A crise da enfermagem na Índia e a Saúde fragmentada

No país, a categoria enfrenta baixos salários para muita demanda e a alta taxa de migração dos profissionais em busca de melhores condições de trabalho. O problema se agrava conforme aumentam os eventos climáticos extremos

Imagem: Reuters
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O ano de 2022 fez o mundo voltar sua atenção para a saúde dos indianos, quando uma onda de calor extremo atingiu o país entre fevereiro e julho. As temperaturas acima de 40 graus levaram a pelo menos 100 mortes notificadas e deixaram 1 bilhão de pessoas vulneráveis, contando com o vizinho Paquistão. Além da insolação e desidratação, o aumento da poluição do ar, a baixa na produção de alimentos e o baixo fornecimento de energia, consequências do calor e da falta de chuvas, também atingiram a saúde da população. O cenário pesou sobre o sistema de saúde indiano, já debilitado após a pandemia de covid-19. 

Em dezembro, seguindo os protestos de colegas ingleses e espanhóis, sindicatos e associações de enfermagem em toda a Índia escreveram uma carta aberta ao Ministério da Saúde e Bem-Estar da Família de Narendra Modi, atual presidente, exigindo que as organizações representativas fossem consultadas pelo governo para a elaboração das novas diretrizes da pasta para a profissão. A iniciativa surgiu após inúmeros relatos de assédio – visto que a maior parte da categoria é composta por mulheres – e de esgotamento por parte dos profissionais, que enfrentam longas horas de trabalho sem pausas, falta de equipamentos de proteção, condições de alto risco e pagamento inadequado, segundo a Public Services International (PSI).  

Hoje, profissionais empregados através de contrato iniciam com um salário de 35 mil rúpias (R$2.227), enquanto profissionais em trabalho informal – a maioria – cumprem a mesma jornada recebendo 15 mil rúpias (R$ 954). “Ou seja, ganham ⅓ do que deveriam pelas mesmas funções”, explica a Outra Saúde Sundararaman Thiagarajan, médico, ex-diretor do National Health Systems Resource Center da Índia e atual coordenador do People ‘s Health Movement. 

Hoje, a saúde na Índia é constituída em parte por um sistema público descentralizado e em parte pela iniciativa privada. Enquanto o primeiro é marcado por problemas de investimento, o segundo é conhecido pela baixa qualidade e desqualificação dos profissionais. “Boa parte das escolas de enfermagem são privadas e têm uma qualidade de ensino muito baixa”. Os hospitais e clínicas privadas, também de baixa qualidade, pagam os piores salários à categoria, segundo o PSI. Sundar afirma que muitos contratam mulheres sem formação ou treinamento, apesar da ação ser ilegal. “Ainda que a formação no setor público seja de alta qualidade, a oferta de empregos no sistema público é muito limitada”, explica o médico – apesar das clínicas e hospitais públicos não contarem com profissionais suficientes para atender toda a população. A impossibilidade de plano de carreira, somada à falta de oportunidade e treinamento escasso leva a uma forte migração de profissionais. No início de março, o Reino Unido, que também enfrenta uma crise pela falta de funcionários no National Health Service (NHS),  anunciou a contratação de 100 enfermeiros indianos. 

Na Atenção Básica, conhecida como “linha de frente” da saúde, estão os chamados Health and Welness Centers (“Centros de Saúde e Bem-Estar”), que equivaleriam ao que são as Unidades Básicas de Saúde do SUS brasileiro – com a diferença de que, na Índia, o sistema público não é centralizado e cada unidade é administrada pelo governo da região em que se encontra. “Cada centro de saúde primário tem uma equipe de um médico e 3 enfermeiras para atender 25 mil pessoas”, conta o Dr. Sundar. A escassez de profissionais para o atendimento é uma realidade na maior parte do território, com exceção das áreas urbanas – mas, ao contrário do Brasil, cerca de 70% da população na Índia vive nas zonas rurais. Já a infraestrutura dos Centros é caracterizada pelo médico como “boa”, desde que estes não estejam nas áreas rurais mais remotas. 

“Agora há um esforço, por parte do governo, para aumentar as equipes. A tendência é positiva, embora sua ação seja, em grande parte, restrita ao papel”, lamenta Sundar. Na maioria das regiões rurais, os cuidados para a gravidez, saúde reprodutiva e assistência aos partos são os principais – e por vezes únicos – serviços disponíveis. Outros casos são encaminhados aos Hospitais Distritais, responsáveis por diferentes tipos de demandas – desde cirurgias até tratamento de doenças – mas que não possuem cuidados abrangentes. “O principal problema da Saúde na Índia tem sido a falta de equipes e o pequeno leque de serviços”, afirma Sundar. 

A mudança climática é um agravante de perigo para a situação. Pesquisas internacionais já vem indicando que os países subdesenvolvidos são os mais afetados pelos eventos climáticos extremos, que, por sua vez, estão diretamente ligados à proliferação de doenças. Na Índia, fortes chuvas sucederam o período de seca, e a frequência das inundações já está causando preocupação quanto a proliferação de doenças como a malária, dengue e diarreia. “Quando a água da enchente fica contaminada com dejetos de humanos ou animais, doenças transmitidas pela água, como diarréia e cólera, começam a se espalhar mais rapidamente. Da mesma forma, vimos o aumento de doenças respiratórias devido ao ar poluído em Delhi”, declarou, em outubro, Kritika Sharma, representante do All India Institute of Medicine Sciences (AIIMS). 

A Organização Mundial da Saúde (OMS) vem insistindo, desde a pandemia de covid-19, para que os países aumentem a resiliência de seus sistemas públicos de saúde e priorizem campanhas de vacinação. “Existe a capacidade para isso. Em alguns estados você tem profissionais qualificados, infra-estrutura. Mas o baixo investimento leva a baixíssimos recursos humanos e problemas com o abastecimento de suprimentos”, explica Sundar. Apesar de possuir a capacidade e o conhecimento técnico, a intervenção desigual nas diferentes regiões do país mina o fortalecimento do sistema. O resultado é que, enquanto nas áreas urbanas o atendimento consegue cumprir com a demanda, as regiões mais pobres e populosas quase não têm acesso à saúde. E, claro, nessas áreas os enfermeiros enfrentam as piores condições de trabalho. 

No dia 7 de março, o presidente Modi afirmou que a Índia quer se tornar “o destino de turismo médico mais atraente do mundo”. A tendência citada por Modi consiste na viagem de milhões de pessoas residentes em países ricos para países em desenvolvimento, com o objetivo de se submeter a procedimentos médico-hospitalares mais baratos. Segundo ele, “a infraestrutura e os recursos humanos em desenvolvimento no país não se restringirão aos indianos” e o turismo médico seria um meio de gerar empregos na área da saúde. O chefe de estado também anunciou a abertura de 157 novas faculdades de enfermagem. 

Para Sundar, o governo deveria priorizar o investimento no aparato público, com mais participação da administração federal na contratação de mais profissionais e no financiamento para oferecer mais serviços à população. “É preciso aumentar o financiamento do setor público para que ele comece a crescer e preencher essas lacunas”, concluiu. 

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