A geração ansiosa conseguirá livrar-se das telas?

Explosão de transtornos mentais entre crianças e adolescentes teve início com a era das redes sociais e da câmera de selfie. As crianças foram privadas da infância – e se transformaram em produto, comercializadas na indústria da atenção

Créditos: Jonathan McHugh
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Uma resenha de Ladislau Dowbor

Jonathan Haidt, autor de A geração ansiosa: como a infância hiperconectada está causando uma epidemia de transtornos mentais (2024), é da área de psicologia social, e um dos mais competentes analistas de como as pessoas se inserem na sociedade, com seus sucessos, tensões e desafios em geral. Um livro anterior dele, A mente moralista: por que boas pessoas são divididas pela política e pela religião, é de excepcional qualidade, ao desenhar as motivações mais significativas como o sentimento de justiça, a religiosidade, o pertencimento ao grupo, a relação com autoridade e semelhantes. É um analista progressista, com muito pé no chão. Gosto em particular dessa constatação sobre as atitudes políticas: “Mentimos, trapaceamos, e justificamos tudo tão bem que chegamos a acreditar honestamente que somos honestos”. Em termos de comportamento social das pessoas, Haidt tem os olhos bem abertos. 

O livro que agora comentamos se debruça sobre um desafios de enormes proporções: a revolução digital altera profundamente o nosso comportamento social, como nos relacionamos com amigos, família, colegas ou afetos em geral, por meio de telinhas, deslocando o relacionamento presencial, facilitando também contatos que normalmente não aconteceriam: não basta julgar, o essencial é entender que o impacto sobre o nosso cotidiano é profundo. Estamos enfrentando mudanças sistêmicas. Eu apresentei o quadro geral em livro recente, A Revolução Digital: uma sociedade à beira de rupturas, envolvendo as dimensões sociais, políticas e econômicas do novo modo de produção que está se formando, uma mudança tão profunda relativamente ao capitalismo industrial como foi a revolução industrial relativamente ao feudalismo. 

Haidt se concentra em como essas transformações, que qualifica de Grande Reconfiguração,  impactam em particular a infância e adolescência. Uma coisa são as tecnologias, que facilitam a comunicação, a conectividade, o acesso ao conhecimento e a criação de conteúdos. Outra, é a apropriação em escala industrial, através dos algoritmos e da inteligência artificial, da atenção das pessoas. O adulto já é vítima, mas as crianças são particularmente vulneráveis. 

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A criança europeia, por exemplo, passa cerca de quatro horas por dia na telinha, nos Estados Unidos quatro horas e meia, no Brasil cinco horas e meia. Várias fontes trazem números diferentes, e as variações entre pessoas e grupos sociais são muito grandes, evidentemente, mas o fato é que se trata de um deslocamento sísmico na organização social. Haidt trabalha com números bem superiores: “Esse tempo – de seis a oito horas por dia – é o que os adolescentes dedicam a todas as atividades de lazer baseadas em telas.”(143) É a apropriação do tempo das nossas vidas. É natural que os números variem segundo países e grupos sociais. Mas de toda forma, se trata de grande parte da nossa vida. 

“Com uma geração viciada em smartphones (e outras telas) antes da puberdade, restou pouco espaço em meio ao fluxo de informações entrando por seus olhos e ouvidos para mentores que os guiassem durante a puberdade em suas comunidades no mundo real. Eles encontraram apenas um rio infinito de experiências digitais, customizado para obter o máximo de cliques e receita de anúncios de cada criança, a ser consumido a sós no quarto. Os anos de ‘distanciamento social’ e a transferência da vida para o on-line durante a pandemia de Covid só pioraram a situação.”(128) “A infância baseada no brincar chegava ao fim; era o início da infância baseada no celular. “(142)

Não há nenhuma preocupação particular, no quadro deste sistema de controle corporativo das mídias sociais, com o bem-estar da sociedade. Trata-se de maximizar o tempo de atenção, e este é maximizado com algoritmos que promovem o “engajamento”, o que por sua vez gera o que essas empresas chamam de mDAU (monetized daily active users), que por sua vez gera retornos na publicidade. Os milhões de mDAUs é que definiram quantos bilhões Elon Musk pagou pelo Twitter. Um imenso potencial de circulação de conhecimento e cultura se transforma numa guerra comercial pela atenção das pessoas. Para o Meta, do Zuckerberg, 98% dos lucros vêm da publicidade, uma área que se expandiu prodigiosamente, hoje chamada de indústria da atenção, “attention industry”. Lembremos que toda essa indústria é paga por nós, são custos incorporados nos produtos que compramos.

“A proliferação de aplicativos financiados por publicidade causou uma mudança na natureza do tempo gasto no smartphone. No início da década de 2010, nossos celulares transformaram-se de canivetes-suíços em plataformas nas quais as empresas competiam para ver quem conseguia manter a atenção dos olhos humanos por mais tempo.”(139) Os algoritmos estão programados para priorizar o que atrai: “Os smartphones e a internet banda larga facilitaram aos meninos ter acesso a pornografia pesada, ilimitada e gratuita disponível em qualquer momento, em qualquer lugar. A pornografia é um exemplo de como as empresas de tecnologia facilitaram aos meninos satisfazer desejos evoluídos poderosos sem precisar desenvolver quaisquer habilidades que os ajudariam a fazer a transição para a vida adulta.”(229)

Os impactos são impressionantes. Os casos de depressão grave entre adolescentes, entre 2010 e 2020, aumentaram de 145% entre meninas e 161% entre meninos. “O aumento foi parecido entre ambos os sexos – por volta de 150%. Esse aumento foi observado em todas as raças e classes sociais.”(35) Isso atinge igualmente universitários. “Em um estudo de 2023 com universitários americanos, 37% dos entrevistados relataram sentir ansiedade “sempre” ou “na maior parte do tempo”, enquanto outros 31% relataram se sentir assim “cerca de metade do tempo”. Isso significa que apenas um terço dos universitários disse sentir ansiedade em menos da metade do tempo ou nunca.”(38) Haidt se refere à ”atual onda gigante de ansiedade e depressão”.(41) 

O desespero causado, em particular entre crianças e adolescentes, pelos ataques, comparações desfavoráveis, busca de gerar fotos melhoradas na aparência (filtros) e um sem número de tensões resultantes de uma outra sociabilidade online, levaram a um aumento de 188% de entradas em prontos-socorros hospitalares por automutilação para meninas, e de 48% para meninos. As taxas de suicídios entre adolescentes também aumentaram radicalmente, mais para meninos do que meninas.(42) Todas essas estatísticas explodiram com a generalização do smartphone. 

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“Trata-se de uma transformação profunda da consciência e dos relacionamentos, e ocorreu, no caso dos adolescentes norte-americanos, entre 2010 e 2015. Esse foi o nascimento da infância baseada no celular, que marca o fim definitivo da infância baseada no brincar… Portanto, podemos dizer que o smartphone e o ecossistema de redes sociais baseadas em selfies que conhecemos hoje surgiram em 2012, com a compra do Instagram pelo Facebook e a introdução da câmera frontal. Em 2012, muitas adolescentes deviam sentir que ‘todo mundo’ tinha um smartphone e um perfil no Instagram, e todo mundo estava se comparando com todo mundo.”(48) É o que Haidt chama de Grande Reconfiguração da Infância, quando os modelos de comportamento, emoções e padrões de atividade física,  até do sono dos adolescentes “foram profundamente alterados”.  

Comprei o meu exemplar do livro numa banca na Avenida Paulista, o que é raro para um livro de mais de 400 páginas, mas se explica pelo utilidade social para tantos pais, escolas e pesquisadores que buscam novas formas de interação com essa nova geração de jovens, presos no sistema corporativo imensamente rico que busca a maximização do envolvimento sem se preocupar com as consequências. Não basta dizer aos pais que devem exercer controle sobre o uso do celular, eles que fingem não saber que o jovem está vendo telas debaixo do cobertor quando devia estar dormindo, e isto envolve o professor que sabe que o aluno está pensando no fone vibrando no seu bolso enquanto devia estar prestando atenção na aula, sem falar do isolamento das crianças no quarto quando podiam estar brincando e socializando na rua ou no parque com outras crianças. 

Haidt traz respostas concretas para esses desafios, tipos de controles possíveis segundo as idades e circunstâncias, além de explicitar a necessidade de tirar o celular na escola, não apenas proibir o seu uso. Cada capítulo termina com um resumo dos principais argumentos, e o conjunto é repleto de recomendações concretas. Quando um sistema descontrolado de comunicação, com poderosas motivações comerciais privadas, ocupa mais tempo das crianças que o próprio sistema escolar, é um desafio sistêmico. Houston, we have a problem

Não são visões “externas” de um pesquisador. Inclusive, Haidt traz a análise interna da própria Google, com Tristan Harris, segundo quem “as escolhas de design das empresas de tecnologia haviam resultado em um colapso global do tempo disponível para qualquer coisa que não fosse tela…As empresas se veem presas a um problema de ação coletiva conhecido como ‘corrida até o fim’, porque se uma delas fracassa em explorar uma fraqueza psicológica disponível acaba em desvantagem em relação a concorrentes menos escrupulosas. Na economia da atenção, a atenção é limitada, e o modelo de negócio baseado em anúncios exige sempre mais.” 

“Assim, temos uma corrida até o fim do tronco cerebral…Acrescentando o número de seguidores e curtidas, a tecnologia se aproveita da necessidade de validação social e as pessoas desenvolvem uma obsessão por feedback constante do outros. Isso ajudou a alimentar a crise de saúde mental entre os adolescentes. O modelo de negócio baseado em anúncios transforma os usuários em produto.”(264) O livro termina com uma sistematização de propostas: ações coletivas para uma infância mais saudável.   

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