SP: A mão bolsonarista no aumento de feminicídios
Criada no governo Tarcísio, a Secretaria da Mulher sofre com desfinanciamento crítico. Sua gestão propaga antifeminismo e ideais patriarcais. Delegacias para o atendimento especializado são escassas. Enquanto isso, o SUS paralisa diante da escalada de violência
Publicado 08/10/2025 às 11:27 - Atualizado 08/10/2025 às 12:08

Dez reais. Esses são os valores oficialmente descritos na rubrica de despesas com promoção de saúde da mulher e saúde da gestante, aprovados na Lei Orçamentária Anual votada em 2024 que definiu os investimentos relativos à Secretaria da Mulher do governo do estado de São Paulo em 2025.
Tomada por setores mais explicitamente bolsonaristas, a pasta virou puxadinho de discursos ideológicos de extrema-direita no governo Tarcísio Gomes de Freitas sob as direções de Sonaira Fernandes e Valéria Bolsonaro. Os resultados parecem eloquentes: uma explosão de feminicídios, que batem recordes na capital (cujo prefeito é aliado de primeira hora) e estado.
“A cientista política que me habita não pode dizer que é uma correlação direta sem outras mediações. A militante feminista que eu também sou diz que sim, é uma relação direta. É um fenômeno muito complexo, mas sem sombra de dúvida essa é uma variável fundamental, estruturante, para explicar o caso de São Paulo”, explicou Nathalia Cordeiro Guimarães, entrevistada pelo Outra Saúde.
Ao se analisar a materialidade das ações políticas de governo, a associação é praticamente inevitável. O desfinanciamento quase total da pasta significa o desfinanciamento e estruturas de proteção da mulher, em especial as delegacias especializadas, movimento “compensado” pelas Cabines Lilás, locais de atendimento e acolhimento policial para vítimas de violência.
No entanto, a política parece ter alcance muito limitado. Trata-se de um local que visa concentrar atendimentos para amplas áreas geográficas, que abarcam até cidades vizinhas. Em suas páginas oficiais, o governo anuncia que amplia o número de delegacias e salas de atendimento especializado. Mas os resultados parecem desmentir o discurso oficial.
“O governador Tarcísio de Freitas simplesmente não consegue aplicar a lei federal que determina o funcionamento 24 horas das delegacias da mulher. Das 142 que existem em todo o estado, apenas 18 operam 24h, 7 dias por semana. Em cidades onde não existe uma DDM (Delegacias de Defesa da Mulher), a vítima precisa se deslocar para uma cidade que tem o serviço. Nisso, a probabilidade dessa mulher ficar exposta novamente à violência ou até a um feminicídio, é muito grande”, criticou Ediane Maria, deputada estadual e líder do PSOL na Assembleia Legislativa de SP.


Segundo a Secretaria de Segurança Pública, foram 250 feminicídios em 2024, crime tipificado a partir de 2015. Mas o Laboratório de Estudos Feministas da Universidade Estadual de Londrina contabiliza 285 em seu próprio sistema de monitoramento. A discrepância se deve ao fato de a instituição paranaense se basear em critérios estabelecidos pela política federal na definição de casos que configurem violência de gênero.
“Vivemos um momento histórico de muitas ameaças à democracia, e São Paulo ilustra bem, talvez seja um lugar muito central para pensar a extrema-direita, a força do conservadorismo, do fundamentalismo religioso, de uma segurança pública absolutamente truculenta”, pontuou Nathalia Guimarães, doutora pela UFPE com a tese de doutorado (Re)produção de desigualdades na implementação de políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres sob uma perspectiva interseccional.
Ediane Maria complementa a afirmação com um alerta que vai além desta questão setorial. “Ao contrário do que o governador Tarcísio propagandeia, a segurança pública do estado de São Paulo vai muito mal, rumo a um estado de milicianização com aumento da sensação de insegurança e violência policial. E as mulheres são as maiores vítimas”.
Os números avançam pelo país todo. Afinal, o conservadorismo, o bolsonarismo e seu discurso antimulher, assim como as políticas de Estado mínimo, são nacionais. Mas só em SP encontra-se um esvaziamento tão explícito das políticas preventivas, o que se torna ainda mais grave se considerado o poderio econômico do estado.

Como o SUS lida coma violência de gênero?
Terapeuta ocupacional no SUS, M. (cuja identidade foi mantida em sigilo para evitar retaliações administrativas) vivencia na pele o cotidiano da violência de gênero, desfinanciamento geral de políticas públicas e uma consequente sobrecarga sobre todo o sistema que parece tentar apagar incêndios com copos d’água.
“Isso é a determinação social da saúde. Por isso é tão importante pensar a prevenção. Mas, muitas vezes, não acontece. O Núcleo de Atenção à Saúde da Família (NASF) foi desconstruído, não há mais o matriciamento das equipes. A ideia é ambulatorizar os serviços e tirar os espaços de reunião, os espaços de matriciamento. Simplifica-se demais e vamos construindo respostas que não são suficientes”, lamentou.
Sua entrevista coloca a questão em uma chave “multidisciplinar”, pois envolve não só o conservadorismo tacanho especificamente praticado pelos atuais governantes da cidade e estado como também coloca os conceitos administrativos neoliberais no cerne do problema, inclusive no que tange à participação social nos conselhos populares de determinada Unidade Básica de Saúde.
“Numa sociedade neoliberal, as coisas ganham um viés individualizado, como se você estivesse falando de qualquer violência. Mas eu estou falando de mulheres que são mortas pelos maridos, meninas que são estupradas pelos pais. E não estamos falando de quem está perpetuando essa violência. A universalidade, a integralidade e a equidade são negociadas, em termos gerenciais, de lucro, do que é melhor para a empresa e os contratos de gestão”, dimensiona.
Em sua entrevista, que adquiriu tom de desabafo, a terapeuta coloca o SUS numa posição defensiva, na qual as métricas de metas de atendimento esmagam as possibilidades de acolhimento real das vítimas de violência de gênero. Uma dinâmica que gera frustração e estafa dos próprios profissionais de saúde.
“Já vi um menino de nove anos em tentativas de suicídio porque seu pai matou a mãe. E agora ele está morando com a avó. Vamos prescrever o que? Não é num atendimento, e às vezes nem 80 atendimentos, que elimina a causa da violência. Porque a gente está tentando construir junto uma resposta coletiva para poder viver uma vida que saia da linguagem da violência”, contou.
“Tem mulheres que ficam com homens mais velhos para poder tomar banho todo dia. E aí eu vou dizer para ela sair dessa situação e ir para onde? É uma situação muito complexa, mas precisamos assumir que não temos resposta e a única solução é construir saídas ao lado dessas vítimas. Para isso, precisamos poder escutar a pessoa sem a ânsia do tempo de atendimento regrado pelas metas, que nos fazem mandar a paciente embora e chamar a próxima”, complementa.
O discurso conservador para a mulher
Em suas viagens pelo interior do estado, Valéria Bolsonaro parece restringir sua ação política a encontros que promovem empreendedorismo e pequenas ações locais. Sua gestão parece desfrutar de deliberada blindagem de uma mídia interessada em fabricar um sucessor político de seu parente mais famoso. Assim, números alarmantes de violência contra mulher somem das manchetes, assim como violência policial, penetração do crime no Estado, lavagem de dinheiro de financiadores de campanha e o megaescândalo de propina em troca de isenções tributárias na secretaria da Fazenda que já levou até bilionários à prisão.
“Foi um retrocesso. Deixaram de lado a saúde das mulheres para lidar com pautas ideológicas e conservadoras. E o pior: sem ações concretas que trouxessem benefícios reais às mulheres, como saúde preventiva e de tratamento especializado. Para a agenda de bolsonaristas, saúde da mulher se resume a mutirão de mamografia”, atacou Ediane Maria.
Nesse sentido, as entrevistadas entendem que há a reafirmação de um papel de gênero retrógrada, que remete a uma cultura cada vez mais superada, que a secretaria da Mulher tenta revitalizar.
“Tem o orçamento, mas também uma dimensão simbólica, subjetiva, ideológica, que é de colocar no mundo ideias antifeministas, de só legitimar os casos de violência quando se tratar de uma ‘vítima ideal’”, afirma Nathalia Guimarães.
Em sua análise, a “vítima ideal” é a mulher que corresponde ao imaginário conservador e religioso, isto é, cuidadora do lar e concentradora das tarefas domésticas, o que na prática inviabiliza a ideia de empreendedorismo, uma vez que tais mulheres terminam sobrecarregadas de uma série de afazeres que diminuem sua liberdade individual.
“Aqui em São Paulo tanto em governos progressistas quanto de direita, eu vejo muito essa ideia de empreendedorismo associada à política para as mulheres. Só que as mulheres precisam de uma estabilidade, de acesso a direitos. Naturalizamos que a mulher é a cuidadora. E o que chega na saúde, geralmente, são campanhas com relação a indicadores mais epidemiológicos”, sintetizou M., que lida na ponta com a violência cotidiana.
Isto é, para boa parte dos operadores do Estado e do SUS, saúde da mulher ainda é sinônimo de prevenção de algumas doenças, pré e pós-natal. Suas condições estruturais de reprodução social, opressões e privações passam ao largo de uma política de atenção primária pautada por metas ditadas de cima para baixo.
“Não serão só as secretarias e aparelhos do Estado que vão mudar a realidade. Precisamos da integralidade e transversalidade dessas políticas públicas, e uma mudança na conjuntura política, porque não tem como ter democracia onde há violência contra as mulheres”, conclui Nathalia Guimarães.
“A precarização dos serviços e a descaracterização do SUS retira o olhar mais crítico para os sentidos de saúde em favor do reducionismo de foco na doença, queixa e conduta médica. Já as metas não são baseadas nas necessidades reais do território; são homogeneizadas. Exige-se a mesma quantidade de atendimento e indicadores para todo o território de São Paulo, cujos bairros têm necessidades diferentes”, reflete M.
Mas, segundo Sonaira Fernandes, que voltou ao posto de vereadora da capital após ocupar a secretaria em 2023-24, “o feminismo é o grande genocida do nosso tempo”. Já Valéria Bolsonaro, pouco expõe suas atividades ou comenta tópicos relativos à agenda política de mulheres.
Para Ediane Maria, não há espaço para rebaixar a pauta das mulheres enquanto a extrema-direita mantém suas baterias de guerra em cada terreno que pode influenciar. “O SUS é o maior sistema de saúde pública universal. Mesmo com suas deficiências, é uma política pública que permite o acesso total a tratamentos para os brasileiros, principalmente para quem está mais vulnerável. O grande tabu que envolve a questão do aborto legal, a falta de políticas públicas pautadas a partir da ótica da mulher sobre planejamento familiar, saúde reprodutiva e sexual são algumas questões que precisam ser debatidas de forma honesta e pragmática”.
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