre a liminar”.

Mas as empresas podem cancelar planos de saúde? A deputada ensina que já há um entendimento de que isso é ilegal. Existe uma tese do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 2022, que impede que as apólices de pacientes em tratamento necessário para resguardar suas vidas e saúde sejam rescindidas. “Crianças autistas estão constantemente em tratamento, fazem terapia toda semana. Pessoa com hemofilia, algumas doenças raras, pessoas que dependem de terapias ou de cirurgias, enfim, são pessoas em tratamento”, resume ela. Andrea também critica a inação da ANS, que é quem deveria defender o usuário. “É um serviço que pode acarretar inclusive a perda da vida da pessoa, dependendo do tanto que esse procedimento demorar”, alerta ela.

Mesmo com a tese firmada, as empresas de seguros de saúde defendem sua posição. E não se preocupam em dourar a pílula: a Amil tem afirmado à imprensa que rescinde os contratos que “dão prejuízo”, que os cortes afetam “especificamente os [usuários] que demonstram desequilíbrio extremo entre receita e despesa há pelo menos três anos”. “Portanto”, conclui Andrea, “eles estão fazendo seleção de risco, outra coisa que é vedada pela legislação. Você não pode excluir uma pessoa ou deixá-la sem acesso ao plano de saúde porque ela tem uma condição específica de saúde, ou por ter uma idade específica”. A deputada lembra o caso da idosa de 102 anos que pagava mais de 9 mil reais mensais por seu seguro e quase foi cortada pela Unimed.

Andrea percebe uma tendência de forçar a migração dos seguros com acesso ilimitado para aqueles com coparticipação – em que o usuário precisa pagar parte do tratamento. “Tem pessoas nos denunciando que estão recebendo boleto de 20 mil reais de coparticipação, que suspenderam as terapias dos filhos porque não têm como pagar”, afirma a deputada. 

Como Outra Saúde vem tratando ao longo dos últimos anos, o mercado de seguros de saúde diz enfrentar uma crise. Fato que Andrea questiona: “depois da pandemia, os planos alegam que estão tendo lucros insuficientes. Eu fico questionando esse argumento. No ano passado, o lucro divulgado pela própria ANS foi de 3 bilhões de reais”. Durante a pandemia, a saúde privada teve lucro recorde. “Então tem alguma conta sendo muito mal feita, não explica essa suposta crise. As empresas continuam adquirindo hospitais, laboratórios, avançando na verticalização”, afirma. 

Para a deputada, a CPI que pode ser instaurada nos próximos dias na Assembleia Legislativa de São Paulo é importante para aumentar a pressão para que algo seja feito para limitar os desmandos das corporações de saúde privada. Ela cita um importante projeto de lei, 7.419/06, cujo relator é Duarte Junior (PSB/MA), que está para ser votado, mas enfrenta pressão contrária no Congresso Nacional. Esse PL poderia enfim aumentar a regulação do mercado, coisa que a ANS se recusa a fazer.

“Eu acredito que é o melhor caminho”, defende, referindo-se à nova legislação. “Porque quando a interpretação fica a cargo do Judiciário, a gente tem visto decisões desfavoráveis de juízes de primeira instância, mesmo com esse consenso do STJ sobre usuários em tratamento. Infelizmente a influência dos planos de saúde acontece nos três poderes: no executivo, no legislativo e também no judiciário. Então, o melhor jeito da gente resolver é colocar numa legislação mesmo.” 

Como demonstrou o pesquisador Eduardo Magalhães, o poder da saúde privada no Brasil é brutal. As corporações formam o terceiro grupo empresarial mais poderoso no país. Sete grandes empresas controlam o setor, formando algo que os pesquisadores chamam de oligopólio total. “Não existe livre mercado ou livre iniciativa no setor privado da saúde”, alertou Magalhães, em diálogo recente com este boletim. Essa concentração de poder, segundo ele, é uma enorme ameaça ao SUS.

Andrea Werner também reflete sobre o sistema público de saúde, cronicamente subfinanciado. Ela critica o apoderamento do orçamento público pelo Congresso Nacional, por meio das emendas parlamentares – dinheiro que deixa de ser destinado ao interesse da grande maioria do país. “Sem esse dinheiro estar no executivo, sendo destinado para os ministérios específicos, a gente não tem como melhorar o atendimento no SUS, que está sucateado. E a gente sabe que isso é um projeto, para que as pessoas acreditem que não vão conseguir o atendimento no SUS e procurem um plano de saúde, achando que terão um atendimento melhor”, lamenta ela.

O cuidado com autistas no SUS ainda é um grande problema. Segundo Andrea, “via de regra, não existe tratamento. Quem consegue alguma coisa é uma sessão de terapia a cada 15 dias, durante meia hora, em grupo”. Ela explica que “quando você tem um filho autista, tem que haver um tripé funcionando: a família bem informada sobre como agir, a saúde funcionando e a garantia de educação. Se qualquer uma dessas pernas faltar, a criança não vai adquirir o tanto de autonomia que poderia”. O diagnóstico precisa ser precoce e as terapias devem começar cedo e ser intensivas, “para que você possa aproveitar a plasticidade cerebral até os 3 anos de idade, e maximizar o desenvolvimento daquela criança, para que possa ter a maior autonomia possível no futuro”. E isso ainda não está disponível no SUS.

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